Lançada em junho nos cinemas brasileiros, a produção polonesa conquistou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes em 2022 e foi indicada ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2023.
Tradicionalmente, existem seis tipos de filmes protagonizados por animais: (1) a comédia/aventura infantojuvenil, como “Beethoven – O Magnífico” (Beethoven: 1992), “Monster Trucks" (2017) e “A Caminho de Casa” (A Dog's Way Home: 2018); (2) o drama que faz a plateia se debulhar em lágrimas, como “Marley & Eu” (Marley & Me: 2008), “Sempre ao Seu Lado” (Hachi – A Dog's Tale: 2009) e “Meu Amigo Enzo” (The Art of Racing in the Rain: 2019); (3) o thriller de terror, como “Tubarão” (Jaws: 1975), "Jurassic World - O Mundo dos Dinossauros" (Jurassic World: 2015) e “O Urso do Pó” (Cocaine Bear: 2023); (4) a animação/fantasia de ação, como “Dr. Dolittle” (Dolittle: 1998), “Alvin e os Esquilos na Estrada” (Alvin And The Chipmunks - The Road Chip: 2015) e "O Bom Dinossauro" (The Good Dinosaur: 2015); (5) as tramas policiais, como “K-9 – Um Policial Bom Pra Cachorro” (K-9: 1989), “Uma Dupla Quase Perfeita” (Turner & Hooch: 1989) e “O Resgate de Ruby” (Rescued by Ruby: 2022); e (6) a comédia romântica, como “Melhor é Impossível” (As Good As It Get: 1997), “Procura-se um Amor que Goste de Cachorros” (Must Love Dogs: 2004) e “Mato Sem Cachorro” (2013).
Mas será que dá para fugir desses vários clichês cinematográficos ao se construir um novo enredo envolvendo os bichos?! Jerzy Skolimowski, veterano diretor polonês, provou que sim. O ótimo “EO” (IO: 2022), sua mais recente produção, vai na contramão do convencional ao apresentar a cinebiografia de um simples burrinho. Cinebiografia de um burro comum?! Pode isso, Arnaldo? Para Skolimowski, que bebeu diretamente da fonte do cinema de Robert Bresson, não só pode como deve.
O resultado é um filme profundo, impactante e diferenciado. Esqueça, portanto, as seis categorias que listei sobre os longas-metragens protagonizados por animais (repare que usei o termo “protagonizado”!), a maioria com títulos que flertam com o gênero água com açúcar. O que temos em “EO” é um drama genuíno que vai do terror psicológico ao thriller existencialista, passando pela crítica social e ambiental, pela aventura ao melhor estilo road movie e pela estética do Surrealismo. Não falei que era uma produção ousada, hein?!
Além da originalidade narrativa (quando o comparamos ao que tem sido feito nos últimos cinquenta anos; já falarei mais sobre isso, afinal a trama não é tão original assim....), dos méritos técnicos da difícil empreitada (filmar animais nunca é tranquilo) e da incontestável beleza audiovisual (e põe beleza nisso!!!), “EO” é um panfleto inteligente e poderoso em prol dos direitos dos animais. Dos filmes que estão em cartaz nos cinemas brasileiros neste momento, este é o mais inusitado. Gostei tanto desse novo título de Jerzy Skolimowski que resolvi analisá-lo com o devido detalhamento no Bonas Histórias.
Flertando com a pegada cult e com uma proposta de certa maneira experimental, “EO” não é aquele tipo de filme com viés de entretenimento massivo que arrebata plateias gigantescas mundo à fora nem que agrada ao público com alma infantojuvenil e com paladar mais limitado. Estamos tratando aqui de um longa com tons mais artísticos e menos comerciais. Por isso, ele se aproxima mais da obra-prima “Trilogia das Cores” (Trois Couleurs: 1993 a 1994), de Krzysztof Kieślowski, do que dos midiáticos “Rede de Ódio” (Hejter: 2020), de Jan Komasa, e “Morte às Seis da Tarde” (Plagi Breslau: 2018), de Patryk Vega. Repare que para a minha analogia não ficar injusta, me limitei às produções de alto nível do cinema polonês, que não param de nos surpreender. Em relação ao ritmo lento, ao destaque dado à fotografia e à estética de filmagem, “EO” me lembrou um pouco “Ida” (2013), produção polonesa de Pawel Pawlikowski que conquistou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2015.
