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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Filmes: Emilia Pérez – O musical de Jacques Audiard é o favorito ao Oscar em 2025

Foto do escritor: Ricardo BonacorciRicardo Bonacorci

Em cartaz nos cinemas brasileiros desde 6 de fevereiro, esta produção francesa é protagonizada por Karla Sofía Gascón, Zoë Saldaña e Selena Gomez. Com 13 indicações ao Oscar, o longa-metragem apresenta o drama de um violento traficante de drogas mexicano que sonha em fazer a cirurgia de redesignação sexual e se tornar mulher.

O filme Emilia Pérez (2024) é o musical dramático francês que foi dirigido e roteirizado por Jacques Audiard e foi estrelado por Karla Sofía Gascón, Zoë Saldaña e Selena Gomez

O começo de 2025 está agitado no Brasil. Talvez o mais correto seria dizer agitadíssimo. Pelo menos no campo artístico-cultural, a praia paradisíaca que o Bonas Histórias se instalou e vive feliz da vida. Tudo porque “Ainda Estou Aqui” (2024), o mais recente filme de Walter Salles, conseguiu a proeza de ser indicado a três categorias do Oscar, incluindo a inédita participação entre os melhores de Hollywood. Note bem que eu falei (na verdade, escrevi) três indicações. TRÊS! E uma delas é para Melhor Filme. MELHOR FILME! Em outras palavras, a adaptação audiovisual do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva não está concorrendo “apenas” ao Melhor Filme Internacional, mas também ao Melhor Filme, a principal categoria da premiação. Aí está a grande (e grata) surpresa deste começo de ano. Convenhamos que se trata de um feito notável para o combalido cinema brasileiro e, de forma geral, para a maltratada arte nacional.


A ansiedade pelo evento da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles é tão grande entre muitos de meus conterrâneos (se você está nesse grupo, põe o dedo aqui que já vai fechar!) que tenho a impressão de que o país está se preparando para a disputa da decisão da Copa do Mundo. A diferença é que dessa vez o palco da peleja não é o campo de futebol, em que ostentamos orgulhosamente cinco estrelas. E sim uma competição cinematográfica, em que ainda não somos estrelados (ou oscarizados). Nesse terreno mais sofisticado, infelizmente, ainda não perdemos o Complexo de Vira-lata, estigma que persegue o imaginário coletivo e a alma nacional desde que Cabral aportou em Porto Seguro. Se Nelson Rodrigues estivesse vivo, certamente escreveria em suas colunas jornalísticas que o Brasil será, em 2 de março, a pátria de câmera na mão. Uhu!


Confesso que não via tanta expectativa na indústria brasileira de cinema desde “Cidade de Deus” (2002), a melhor produção nacional da história que foi indicada a quatro categorias do Oscar. QUATRO! É bom que se diga que várias dessas indicações foram em quesitos técnicos, o que é até mais difícil para uma produção latino-americana.  Contudo, o trabalho espetacular de Fernando Meirelles foi atrapalhado pela péssima divulgação nos Estados Unidos e por terríveis decisões de exibição na Terra do Tio Sam, o que dinamitou suas chances de êxito na principal cerimônia do cinema mundial. Como resultado, o filmão verde-amarelo saiu de mãos abanando do teatro californiano, apesar do reconhecimento da crítica nacional e internacional pela sua excelência. Para a indignação de muitos brasucas (estou nesse grupo, tá?), “Cidade de Deus” nem mesmo foi indicado a Melhor Filme Internacional (na época, Melhor Filme Estrangeiro). Revoltante!


Pelo visto, a equipe de Marketing (“ESPM, maravilhosa, cheia de tantos As! ESPM, maravilhosa, a melhor escola do Brasil!”) de “Ainda Estou Aqui” não foi pelo mesmo caminho e está fazendo tudo corretamente. Ufa! O mais legal foi perceber que, além das indicações, a sensação é que a pouco menos de um mês do Oscar temos, enfim, chances concretas de vitória. Se o longa-metragem de Salles não vencer, Fernandinha Torres (que concorre como melhor atriz) pode voltar para casa com a estatueta dourada em mãos. Há até quem já sonhe em sair às ruas brasileiras, na madrugada de domingo para segunda, gritando: “É campeão! É campeão! É campeão!”.

Dirigido e roteirizado por Jacques Audiard e estrelado por Karla Sofía Gascón, Zoë Saldaña e Selena Gomez, Emilia Pérez é o filme francês que bateu o recorde de indicações ao Oscar

Mas por que será que estou falando disso se o post de hoje da coluna Cinema é sobre “Emilia Pérez” (2024), o musical do francês Jacques Audiard, hein?! Calma, querido(a) e impaciente leitor(a). Neste blog que tem mais curvas do que retas, começamos a conversar e não temos a menor preocupação para onde nosso bate-papo irá caminhar. É comum termos que voltar para o início do texto depois do derramamento de várias laudas ou pedir desculpas ao público pela falta vergonhosa de foco de nossa interminável procissão de palavras. Mesmo sabendo que o desvio de rota e a prosa aleatória fazem parte do DNA do Bonas Histórias, tenho a obrigação (moral e cívica) de alegar, tal qual o advogado de defesa de um serial killer, que dessa vez, só dessa vez, há alguma lógica por trás das minhas mal traçadas linhas. Juro!


