Dirigido por Marc Foster e roteirizado por Zach Helm, esse longa-metragem de 2006 mistura realidade e ficção em uma trama inteligente, divertida e original.
Na última sexta-feira, assisti a “Mais Estranho que a Ficção” (Stranger Than Fiction: 2006), uma comédia dramática deliciosa que brinca com várias questões metalinguísticas do fazer literário. Afinal, o que você faria se fosse um(a) escritor(a) e descobrisse que o protagonista de seu novo romance é uma pessoa real, hein? E ainda por cima, ele não quer sua interferência na vida dele, principalmente ao saber que você quer matá-lo. Se preferir o ponto de vista oposto, o que você faria se de repente descobrisse que sua existência é regida pelos desígnios de um(a) romancista?! Pois esse é o incrível roteiro de “Mais Estranho que a Ficção”, uma das produções cinematográficas mais inventivas que vi nos últimos anos. E saiba que esse filme reserva ainda ótimas surpresas para quem gosta das várias áreas da literatura. Temos aqui uma forte intertextualidade com a criação literária, a crítica literária e a teoria literária.
Graças à junção umbilical de diferentes campos artísticos (literatura e cinema) e à união de planos existenciais distintos (realidade e ficção), o post de hoje do Bonas Histórias poderia muito bem entrar em várias colunas do blog: Cinema, Teoria Literária, Crítica Literária, Mercado Editorial, Talk Show Literário, Contos & Crônicas... Porém, para fins práticos, acabei optando pelo caminho tradicional, a postagem exclusivamente na seção cinematográfica (que por sinal está um pouco abandonada em tempos de repique da pandemia do novo coronavírus – desculpem-me; quando os cinemas voltarem para valer, prometo retornar às análises de filmes com a frequência de outrora).
É importante dizer que a integração entre literatura e produção cinematográfica não é uma grande novidade na sétima arte. Já comentamos no Bonas Histórias alguns títulos com essa característica. De cabeça, lembro de “O Mistério de Henri Pick” (Le Mystère Henri Pick: 2019), "O Cidadão Ilustre" (El Ciudadano Ilustre: 2016), "Os Olhos Amarelos do Crocodilo" (Les Yeux Jaunes des Crocodiles: 2012) e "O Crítico" (El Crítico: 2013). A própria metalinguagem artística já foi explorada em outras produções como “Rock´n Roll - Por Trás da Fama” (Rock'n Roll: 2017), "Quero Ser John Malkovich" (Being John Malkovich: 1999) e "Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)" (Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance): 2014).
O que precisa ser exaltado em “Mais Estranho que a Ficção” é que esse filme veio antes de quase todas as citações acima. Ou seja, estamos falando de uma produção realmente inovadora (só não é tão distópica quanto o pioneiro e espetacular "Quero Ser John Malkovich"). Além disso, esse longa-metragem aprofunda a mistura de realidade e ficção como se estivéssemos em um livro de Juan Carlos Onetti, Kenzaburo Oe ou Orhan Pamuk. Para completar, temos aqui uma comédia engraçada e inteligente, algo que cativa também o público que não é tão fã assim de literatura e que só quer conferir uma boa trama cinematográfica (com uma perninha na comédia romântica).
Dirigido por Marc Foster, responsável pela adaptação cinematográfica de “O Caçador de Pipas” (Nova Fronteira), romance de Khaled Hosseini, e roteirizado por Zach Helm, de “A Loja Mágica de Brinquedos” (Mr. Magorium's Wonder Emporium: 2019), “Mais Estranho que a Ficção” tem em seu elenco Will Ferrell, Emma Thompson, Maggie Gyllenhaal, Dustin Hoffman e Queen Latifah. Lançado nos Estados Unidos em novembro de 2006 e no Brasil em janeiro do ano seguinte, esse filme está disponível atualmente em várias plataformas de streaming (eu, por exemplo, assisti no NOW) e em DVD. Com um orçamento de US$ 30 milhões, “Mais Estranho que a Ficção” faturou pouco mais de US$ 53 milhões nas bilheterias dos cinemas.
Vale a pena dizer que este filme não é (eu disse NÃO É) uma adaptação do livro homônimo de Chuck Palahniuk, autor norte-americano de ascendência ucraniana que se tornou referência no gênero da Escrita Transgressiva. Sua obra mais famosa é “Clube da Luta” (Rocco), romance de 1996 que foi levado com bastante êxito aos cinemas três anos mais tarde. A única semelhança entre o longa-metragem de Marc Forster e Zach Helm e a versão literária de “Mais Estranho que a Ficção” (Rocco) é, portanto, o título em comum (coincidências que acontecem!).