Lançado no comecinho deste mês no circuito comercial brasileiro de cinema, o novo filme de Skolimowski foi apresentado inicialmente no Festival de Cannes em maio de 2022. No mais importante evento cinematográfico europeu, “EO” conquistou o Prêmio do Júri e ganhou avaliações positivas tanto do público quanto da imprensa e dos críticos. Daí em diante, ele teve excelente visibilidade nos demais festivais cinematográficos da temporada, mas estreou de forma extremamente tímida nas salas de cinema de vários países. Na Polônia, ele foi lançado no final de setembro. No mês seguinte, chegou ao público francês. A partir de novembro de 2022, aportou em alguns cinemas dos Estados Unidos e Canadá. E em dezembro, alcançou as outras partes da Europa, como Espanha, Alemanha, Itália e Turquia.
Representante polonês na última edição do Oscar, o filme foi finalista na categoria Melhor Filme Internacional juntamente com o argentino “Argentina, 1985” (2022), o belga “Close” (2022), o irlandês “Quiet Girl” (2022) e o alemão “Nada de Novo no Front” (Im Westen Nichts Neues: 2022), que confirmou o favoritismo e faturou a estatueta. Grande azarão no evento norte-americano, desculpem-me pelos trocadilhos inevitáveis, “EO” era visto como o patinho feio entre os indicados. Por outro lado, no Polish Film Awards de 2023, principal honraria de seu país, ele era o franco favorito e levou para casa seis prêmios: melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro, melhor trilha sonora, melhor fotografia e melhor edição.
“EO” teve até agora uma bilheteria de aproximadamente US$ 2,5 milhões nos quatro cantos do planeta. Apesar de parecer baixo se pensarmos nas cifras hollywoodianas e nos números dos blockbusters que monopolizam as salas de cinema, esse valor é superior ao orçamento de sua produção, que não ultrapassou a casa de US$ 1 milhão. Em outras palavras, esse foi um filme de baixo orçamento, uma realidade vivida por Skolimowski nos últimos anos e que foge da dinâmica de trabalho que ele estava acostumado nas décadas de 1960, 1970 e 1980. Mesmo com os valores menores, uma coisa não mudou: a qualidade dos seus longas-metragens. Eles continuam muito, mas muito bons!
No elenco de “EO”, além de seis burrinhos que se revezaram para viver o protagonista quadrúpede, temos Sandra Drzymalska, Tomasz Organek, Mateusz Kosciukiewicz, Lorenzo Zurzolo e Isabelle Huppert.Isabelle Huppert está neste filme?! Sim, queridos leitores da coluna Cinema, ela está!!! A minha musa do cinema francês, ao lado de Lou de Laâge (para ninguém reclamar que não sou versátil em relação a faixa etária de minhas amadas e idolatradas atrizes), não só está presente aqui como, para variar, consegue roubar a cena quando aparece na tela. Incrível! O roteiro é do próprio Skolimowski com Ewa Piaskowska, roteirista polonesa que é coautora de três dos últimos quatro filmes do veterano diretor.
Com mais de vinte longas-metragens no currículo, Jerzy Skolimowski é, aos 85 anos, um dos principais cineastas europeus da segunda metade do século XX. Seus títulos mais importantes são “A Partida” (Le Départ: 1967), vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim, “Deep End” (1970), favorito para levar o Leão de Ouro se o Festival de Cinema de Veneza não tivesse sido cancelado em 1970, “Estranho Poder de Matar” (The Shout: 1978), vencedor do Prêmio do Júri em Cannes, e “Vivendo Cada Momento” (Moonlighting: 1982), eleito o Melhor Roteiro no Festival de Cannes.