O começo de ano é normalmente um período empolgante para os cinéfilos dos quatro cantos do planetinha azul. É nessa época que corremos, tal qual crianças nas portas das sorveterias ou adolescentes no acesso aos shows de bandas de K-pop, para as salas de cinema. A diversão é conferir os títulos que estão na disputa pelo Oscar. Como atuo como crítico cinematográfico (a coluna Cinema está aí para não me desmentir), a romaria às redes de exibição adquire caráter de obrigação profissional. Se no restante da temporada visito semanalmente o cinemão, em janeiro e fevereiro vou quase todos os dias às salas de projeção. Afinal, não quero parecer aqueles artistas que são convocados para opinar na televisão sobre a premiação, mas não assistiram a quase nenhum longa-metragem na disputa. Alguém aí se lembrou de Glória Pires em 2016?!


Como em 2025 temos um filme brasileiro com chances de faturar o Oscar, minha empolgação se potencializou. Na minha cabeça banhada de racionalidade, queria ver todos os indicados para saber se “Ainda Estou Aqui” e Fernanda Torres têm realmente condições de vitória. Só assim, poderia tecer uma opinião contundente sobre esse assunto (e compartilhar, por supuesto, com os leitores do Bonas Histórias). Faz sentido, não? Para mim há tanta lógica nesse processo investigativo que já assisti aos principais finalistas: “Emilia Pérez”, “A Substância” (The Substance: 2024), “Anora” (2024), “Conclave” (2024), “Babygirl” (2024), “Um Completo Desconhecido” (A Complete Unknown: 2024) e “O Brutalista” (The Brutalist: 2024). Quando digo que não saio do cinema nas últimas semanas, não estou brincando. E olha que omiti a informação de que, quando não estou nas sessões dos filmes do Oscar, estou curtindo o portfólio imperdível de “Noches de Terror – Verano Maldito”, do Cine Gaumont. Porém, essa é conversa para outro dedo de prosa. Não misturemos alhos com bugalhos – se bem que os leitores mais antigos da coluna já sabem que sou fã dos longas-metragens de terror.  


Na minha simulação de jurado do Oscar (ou de torcedor de arquibancada do cinema nacional), surgiu um probleminha. Na verdade, problema. Para ser bem franco, problemão! Até agora não consegui ver a nova produção de Walter Salles. Ai, ai, ai. Como posso identificar as chances de um filme conquistar a estatueta se não o conferi?! Olha eu me tornando Glória Pires, gente! Antes que alguém me acuse de ter virado bolsonarista (cruz-credo!) ou de flertar com os extremistas de direita (bate na madeira três vezes – toc, toc, toc), que tentaram boicotar essa história só porque ela põe o dedo na podridão da Ditadura Militar, informo que o motivo dessa minha mácula cinematográfica é mais trivial do que a vã filosofia poderia supor. Como moro no exterior, mais precisamente na Argentina (todas as noites antes de dormir, canto “Mi Buenos Aires Querido”), as redes de exibição de alguns países ainda não disponibilizaram esse título ao público. É o caso do vizinho albiceleste.

Um dos favoritos ao Oscar de 2025, com 13 indicações em 12 categorias, Emilia Pérez (2024) é o filme francês de Jacques Audiard que é ambientado no México

Sem conseguir assistir a “Ainda Estou Aqui” (não vejo a hora que estreie nas salas portenhas), me restou como alternativa analisar muito bem os concorrentes. E, numa avaliação geral, garanto que o adversário mais temido para a produção brasileira não é nenhum título norte-americano (acredite se quiser) e sim o competidor francês (que pode faturar tanto a estatueta de Melhor Filme quanto a de Melhor Filme Internacional). Será que como em 2020 teremos uma surpresa à la “Parasita” (Gisaengchung: 2019)?! Foi com essa sensação/pensamento que saí do Multiplex de Belgrano, a rede de exibição mais perto de casa, na madrugada do penúltimo sábado de janeiro. Após a sessão de “Emilia Pérez”, fiquei com a impressão de que o vencedor da principal categoria do Oscar pode ser uma produção gringa. Daí entramos efetivamente no post de hoje da coluna Cinema. Viu como esperar um pouco não faz mal a ninguém?! Que pressa, meu Deus!


Para começo de conversa (começo de conversa que já acumula pelo menos um quarto de hora de leitura), “Emilia Pérez” é um filmão. Não à toa, é apontado pela crítica especializada como o favorito para enfileirar algumas estatuetas no próximo mês. Ele alcançou 13 indicações ao Oscar: além de Melhor Filme Geral e Melhor Filme Internacional, concorre nas categorias de Melhor Diretor, Atriz, Atriz Coadjuvante, Roteiro Adaptado, Edição, Fotografia, Som, Maquiagem & Penteado, Trilha Sonora e, ufa, Canção Original (com duas músicas). Portanto, foram 13 indicações em 12 categorias, um recorde absoluto para as produções que não são faladas em inglês. À título de comparação, lembre-se que “Cidade de Deus”, nosso Pelé da Sétima Arte, recebeu quatro indicações.