Isso fica evidente ao notarmos que a ideia do roteiro de Helm é anterior ao lançamento do livro de Palahniuk. Enquanto Zach Helm já trabalhava na ideia dessa história em 2001, a coletânea de contos, crônicas, ensaios, textos jornalísticos e passagens autobiográficas de Chuck Palahniuk só foi publicada em 2004 nos Estados Unidos. Curiosamente, quando o livro de Palahniuk chegava às livrarias norte-americanas, o roteiro do filme já tinha sido aprovado (evidentemente com o mesmo nome em inglês) e estava em processo de pré-produção (escalação dos atores, definição dos locais de filmagem, planejamento de produção, estabelecimento do orçamento...).
O enredo de “Mais Estranho que a Ficção” se passa em uma grande cidade dos Estados Unidos e aborda o dia a dia de Harold Crick (interpretado por Will Ferrell), um jovem auditor da Receita Federal. Sem amigos, sem familiares próximos e extremamente sistemático, o rapaz tem uma rotina sem graça e solitária, que se resume a ir e a voltar do trabalho. Para passar o tempo, ele fica contando as escovações de dentes e os passos que dá até o ponto de ônibus. Ele também gosta de controlar meticulosamente o tempo gasto em cada atividade diária, como tomar café, almoçar e dormir. Em outras palavras, o cara é um mala!
Certo dia, Harold é surpreendido por uma voz feminina que passa a narrar o que ele está fazendo, sentindo e pensando. Desconcertado com aquela invasão de privacidade, ele questiona as pessoas que estão a sua volta se alguém mais está ouvindo aquela locução em off. Ninguém ouve, só ele. A narração de sua vida o deixa desesperado, principalmente quando Harold descobre que está prestes a morrer. Essa revelação é feita pela tal voz feminina. Ela diz com todas as letras que ele morrerá em breve.
Para piorar ainda mais as coisas (sim, é possível piorar!), Harold Crick se vê apaixonado pela primeira vez. Ao realizar a auditoria fiscal na padaria de Ana Pascal (Maggie Gyllenhaal), uma pequena empresária que burlou propositadamente o fisco, ele não consegue mais tirar a bela moça da cabeça. Para sua infelicidade, ele não leva muito jeito com as mulheres. Se Ana já não gosta de Harold por causa da profissão dele (quem iria ficar feliz com a visita de um funcionário da Receita Federal em seu negócio, hein?), as mancadas sistemáticas e as esquisitices do rapaz não contribuem em nada para cativar o coraçãozinho da jovem empreendedora.
Sem saber o que fazer para resolver a situação da insistente voz que o acompanha em todos os momentos (até mesmo naqueles mais íntimos), Harold Crick procura uma terapeuta. Depois de analisar o caso dele, ela diz que muito possivelmente ele está sofrendo de alucinações. Não concordando com esse diagnóstico e notando que parece estar dentro de um romance, Harold recorre a ajuda de Jules Hilbert (Dustin Hoffman), um professor de teoria literária. Acadêmico experiente, o professor Hilbert é a única esperança do auditor da Receita para encontrar a escritora que está por traz da construção de sua narrativa.
Curiosamente, Harold está correto em sua suposição. Ele está mesmo dentro de um livro. Harold Crick é o personagem ficcional de Karen Eiffel (Emma Thompson), uma famosa romancista que está há dez anos sem publicar nada novo e que tem o hábito de terminar suas obras sempre de uma maneira trágica. A autora está passando por um bloqueio criativo e não sabe como finalizar sua obra. Ela sabe que Harold irá morrer no desfecho, mas não definiu exatamente como irá tirar a vida de seu protagonista. Para ajudar Karen a escrever os últimos capítulos do novo romance, sua editora envia Penny Escher (Queen Latifah), uma assistente de produção literária. Com a contribuição de Penny, a editora acredita que a escritora conseguirá concluir sua narrativa ficcional dentro do prazo.
Para desespero de Harold, à medida que Karen Eiffel caminha para a finalização do livro, mais perto da morte ele está. Nessa mistura inusitada de ficção e realidade, a alternativa salvadora do protagonista do livro/filme será encontrar a escritora e pedir para ela mudar o desfecho da trama. Mas como achá-la e como falar com ela? Esse é o desafio do rapaz, que precisará tomar as rédeas de sua vida dali para frente se quiser sobreviver às agruras das histórias ficcionais.