Depois de ficar quase vinte anos longe do cinema, Skolimowski lançou, em 2008, “Quatro Noites com Ana” (Cztery Noce z Anną: 2008), thriller policial escrito em conjunto com Ewa Piaskowska. A partir daí, o diretor polonês tem trazido frequentemente novidades para o público cinéfilo. “EO” é o quarto filme dessa retomada (que chamo de fase século XXI do cineasta). Os outros dois títulos foram “Matança Necessária” (Essential Killing: 2010) e “11 Minutos” (11 Minutes: 2015).
Inspirado explicitamente na “A Grande Testemunha” (Au Hasard Balthazar: 1966), clássico do cinema francês e um dos mais influentes trabalhos de Robert Bresson (não confundir Robert com o fotógrafo Henri Cartier-Bresson, que ganhou uma exposição fotográfica há alguns anos no Brasil, “Henri Cartier-Bresson, Primeiras Fotografias”, analisada na coluna Exposições), “EO” apresenta a saga de um burrinho cinza que passa nas mãos de diferentes donos sem nunca encontrar a felicidade. Por essa semelhança de enredo e de proposta cinematográfica, o filme atual não pode ser tachado de tão original assim (entendeu agora o meu melindre em fazer tal afirmação no início deste post da coluna Cinema?!).
O contato com várias pessoas, além das incontáveis aventuras pela natureza e pela cidade (o animal vive fugindo), permite que EO (esse é o nome do burrinho, dado evidentemente pelo som onomatopeico que ele faz) testemunhe ao longo de sua trajetória de vida o descaso com a natureza, a maldade humana e a crueldade com os animais. Segundo Jerzy Skolimowski, seu filme é fruto do amor pelos animais e pela natureza e uma homenagem direta a “A Grande Testemunha”.
Obviamente, “EO” não está em cartaz em muitas salas de cinema no Brasil. Até onde sei, o filme ganhou projeções em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Florianópolis, Porto Alegre, Londrina, Niterói, Aracajú, Maceió e Vitória. Eu o assisti na quarta-feira passada no Espaço Itaú de Cinemas do Bourbon Shopping Pompéia. Na rede de cinema do banco laranja, há duas sessões nesta semana na unidade da Pompéia e duas na unidade da Augusta. Pelo que vi rapidamente, esse longa também está sendo exibido em São Paulo no Reserva Cultural, na Cinesala e no Petra Belas Artes. Se o seu namorado ou a sua namorada quiser pegar um cineminha neste 12 de junho, essa produção de Skolimowski só será uma boa pedida se ele/ela for do tipo mais intelectualizado(a).
O enredo de “EO” começa na Polônia. EO é o burrinho de Kasandra (interpretada por Sandra Drzymalska), jovem artista de uma companhia circense. Os dois são inseparáveis e se adoram. Kasandra utiliza EO em seus espetáculos no picadeiro e o tem como melhor amigo. Por isso, ela cuida com tanto zelo do adorável animal, treina constantemente com ele e não deixa que ninguém faça qualquer maldade com EO. Como nasceu no ambiente de shows artísticos, de mudanças constantes e de ensaios performáticos, o burrinho se acostumou àquela rotina e tem uma vida idílica ao lado de Kasandra. A moça carinhosa é uma espécie de mãe, melhor amiga e/ou companheira de todas as horas do protagonista do filme.
A rotina de EO segue uma maravilha até que um grupo de defensores dos direitos dos animais consegue emplacar leis que proíbem os circos poloneses de utilizar animais em suas apresentações. Assim, da noite para o dia, o burro e seus colegas de palco, como girafas, elefantes e pombos, não podem mais frequentar os shows da companhia nem permanecer em contato com os artistas. É o fim da linha na carreira circense de EO. O pior é que, uma vez retirado do circo, o burrinho não poderá mais conviver com Kasandra. A moça se desespera e vai às lágrimas quando uma ONG leva embora seu amigo de quatro patas.