É bom avisar que o longa-metragem francês vem de muitas conquistas nos principais festivais e premiações do cinema mundial. Em Cannes, por exemplo, “Emilia Pérez” levou o Prêmio do Juri (mas perdeu surpreendentemente a Palma de Ouro para “Anora”). No Globo de Ouro, foi coroado como Melhor Comédia ou Musical e Melhor Filme em Língua Estrangeira (mas “Brutalista”, talvez seu principal rival no Oscar, faturou o prêmio de Melhor Filme Dramático). Portanto seu favoritismo entre os concorrentes ao evento de Los Angeles não surgiu do nada nem é peça de ficção criada pelos críticos francófilos. Tal cacife foi construído com o peso de uma bagagem repleta de prêmios relevantes. Essa talvez seja a má notícia para aqueles que, como eu, torcem pelas artes e pelos artistas verde-amarelos. Na minha visão, Jacques Audiard dirigiu o melhor longa-metragem desta temporada – não se esqueça que não vi “Ainda Estou Aqui” e minha afirmação abrange apenas os adversários do filme brasileiro.


Então quer dizer que “Emilia Pérez” é a barbada do próximo o Oscar e “Ainda Estou Aqui” é carta fora do baralho? Aí está o X da questão, senhoras e senhores. A resposta é um sonoro nananinanão! Não dá para fazermos essas previsões. Agora vem a boa notícia para nós que sempre torcemos pelo Senna contra Prost – o drama francês tem alguns sérios problemas de ordem narrativa e cinematográfica, que podem atrapalhá-lo numa análise mais criteriosa dos jurados da Academia de Los Angeles. Sendo bem franco (desculpe-me pelo trocadilho involuntário) com os leitores do Bonas Histórias, o último vencedor do Oscar com tantas deficiências foi “Moonlight - Sob a Luz do Luar" (Moonlight: 2016). Não por acaso, o longa de Audiard guarda incontáveis semelhanças (positivas e negativas) com a premiada e fraquíssima produção de Barry Jenkins. Para entender a dicotomia (ótimo filme, mas com graves falhas) e a associação (com o polêmico vencedor da estatueta de 2017), mergulhemos a fundo neste título audiovisual.

Principal produção do cineasta francês Jacques Audiard, Emilia Pérez (2024) é o musical protagonizado por Karla Sofía Gascón, atriz trans nascida na Espanha e radicada no México

Orçado em aproximadamente 27 milhões de euros, “Emilia Pérez” foi escrito pelo próprio Jacques Audiard, que pela primeira vez na carreira desenvolveu o roteiro de seu filme sozinho. O cineasta se inspirou numa personagem de “Écoute” (sem edição em português), romance de Boris Razon publicado em 2018 na França. A partir da leitura do livro de Razon, Audiard criou a trama ficcional do temido traficante de drogas mexicano que decide passar por uma cirurgia de redesignação sexual. O grande sonho do protagonista do longa-metragem é se tonar efetivamente uma mulher. Ele não aguenta mais viver no corpo masculino e ter que transmitir a imagem de durão e destemido para seu bando e para os adversários de crime organizado.


Filmado inteiramente na França (nos estúdios parisienses e em alguns cenários externos no interior do país) entre maio e julho de 2023, “Emilia Pérez” é oficialmente uma coprodução entre França, México e Bélgica. Contudo, o mundo o enxerga como sendo um longa francês. Por isso, o descrevo desse jeito neste post da coluna Cinema. Lançado no circuito comercial europeu no fim de agosto de 2024, o filme chegou às telonas dos Estados Unidos no fim do ano (condição para concorrer ao Oscar deste ano). No Brasil, ele estreou apenas na semana passada, em 6 de fevereiro. E aqui na Argentina, é possível vê-lo desde meados de janeiro de 2025. Só não me pergunte o porquê desse quase um mês de diferença de exibição entre os dois países sul-americanos. Não faço ideia.


O elenco de “Emilia Pérez” é constituído por uma mescla de nomes conhecidos no cinema norte-americano e de figuras com popularidade restrita à Europa e ao México. O filme é estrelado pela espanhola Karla Sofía Gascón, do seriado “Senhor dos Céus” (El Señor de los Cielos: 2013/2024), pela norte-americana Zoë Saldaña, de “Star Trek” (2009) e “Avatar” (2009), e pela norte-americana Selena Gomez, de “Um Dia de Chuva em Nova York” (A Rainy Day in New York: 2018). Não preciso dizer que as duas últimas atrizes que citei são as famosinhas de Hollywood. Completam o elenco principal a mexicana Adriana Paz, o venezuelano Édgar Ramírez e o israelense Mark Ivanir.


Como se trata de um musical (eu falei que é um musical, né?), sinto-me na obrigação de apresentar a equipe técnica responsável pelas canções e pelas cenas dançantes. Certamente, Marcelinha, da Dança & Expressão e da coluna Dança, ficará orgulhosa do irmãozinho por esse cuidado da parte dele.