“Mais Estranho que a Ficção” possui quase duas horas de duração (são exatamente 113 minutos) e tem ótimo ritmo narrativo. O longa-metragem já começa apresentando o protagonista e seus dramas e avança rapidamente para as maluquices da metalinguagem literária. Esse filme pode ser classificado como comédia, comédia romântica, tragicomédia, suspense dramático ou thriller existencialista. Acho que ele é uma mistura disso tudo.
A primeira coisa que chama a atenção nesse filme é o ótimo roteiro de Zach Helm. Nota-se que essa história está redondinha, redondinha. Além de criativo e inusitado, o enredo de “Mais Estranho que a Ficção” tem peças que se encaixam perfeitamente e que não causam ruídos na dinâmica narrativa. Prova maior da excelência do roteiro é que Helm foi indicado a alguns prêmios cinematográficos por este trabalho e conquistou o National Board of Review Award de 2007 como melhor roteiro original.
É preciso elogiar também a bela atuação do elenco principal. A sensação é que todos os atores estão perfeitos em seus papéis, mesclando muito bem o lado cômico e o lado trágico. Meu destaque vai para Will Ferrell e Maggie Gyllenhaal. A jovem dupla de atores consegue acompanhar os gabaritados e experientes Emma Thompson e Dustin Hoffman (que dispensam apresentações) em interpretações de alto nível do começo ao fim do longa-metragem. É até difícil dizer quem está melhor: se os jovens atores ou os intérpretes mais rodados.
Há nessa produção várias intertextualidades literárias, filosóficas e científicas. Algumas são mais evidentes como a diferença de classificação entre comédia e tragédia (isso faz parte do enredo do filme), os dramas da escritora na hora de finalizar sua obra (questões centrais da teoria literária) e o papel do relógio de Harold em seu aprisionamento (o tempo controla a vida das pessoas). Porém, para quem gosta de buscar as relações intertextuais mais sutis é importante saber que há várias referências indiretas na trama de “Mais Estranho que a Ficção”.
Por exemplo, o nome de cada personagem é uma homenagem a cientistas, matemáticos e filósofos famosos. Outro caso é a lista de perguntas feitas pelo professor Hilbert a Harold. O questionário do teórico da literatura é uma menção aos 23 problemas matemáticos propostos pelo alemão David Hilbert no Congresso Internacional de Matemática ocorrido em Paris em 1900. Já o título do filme veio de uma citação de Lord Byron (e não do livro de Chuck Palahniuk): “Pois a verdade é sempre estranha, mais estranha do que a ficção” (em uma tradução livre).
Apesar do maior charme de “Mais Estranho que a Ficção” estar em sua dinâmica metalinguística e em suas referências literárias e científicas, a parte da comédia romântica também é interessante. O relacionamento amoroso de Harold e Ana é daquele tipo em que os opostos se atraem. Afinal, ele é o certinho, racional, formal e individualista e ela é a erradinha, passional, informal e altruísta.
A fotografia do filme potencializa a verticalidade das grandes cidades modernas (o longa foi filmado em Chicago) e explora a claustrofobia da rotina de Harold Crick. O protagonista está sempre em ambientes impessoais e muito apertados. Até quando caminha pela calçada, ele está perto de inúmeras pessoas que insistem em se aglomerar. Como consequência, temos a sensação de vazio existencial, frieza emocional, vertigem e falta de conforto da vida contemporânea.
A trilha sonora de “Mais Estranho que a Ficção” mescla composições instrumentais desenvolvidas pela dupla Britt Daniel e Brian Reitzell especialmente para o filme e canções comerciais de bandas de rock. Destaque para “Whole Wide World”, faixa gravada originalmente por Wreckless Eric. Essa é justamente a música que Harold toca no violão para Ana na primeira vez em que ele vai à casa da moça. Essa, por sinal, é uma das cenas mais famosas do filme.
Assista, a seguir, ao trailer de “Mais Estranho que a Ficção”:
Se você estiver procurando um filme engraçado, com um roteiro diferentão e com uma pegada metalinguística, que dialoga com o fazer literário, “Mais Estranho que a Ficção” é uma ótima opção. Ainda mais agora com a supremacia do streaming e das outras sessões caseiras (leia-se DVD) às exibições nas telonas de cinema. Eu gostei muito desse filme. Aprecio quando o longa-metragem é divertido sem abrir mão da inteligência e da originalidade.
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