Longe do circo, EO é mandado para um aras. Na nova morada, ele trabalha pesado ao lado dos funcionários humanos. Todos estão ali para servir aos cavalos, que possuem cuidados dignos de reis. Enquanto os puros-sangues são alimentados com que há de melhor, correm livremente pela fazenda, são supervisionados por ótimos veterinários, tem instalações confortáveis e são banhados frequentemente, o burrinho é obrigado a trabalhar sem descanso e sem qualquer luxo. Ou seja, ele está na última escada da dinâmica social dos animais do aras.
Por ser um tanto atabalhoado para um local tão requintado, EO acaba provocando alguns acidentes e não demora para ser expulso do aras. O burro é, então, enviado para uma fazenda em que os animais são usados em terapias com crianças com deficiências mentais. Nos contatos com os bichos, a meninada consegue se sociabilizar e expressar sentimentos mais facilmente. Na teoria, a nova rotina é agradável e tranquila para EO. Na nova morada, ele é bem tratado e não faz trabalhos pesados.
O problema é que o bicho não se esquece de Kasandra nem do dia a dia no circo. As recordações do tempo em que convivia com a moça, ensaiava para as apresentações e se apresentava para o público nas arquibancadas, o deixa melancólico. Longe do circo e, principalmente, de Kasandra, a vida de EO não tem a menor graça.
Para sua surpresa, o burrinho recebe, em um final de tarde, a visita de ninguém menos do que Kasandra. A moça vai até a fazenda só para se encontrar com o amigo de longa data. Não é preciso dizer que o reencontro é emocionante para a dupla. Eles não se cansam de se abraçar e trocar carinhos. Contudo, Kasandra precisa ir embora. Ela só tinha passado para dar um “oi” ao burro. Vendo-se novamente sozinho na fazenda, EO solta um grito de lamento e trata de fugir na calada da noite.
Inicia-se, a partir daí, as aventuras do bichinho pelos mais diferentes cenários e por alguns países europeus. Ele encara os perigos da floresta, os desafios da montanha, as contradições da cidade grande e os perrengues da zona rural, em um legítimo road movie. Passando de mão em mão como se fosse uma mercadoria, o burro presencia a crueldade humana nas mais distintas formas. Para cada pessoa legal que ele encontra pelo caminho, tem duas ou três figuras que agem de um jeito inconsequente, maldoso e transloucado. As vítimas da brutalidade dos homens são normalmente a natureza, a sociedade como um todo e os animais. O mundo é um local profundamente perigoso por culpa única e exclusivamente da humanidade, que não consegue viver sem matar, destruir e poluir.
Nesses ambientes de enormes e constantes dificuldades, acompanhamos o simples burrinho caminhando a passos lentos e com um olhar que mescla pureza e melancolia. EO lança-se no mundão com a cara e a coragem. Tudo o que ele quer é voltar a ver Kasandra. As lembranças e os sonhos moldam seu comportamento, em uma busca obstinada pela pessoa que mais ama. Conseguirá o animalzinho escapar das loucuras dos homens e concretizar seus anseios?! Esse é o mistério que move o drama de Jerzy Skolimowski.
“EO” possui em torno de 88 minutos de duração. O tempo reduzido do longa-metragem é positivo, pois sua narrativa é bastante parada e a história não é tão caudalosa assim. Da maneira como está, gostei: a produção está no tamanho perfeito! Se o filme se aproximasse das duas horas de extensão, como acontece normalmente no cinema comercial, na certa haveria cenas de suicídio na plateia, barulhos de roncos na sala e fugas desesperadas do público no meio da sessão.
Deixando um pouco de lado a tradição da coluna Cinema, vou começar a análise de “EO” pelos aspectos técnicos da produção. Afinal, esse longa-metragem chama mais a atenção pelos componentes cinematográficos do que pelos elementos da narrativa. Em primeiro lugar, precisamos apontar os seis tipos de enfoque de câmera usados por Skolimowski. Para mostrar a história do burrinho que se aventura pela Polônia e, em seguida, pela Europa, o diretor recorre: (1) ao ponto de vista dos olhos do animal, (2) ao enquadramento no rosto de EO, (3) ao mergulho na mente do bicho, (4) à visão geral da cena em que o protagonista está, (5) ao acompanhamento das personagens humanas para fora dos lugares onde o burro está e (6) ao panorama geral da paisagem/tomadas aéreas.