Camille, cantora e compositora francesa, criou as faixas originais do filme ao lado do marido, Clément Ducol, cantor, compositor, arranjador e orquestrador francês. Destaque para a empolgante “El Mal” (talvez a melhor cena do longa – e do cinema em 2024) e a emocionante “Mi Camino” (que revendo agora não parece tão boa, mas durante a sessão foi bastante impactante). A produção musical é do também francês Pierre-Marie Dru. Já a coreografia ficou à cargo de Damien Jalet, coreógrafo e dançarino franco-belga.


Veja, a seguir, as duas cenas de “Emilia Pérez” que citei no parágrafo acima. Acredito que elas demonstram a força dramática e a beleza musical desta produção:

Confesso que só por este trecho de “El Mal”, eu daria o Oscar para Zoë Saldaña como Melhor Atriz Coadjuvante e para Camille/Clément Ducol como Melhor Canção Original. De lambuja, ainda premiaria o filme francês com os títulos de Melhor Som e de Melhor Trilha Sonora. Por falar nisso, essas quatro indicações me parecem como as com mais chances de resultarem em estatueta para “Emilia Pérez”. Juro que não vejo um adversário à altura para sequer concorrer com a produção de Audiard nesse quarteto de quesitos. Quando o assunto é música e dança, o Oscar de 2025 me parece óbvio.


Falei, falei e falei sobre o filme e ainda não apresentei em detalhes seu enredo. Onde estou com a cabeça, né?! Então aí vai, senhoras e senhores, a explicação pormenorizada da trama de “Emilia Pérez”. Essa história começa na Cidade do México. Rita Mora Castro (interpretada por Zoe Saldaña) é uma jovem e solitária advogada que ainda não conquistou o merecido espaço profissional. Com problemas financeiros e amargurada pela falta de reconhecimento, ela se sujeita a fornecer argumentos e teses jurídicas para que outros advogados brilhem no tribunal e aos olhos da imprensa. É o caso da defesa de um sujeito preso por praticar feminicídio. Por mais que haja provas contra ele, Rita consegue desenvolver uma linha de defesa brilhante que o livra das garras da lei. Feliz com o trabalho impecável do ponto de vista do Direito Criminal, ela assiste ao advogado responsável pelo caso (que a contratou como mera assistente) e o cliente saírem festejando do julgamento. Esse é um bom retrato do quão machista e injusta é a sociedade mexicana.   


Entretanto, para a surpresa da Doutora Castro, pouco depois da audiência final deste caso, ela recebe a ligação telefônica de um homem misterioso a parabenizando pelo excelente trabalho. Como ele sabe que foi ela, e não o advogado que aparece na TV, a responsável pela defesa do agora “inocente assassino” da esposa? Enquanto a moça faz esse tipo de elucubração, o cara no outro lado da linha pede uma reunião urgente e passa um endereço suspeito. Ele quer se encontrar imediatamente com a advogada para que ela cuide de um caso delicado dele. Por mais receosa que fica com a abordagem nem um pouco convencional, Rita sabe que tem pouco a perder. As contas em casa se avolumam e ela precisa conseguir um novo trabalho remunerado sim ou sim. Dessa maneira, aceita o encontro numa rua barra-pesada da capital mexicana.


O problema é que... como vou dizer isso para os leitores do Bonas Histórias? Tá bom, vou ser direto assim como o filme foi. Ela é sequestrada quando esperava o possível futuro cliente chegar. Quem disse que Rita não tinha nada a perder, hein? Talvez a própria vida fosse algo que ela não pudesse abrir mão naquele momento. Ai, ai, ai. Em suma, a jovem é levada com o rosto tapado para um lugar longe da cidade. No meio do mato (o mais correto seria dizer no ermo deserto do interior do país), ela conhece o misterioso interlocutor. Trata-se de Juan Del Monte (Karla Sofía Gascón), um dos mais sanguinários traficantes de drogas. Seu apelido no submundo do crime era Manitas. Manitas Del Monte.

Emilia Pérez (2024) é o filme francês que venceu o Prêmio do Juri no Festival de Cannes de 2024 e ganhou como Melhor Comédia ou Musical e Melhor Filme em Língua Estrangeira no Globo de Ouro de 2025

Por mais chocante que seja o contato inicial com o poderoso e temido criminoso, Rita sente que não corre perigo ali. O bandido quer apenas contratá-la para um trabalho para lá de delicado. Del Monte revela que quer se tornar uma mulher. Há dois anos, toma hormônios femininos e se sente, enfim, pronto para fazer a operação de mudança de sexo. Seu sonho desde a infância/adolescência é abandonar o corpo masculino e viver num corpo que represente seus reais anseios. Se Rita o ajudar em todo o processo de se transformar em uma mulher, ela receberá alguns milhões de dólares em sua conta bancária.


As responsabilidades da advogada são: escolher o melhor centro médico no exterior para fazer a cirurgia; gerar os documentos legais para a nova pessoa que surgirá da sala de operações; cuidar para que a fortuna ilegal do traficante seja transferida para contas insuspeitas no exterior; providenciar a mudança da família dele – mulher (Selena Gomez) e dois filhos – para a Europa, onde deverão viver com conforto e segurança; simular a morte de Del Monte para aplacar as possíveis suspeitas dos inimigos; e cuidar da recuperação médica dele/dela nas primeiras semanas e meses do pós-cirurgia.


O único pedido do traficante é que Rita não conte NADA sobre esse plano para NINGUÉM. NINGUÉM pode saber da transformação! NEM mesmo Jessi, a esposa dele, e os filhos do casal saberão o que aconteceu efetivamente com Juan Del Monte. Para O MUNDO INTEIRO (familiares, amigos, funcionários do cartel de drogas, mídia, polícia, governo etc.), o sanguinário traficante faleceu e ponto final. E, a milhares e milhares de quilômetros de distância do México, viverá uma mulher com abastada situação financeira, que não tem qualquer vínculo com o defunto, o universo das drogas e a família Del Monte.    


Com a aprovação de Rita, o plano é colocado em prática e realizado com total êxito. Por sua competência profissional, a advogada certifica-se que tudo saia conforme o planejado. Nasce, assim, Emilia Pérez (Karla Sofía Gascón) na sala de cirurgia do Dr. Vasserman (Mark Ivanir), um respeitado médico israelense. Enquanto isso, Juan Del Monte, segundo as notícias dos principais veículos de comunicação do México, morre em um trágico atentado terrorista promovido por facções rivais. Quando se certifica que a (ex)mulher e os filhos estão bem alojados na Suíça, apesar da tristeza pela sua morte, e que está plenamente recuperada da operação, Emilia paga a fortuna prometida para Rita e some no mundo. Nem a doutora sabe para onde a nova mulher foi e o que fará da vida a partir de agora.   

Ambientado no México, Emilia Pérez é o musical francês que apresenta o drama de Juan Del Monte, um traficante de drogas que deseja se tornar mulher

Quatro anos mais tarde, Rita está vivendo em Londres. Ela deixou o México há um tempão e foi trabalhar na capital inglesa. Apesar da vida abastada e do sucesso profissional, uma coisa não mudou: ela continua extremamente solitária. Em uma saída despretensiosa de happy hour, a advogada conhece uma mexicana que também imigrou para a Europa. O bate-papo entre as duas flui facilmente, o que faz despertar em Rita a sensação de que conseguirá uma amizade com a compatriota. Nada como a ligação cultural para aproximar as pessoas e derrubar barreiras de relacionamento.


Entretanto, no meio da conversa descontraída no restaurante/bar londrino, a ficha cai. Quem está ali diante de Rita não é uma completa desconhecida. Trata-se dela – Emilia Pérez. A mulher trans procurou a antiga funcionária porque quer contratá-la mais uma vez. Agora a missão é fazer com que a viúva e os órfãos de Juan Del Monte retornem com segurança à Cidade do México. Emilia sente muitas saudades deles e não consegue mais viver longe dos filhos. Assim, quer se passar por irmã de Juan e levar os parentes para viverem com ela em uma mansão nas redondezas da capital mexicana. Caberá a Rita efetuar a operação de mudança de residência de todos sem que ninguém desconfie de nada.


O que as duas personagens femininas do filme de Jacques Audiard não imaginavam eram as incontáveis surpresas que as esperavam no retorno à terra natal. Enquanto tenta reconquistar a confiança da ex-mulher, agora no papel de cunhada, e dos filhos, agora transmutados em sobrinhos, dentro de casa, Emilia buscará fora do lar um novo objetivo profissional, totalmente antagônico àquele do antigo chefão do tráfico. Nessa nova empreitada, ela vai querer ter como braço direito alguém de sua máxima confiança. Começa aí o segundo capítulo da parceria entre a visionária Emilia Pérez e a destemida Rita Mora Castro.


O longa-metragem “Emilia Pérez” tem duração de duas horas e dez minutos. Como já falei (falei? Falei sim!), ele é um musical dramático. Por que reforço essa questão? Porque sei que tem muita gente que não gosta desse tipo de filme. Eu adoro. Ainda assim, é bom dizer que a produção francesa é um musical com pegada light. O que seria isso? Ele não é todo musicalizado. Há cenas cantadas e dançadas, ao melhor estilo ópera. Porém, há muitas cenas dramatizadas do jeito convencional, como se não fosse um musical. Para completar, Audiard ainda foi pelo meio do caminho em alguns momentos e inseriu partes que são um mix dos dois universos cinematográficos: interpretação convencional com fragmentos de cantoria, mas sem dança. Portanto, “Emilia Pérez” está mais para "La La Land - Cantando Estações" (La La Land: 2016) e “O Rei do Show” (The Greatest Showman: 2017) do que para “Evita” (1996) e “Mamma Mia!” (2008).