As três primeiras câmeras (número 1, 2 e 3 da minha lista) permitem que o espectador compreenda que a trama será contada da perspectiva do inusitado protagonista. O enquadramento a partir do que EO vê (câmera do tipo 1) é mais comum nas primeiras cenas do filme. Depois, ela deixa de ser usada recorrentemente. Porém, o enquadramento no rosto do burro e o mergulho na mente do bichinho permeiam o longa-metragem inteiro.
Confesso que entendi o motivo de Jerzy Skolimowski de insistir em mostrar a fisionomia de EO (câmera 2). Esse era o momento em que ele iria mostrar o sofrimento da personagem principal e seus sentimentos. Algo assim foi utilizado com muito êxito no filme “O Escafandro e a Borboleta” (Le Scaphandre et le Papillon: 2007). Sempre que se mostrava os olhos do homem tetraplégico, conseguimos assimilar o seu turbilhão emocional. O problema em “EO” é que não se atingiu esse mesmo efeito pelo enquadramento no rosto do animal. Não há nenhuma expressividade em seu olhar. Por mais simpático e melancólico que seja, o burrinho não tem qualquer expressão facial (como há em outros animais, por exemplo no cachorro). E não adianta jogar água nos olhos de EO para simular lágrimas. Nem assim, somos convencidos de que há choro ou que o bicho esteja sofrendo. Na minha visão, os únicos méritos desse tipo de enquadramento de câmera foram aproximar a plateia do protagonista e indicar o tamanho da melancolia do burro.
A tempestade emocional de EO é muito mais perceptível pelas câmeras que simulam o que se passa no interior de sua cabeça (número 3). As cenas das memórias, sonhos e devaneios do animal são sensacionais! Além de esteticamente impactantes, elas sim conseguem retratar o drama psicológico do protagonista com enorme fidedignidade. Curiosamente, toda vez que entramos na mente do bicho, assistimos a uma quebra no panorama narrativo. Aqui entram elementos simbólicos e existencialistas que exigem a interpretação da plateia. Portanto, é necessário um esforço de compreensão por parte do público para entender o que está se passando na tela (e, no caso, dentro do cérebro do protagonista).
Em relação à exposição dos acontecimentos dos homens e mulheres que se envolvem com EO (câmera do tipo 5), achei que essa parte do filme é importante para preencher as lacunas narrativas do longa-metragem. Se ficássemos apenas com a história do burrinho, acho que “EO” se tornaria excessivamente parado e chato, quiçá minúsculo em extensão (viraria uma obra com propriedades soníferas ou um curta metragem). Além disso, acompanhar as confusões e perturbações dos humanos ajuda a corroborar com a tese defendida pela produção: a humanidade é uma praga que extermina a natureza, seja a fauna, seja a flora. Não à toa, EO gosta tanto de Kasandra. A moça é a única figura que ele conhece que não possui comportamentos de vilania.
Ainda falando das cenas dos humanos que rodeiam o burrinho e da presença de Kasandra na narrativa, a história de “EO” possui uma diferença fundamental para a trama de “A Grande Testemunha”. Enquanto na produção de Robert Bresson acompanhamos simultaneamente os perrengues sofridos por Balthazar (o burrinho francês) e a rotina conflituosa de Marie (a moça que possui uma afinidade com o animal), no filme de Skolimowski não vemos a continuidade da trajetória de Kasandra. A artista circense só aparece uma vez no filme depois que EO é enxotado do circo por imposição dos grupos de proteção aos animais. O que acontece com a moça? Para onde Kasandra vai? Ela consegue superar a perda emocional do animal que tanto gostava?! Não sabemos, enquanto em “A Grande Testemunha” temos consciência exata do destino de Marie, que não é nada satisfatório e é tão trágico quanto ao desenlace de Balthazar.