O filme Emilia Pérez é o drama protagonizado por Karla Sofía Gascón, Zoë Saldaña e Selena Gomez que tem como tema a redesignação sexual

Esse talvez tenha sido o maior acerto deste longa. Ao não abraçar totalmente o musical, ele permitiu dialogar com uma multidão de cinéfilos que tem sérias dificuldade para compreender as mensagens transmitidas pelas canções. Nunca vou me esquecer do relato de uma amiga querida quando terminamos de ver “Evita”. Eu estava empolgado com o que presenciei e ela mostrava-se bastante entediada com nossa sessão caseira de cinema. Aí perguntei: “Do que você não gostou, afinal?!”. E ela surpreendentemente disparou como uma bomba: “Esperei, esperei, esperei o filme começar e ele nunca começou. Os atores só ficaram cantando. Uma vez tudo bem, mas o filme inteiro não dá. Uma chatice!”. Inconformado com o que ouvi, insisti no questionamento: “E você não cogitou a ideia de compreender as letras das músicas de ‘Evita’?!”. Aí ouvi algo que me perturbou por anos: “Não!”. Como alguém assiste a um musical e não procura interpretar a mensagem do que é cantado em cena, Santo Deus?!    


Assim, é possível todos os públicos assistirem a “Emilia Pérez” sem crise e sem discussão pós sessão de cinema. Em tempos em que o paladar das plateias está mais para as sagas de super-heróis do que para as produções surrealistas, esse expediente se faz obrigatório. Em outras palavras, até os espectadores com pouquíssima disposição interpretativa – beijinho, Iris! – conseguirão acompanhar esta trama numa boa. É claro que se você tiver sensibilidade aguçada para a overdose sonoro-musical criada por Jacques Audiard, mais impactante será a experiência cinematográfica.


Sei que já disse isso, mas insisto, repito: várias cenas musicais de “Emilia Pérez” são simplesmente sensacionais! Além das já citadas passagens de “El Mal” e “Mi Camino”, posso apontar como destaques positivos “El Alegato”, no comecinho do filme em que Rita é apresentada como uma profissional engajada e competente, “Todo y Nada”, quando conhecemos o drama da advogada sem dinheiro e sem perspectiva profissional que aceita se encontrar com o cliente misterioso, “La Vaginoplastia”, processo médico de mudança de gênero de Juan Del Monte/Emilia Pérez, e “Bienvenida”, já no meio do longa-metragem quando Jessi, a esposa/viúva de Juan volta para o México e vai viver na casa de Emilia. Confira, a seguir, esses trechos e me diga depois se não são fantásticos:

Quem acompanhou com atenção as cenas que selecionei acima deve ter notado a extensa variedade de ritmos musicais contemplados nessa produção. É um tal de Hip-hop, Pop, Rap, Eletrônico, Balada Romântica, Rock etc. Com um pouco de boa vontade do ouvinte, dá até para escutar Corridos Tumbados e Reggaeton, gêneros que são, respectivamente, a cara do México e da América Central.  A sensação é que cada momento desta história tem um estilo musical característico, que foi pensado para se encaixar com precisão naquela tensão dramática. Incrível, né?!


É bom que se diga que essa pluralidade melódica confere um ar de modernidade a “Emilia Pérez”. Convenhamos que falar de musical no cinema remete automaticamente aos anos 1950, a Era de Ouro dos musicais hollywoodianos. Por isso, achei que o filme de Audiard tem uma pegada carismática, versátil e contemporânea, o que dialoga com seu enredo engajado e com cara do século XXI. Ao mesmo tempo, somos levados a uma viagem sonora extremamente fidedigna pelo México dos dias de hoje. Falo com propriedade de causa pois estou muito ligado ao cenário musical latino – conforme apresentado no mês passado no post com as Melhores Músicas Ruins da América Latina. A equipe de compositores e da trilha sonora de “Emilia Pérez” até pode ser totalmente francesa, mas a sonoridade do longa-metragem é beeeeeeeeem mexicana/latina. Seguro!


Em relação ao enredo, a história é boa. Porém, não mais do que isso. Convenhamos que não se trata de uma trama muito original. Ou alguém aí se esqueceu de “Grande Sertão: Veredas” (Companhia de Bolso), clássico de João Guimarães Rosa, hein? Para não cometer sacrilégios literários, o romance do brasileiro mostra exatamente o inverso do drama de “Emilia Pérez”. Só não dou mais detalhes para não deixar escapulir o spoiler de um dos mais incríveis livros nacionais – se bem que acho que já dei. Ai, ai, ai.


Para quem quiser utilizar a falta de originalidade para diminuir o filme de Jacques Audiard, preciso dizer que (quase) todos os principais postulantes ao Oscar de 2025 escorregam neste aspecto. É senhoras e senhores, temos um problema de criatividade nesta temporada cinematográfica. Não acredita em mim? Então vejamos... “A Substância” é uma mistura de “Homem Elefante” (The Elephant Man: 1980), “Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard: 1950) e “Professor Aloprado” (The Nutty Professor: 1963). “Anora” é um mix de “Uma Linda Mulher” (Pretty Woman: 1990), “Esqueceram de Mim” (Home Alone: 1990) e “Se Beber, Não Case!” (The Hangover: 2009). “Conclave”, convenhamos, lembra bastante “Dois Papas” (The Two Popes: 2019), “O Sequestro do Papa” (Rapito: 2023) e boa parte dos romances de Dan Brown. Por sua vez, “Babygirl” seria uma releitura de “Rainha de Copas” (Dronningen: 2019) ou até mesmo de “Pobres Criaturas” (Poor Things: 2023). “Um Completo Desconhecido” é a versão menos charmosa e carismática de “Nasce Uma Estrela” (A Star Is Born: 2018).

Um dos principais adversários de “Ainda Estou Aqui” no Oscar de 2025, Emilia Pérez é o filme francês que encanta pelas cenas musicais e pelo drama de um homem que sonha em ter o corpo de mulher

Meus conterrâneos que me desculpem, mas até mesmo “Ainda Estou Aqui” vai pelo mesmo caminho. Se o romance de Marcelo Rubens Paiva era impactante na época de seu lançamento (e ainda é!), um filme com esse enredo em 2025 encontramos a rodo. Não se esqueça que estamos discutindo a originalidade dos longas-metragens. Só no cinema argentino, posso listar algumas histórias parecidas à da produção de Walter Salles: “O Clã” (El Clan: 2015), “O Segredo dos Seus Olhos” (El Secreto de Sus Ojos: 2009), “Argentina, 1985” (2022) e “Garagem Olimpo” (Garage Olimpo: 1999). Poderia passar um dia inteiro listando os exemplos. Note, querido(a) leitor(a) do Bonas Histórias, que minha análise é imparcial. Por favor, não me atirem pedras só porque meu comentário vai contra a sua (na verdade, nossa) torcida. Um pouco de maturidade não faz mal a ninguém.


Talvez “O Brutalista” seja o enredo mais original – ainda assim senti uma pontinha de déjà vu que não sei explicar. Por isso, não seria surpresa se ele acabar abocanhando a principal estatueta em disputa na noite de 2 de março. Além de ser tão bom quanto os concorrentes, não apresenta falhas graves de execução da trama nem de falta de criatividade do enredo. Ainda neste texto, falarei mais sobre as qualidades do longa-metragem de Brady Corbet, que tem tudo para ser o grande destaque do próximo Oscar. Respira, expira. Respira, expira. Respira, expira.  


Voltemos a “Emilia Pérez”. Se o filme francês derrapa um pouco no quesito surpresa da história (acho que até eu escrevi uma narrativa curta com essa pegada em 2018 na coluna Contos & Crônicas; ela se chamava “Aos Quarenta” e fazia parte da série literária “Paranoias Modernas”), não podemos negar que ao menos a trama é bem contada (por sinal, mérito de todos os postulantes ao Melhor Filme do Oscar). Do ponto de vista técnico, temos dois ciclos narrativos neste longa-metragem. O primeiro vai da apresentação de Rita até a cirurgia de redesignação sexual da protagonista. O segundo inicia-se com o encontro, na Inglaterra, da advogada com Emilia já plena no novo corpo e sonhando com a volta ao México.


As duas partes são boas (é até difícil dizer qual é a melhor), mas o clímax da segunda é sensacional. Aí vemos o quão impactante é esta produção e os motivos de sua aclamação entre público e crítica cinematográfica. Quando Emilia vê que poderá perder o que lhe é mais valioso (olha como fui sutil para não dar o spoiler!), ela deixa de lado o altruísmo, a delicadeza e a bondade e vira um bicho. No caso, um animal raivoso, vingativo e muito violento. É como se, enfim, a mudança de gênero se consumasse. Afinal, a personagem deixa o papel de pai para assumir o de mãe – algo muito mais intenso. Incrível assistir a essa transformação na telona. Ao mesmo tempo, quando incorpora a função de mãe, seu lado masculino (mais violento) aflora, gerando um ruído desconcertante e uma desconstrução assustadora. É ou não é brilhante, hein?

Dirigido e roteirizado por Jacques Audiard e estrelado por Karla Sofía Gascón, Zoë Saldaña e Selena Gomez, Emilia Pérez é o filme francês que bateu o recorde de indicações ao Oscar

Para encerrar a seção de elogios, tenho que comentar a atuação primorosa do trio de atrizes que comanda as ações de “Emilia Pérez”. Karla Sofía Gascón, Zoë Saldaña e Selena Gomez estão impecáveis. Gascón se saiu muitíssimo bem em seu primeiro papel de protagonista em uma produção de primeiro escalão do cinema mundial. Se ela não dá show nas cenas musicais como as duas colegas (não é cantora nem tem gingado para dança), na parte dramática mostra enorme competência. De qualquer forma, não me parece que seja suficiente para conquistar o Oscar de Melhor Atriz. E falo isso não porque a espanhola se envolveu em várias polêmicas recentes e queimou o próprio filme entre os jurados da Academia e o público no geral. O motivo é que seu desempenho não foi tão espetacular assim. Para mim, a estatueta ficará com Mikey Madison, de “Anora” (ou Fernanda Torres, de “Ainda Estou Aqui”). Essa sim foi BRILHANTE!