Basicamente, “EO” tem três planos ficcionais: (I) a realidade nua e crua do burro, que é contada por três tipos de câmera (1, 2 e 4); (II) o universo interior de EO, com elementos oníricos, memoriais e de divagação, que é passado por duas classes de câmera (3 e 6); e (III) o contexto geral da trama, em especial a história dos seres humanos que se envolvem com EO, que é transmitido por duas modalidades de câmera (4 e 5). Compreender essa tripla divisão narrativa ajudará o espectador a aproveitar melhor a sessão de cinema e mergulhar na experiência estético-sensorial proposta pelo diretor polonês.
Por falar em experiência, “EO” é um filme para suscitar sensações e gerar reflexões no público. Estamos falando aqui de uma produção muito mais artística do que comercial. Se você espera que o drama de Jerzy Skolimowski seja passado didaticamente e de maneira linear, talvez você caia do cavalo. O longa-metragem tem pouquíssimos diálogos, um ritmo narrativo mais lento do que o usual (porém, mais rápido do que eu imaginava – tem muito filme iraniano mais parado do que “EO”), elementos de semiótica, forte intertextualidade cinematográfica e pesadas críticas sociais. Para conseguir um efeito poderoso, o filme utilizou-se muito bem da trilha sonora, dos efeitos visuais (leia-se montagem) e da fotografia.
A trilha sonora é um capítulo à parte de “EO”. Repare na magnitude das músicas escolhidas para compor as cenas e em como elas afetam a nossa experiência. Na maior parte do tempo, as canções são instrumentais. As canções comerciais e com letras surgem apenas quando acompanhamos os seres humanos ouvindo rádio. Em vários momentos, o silêncio predomina, o que potencializa a dramaticidade das cenas e a angústia do protagonista. Assistir ao burrinho caminhando no maior silêncio ou com uma música instrumental que simula seu estado emocional é de tirar o fôlego!
Juntamente com a trilha sonora, temos componentes estético-visuais que enriquecem o filme. Isso fica mais nítido nas cenas introspectivas de EO, que para mim, compõem a melhor parte dessa produção. Note o constante jogo de claro e escuro. Em muitos instantes, temos quase um longa-metragem noir. Perceba também o uso proposital de certas cores: vermelho, azul, branco. A predominância desses tons em cada fase do filme tem como objetivo transmitir um determinado sentimento/sensação na plateia. Essas tonalidades informam, invariavelmente, o estado de espírito do burrinho naquele momento da vida. Além disso, temos dois tipos de fotografia bem distintas em “EO”: uma mostra a realidade e a outra mostra o universo introspectivo do protagonista. É ou não é espetacular o uso desse recurso cinematográfico, hein? Do ponto de vista técnico, o maior mérito do filme está na aplicação de uma montagem pouco convencional, extremamente impactante e muitíssimo cirúrgica.
Em relação ao conteúdo, o novo trabalho de Skolimowski se destaca pelas fortes críticas ao nosso estilo de vida contemporâneo. Mais tocante do que falar é mostrar. E “EO” joga nas nossas caras o quanto o ser humano pode ser desprezível em suas atitudes individuais e coletivas. Assistimos, por meio da trajetória de um simples burro, a destruição da natureza e o extermínio de vários grupos de animais. Nessa linha de debate, uma passagem marcante do filme é quando EO escapa da fazenda e foge no meio da noite para uma floresta. Aí a plateia fica com o coração na mão e pensa assustada: “Coitado, será que ele conseguirá sobreviver no meio de um lugar tão selvagem?!”. O que não sabemos é que, mesmo em uma floresta no meio da noite, o maior perigo não está no surgimento de uma raposa, um jacaré ou uma cobra. O grande vilão continua sendo o homem. Confesso que é chocante chegar a essa conclusão.
Outro tipo de crítica que “EO” faz é a social. Achei encantador (além de totalmente pertinente) a dicotomia da vida do burro com a vida dos cavalos no aras. Não é difícil perceber quem faz parte da elite, passando o dia se embelezando e usufruindo das comodidades que o luxo pode proporcionar, e quem integra o proletariado, passando o dia no trabalho pesado e sem o atendimento às necessidades básicas. Impossível não lembrarmos, nessa hora, de “A Revolução dos Bichos” (Companhia das Letras), clássico literário de George Orwell que é anterior a “A Grande Testemunha”. O livro é de 1945, enquanto o filme de Bresson é de 1966.
Ainda na seara das críticas feitas pelo enredo do longa-metragem de Jerzy Skolimowski, podemos enxergar sem muito esforço os questionamentos existencialistas do protagonista de “EO”. O burrinho parece sempre deslocado: no meio de girafas, cavalos, cachorros, vacas, crianças, torcedores de futebol, artistas circenses, terapeutas... E onde estão os outros burros? Quem são os seus semelhantes para ele interagir?! Outra questão é o sonho de liberdade. Sempre aprisionado e utilizado como ferramenta produtiva da sociedade humana, EO aspira uma vida em que possa fazer o que quiser. Esse tipo de reflexão surge naturalmente quando ele observa ou relembra os cavalos galopando na pradaria.
O conflito do filme está na busca de EO por Kasandra. O amor do burro pela ex-companheira de circo é o que faz a roda do longa-metragem girar e que dá graça ao drama. Paradoxalmente, o sentimento é recíproco, porque a menina também adora seu amiguinho de quatro patas e quer ficar ao lado dele. Entendido isso, refletimos ingenuamente: “Se ele quer ficar com ela e ela quer ficar com ele, está tudo resolvido – eles poderão ficar juntos”. Nananinanão! A vida não é tão fácil e lógica como os mais inocentes podem supor. Nem mesmo quando há concordância mútua quanto a um determinado assunto, a sociedade humana deixa de exercer sua influência para atrapalhar tudo. EO e Kassandra não podem ficar juntos por imposições meramente sociais. Por essa perspectiva, não apenas a humanidade é a vilã da história como a sociedade atual também é. Aí que entram as cenas de violência e brutalidade que provocam calafrios na plateia.
“EO” é um filme muito bem-produzido e possui várias camadas que devem ser descascadas aos poucos pela plateia. Por exemplo, achei seu início sublime. Ao mesmo tempo que parece que o burrinho está nascendo, EO está, no fim das contas, se apresentando no picadeiro com Kasandra. O jeito com que Jerzy Skolimowski deixa sempre uma porta aberta para uma nova interpretação do público é digno de elogios (eu vi o nascimento de EO nas cenas iniciais, mas você pode muito bem ver outra coisa).
Já que falei da abertura de “EO”, tenho que falar do seu desfecho. Também gostei do encerramento do longa. Ele é forte e contundente, sem ser meloso. Ficamos mais assustados com o que acontece com o burro do que tristes. Até porque a vida dele já reservou tantas tristezas e limitações que nosso nível de expectativa cai para quase zero.
Para encerrarmos este post da coluna Cinema, aqui vão mais algumas curiosidades de “EO”. Apesar de ter poucos diálogos, o filme é falado em quatro idiomas: polaco, italiano, inglês e francês. Essa pluralidade linguística mostra as diferentes nacionalidades das personagens e indica o quanto o burro viajou pela Europa. Além disso, quando vemos pessoas de diferentes países na trama, a história ganha naturalmente em universalidade. Ou seja, os problemas ambientais, sociais e de direitos dos animais não são restritos à Polônia ou Itália, locais onde a maior parte do drama de EO se passa, mas do mundo inteiro.
No fim do filme, Skolimowski teve a preocupação de informar a plateia que os animais utilizados na produção não sofreram maus tratos e tiveram seus direitos respeitados. É uma atitude simples e aparentemente banal colocar essa mensagem antes da subida dos créditos, mas que mostra que o discurso transmitido durante o longa-metragem não é da boca para fora.
Confira, a seguir, o trailer de “EO” (IO: 2022):
Por hoje é só, pessoal!
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