Quem também deve erguer o prêmio no evento californiano é Zoë Saldaña. Na minha humilde visão (míope de dez graus), a intérprete de Rita Mora Castro merece o troféu de Melhor Atriz Coadjuvante em 2025. Prova disso é que a norte-americana roubou a cena várias vezes em “Emilia Pérez”. Há inclusive a sensação de boa parte do público de que é ela a protagonista desta história e não tanto a personagem de Karla Sofía Gascón. Esse “roubo” de protagonismo só é possível com uma atuação impecável da atriz pretensamente coadjuvante. Saldaña esteve perfeita tanto nos momentos dramáticos quanto nas cenas de canto e dança. Juro que não sabia que ela era tão talentosa. Se esse não for um desempenho digno de estatueta dourada, não sei mais o que é um trabalho fenomenal.


Até Selena Gomez, que nunca foi reconhecida como uma atriz de primeira categoria em Hollywood, está sublime. É óbvio que ela se sente mais à vontade quando a música toca e é preciso cantar e dançar. Não por acaso, esse é o ponto alto de sua atuação em “Emilia Pérez”. Reveja a cena de “Bienvenida” e me diga se ela não está perfeita no papel de prisioneira na mansão da “cunhada”. Juro que saí do Multiplex Belgrano cantarolando os versos: “Bienvenida/A tu país amado, bonita/A tu lujosa cárcel, primita/Donde todo es caro, encantada/Y gracias a la familia, bienvenida”. A grata surpresa é que até mesmo nos momentos de maior tensão dramática, Gomez se saiu muitíssimo bem. Não é errado enxergarmos esse como seu melhor trabalho no cinema até hoje.


O problema é que nem tudo são flores neste jardim colorido e cheiroso. “Emilia Pérez” tem alguns graves tropeços que podem comprometer suas aspirações no principal evento do audiovisual mundial. O maior deles, um erro gravíssimo de natureza narrativa que escancara que Jacques Audiard ainda não está preparado para desenvolver sozinho os roteiros de seus filmes, é de foco narrativo. Isso fica claro na dúvida que temos durante a sessão de quem é de fato a protagonista da trama. Afinal, estamos acompanhando a história de Rita Mora Castro ou a história de Emilia Pérez? Se você também ficou em dúvida, informo que o problema é do foco narrativo, um conceito da ficção que abrange tanto a Literatura quanto o Cinema – por isso, o expliquei na coluna Teoria Literária.

Um dos favoritos ao Oscar de 2025, com 13 indicações em 12 categorias, Emilia Pérez (2024) é o filme francês de Jacques Audiard que é ambientado no México

A confusão de quem está no centro do drama vai do início ao fim do filme. No começo da película, temos a certeza de que a protagonista é Rita. Contudo, pouco a pouco, Emilia vai tomando conta das ações até deixar a advogada escanteada. Aí, assistimos ao movimento inverso. De repente, Emilia perde força e temos a ascensão de Rita na parte final do longa. Isso tudo é muito confuso para quem busca uma lógica ficcional por trás dos acontecimentos da telona. Para completar, ainda há erros crassos de foco narrativo na execução de várias cenas. Um bom exemplo disso é quando o médico israelense é levado para uma entrevista com Juan Del Monte no deserto mexicano. Rita fica do lado de fora esperando a audiência do patrão com o doutor. A câmera inclusive permanece ao ladinho da personagem de Zoë Saldaña. Mesmo assim, conseguimos acompanhar os diálogos que ocorrem entre os homens. Como isso é possível se o foco até então estava com a advogada e não com Juan/Emilia?! Não faz sentido nenhum.


Além da falha do foco narrativo, “Emilia Pérez” tem um problema de ritmo narrativo. No meio do filme, a história dá uma parada comprometedora para quem almeja o prêmio máximo do cinema. É como se o roteirista tivesse perdido a mão e/ou estivesse pensando o que fazer dali em diante. Como consequência, o espectador na sala de cinema cruza os braços e dá aquela suspirada entediada. Esse é um tipo de erro inadmissível que, infelizmente, aconteceu com vários postulantes ao Oscar nesta temporada. Por exemplo, em “Anora”, o problema de ritmo narrativo é até mais intenso. Simplesmente o roteiro está desequilibrado – demora-se uma hora para se chegar ao conflito. Em menor escala, “Babygirl” e “Um Completo Desconhecido” têm dificuldades no meio da sessão. Já “A Substância” padece com o fim alongado. Novamente a única produção que sai ilesa de críticas é “O Brutalista”. Tá entendendo o porquê começo a acreditar em suas chances, hein?!


Curiosamente, por mais graves que sejam as falhas de natureza narrativa de “Emilia Pérez”, não foram esses os aspectos que geraram a onda de indignação na plateia mundo à fora. O problema é que o filme lacrador foi, no fim das contas, lacrado. É aquela velha máxima: quem lacra hoje pode ser lacrado amanhã. E quem surfa numa grande onda que se avolumou de repente pode ficar parado depois que o movimento da água encerrar.


Por dialogar com temas contemporâneos (machismo, feminicídio, transfobia, lavagem de dinheiro, corrupção, drogas, violência), o longa-metragem de Jacques Audiard incomodou bastante os mexicanos, cujo país foi retratado na tela com possíveis tintas depreciativas. Pelo menos foi essa a reclamação geral. Muitos não gostaram da maneira como sua nação foi retratada e acusaram o cineasta francês de preconceituoso. Apesar de não ter visto nem um tipo de indelicadeza do roteiro (para mim, ele soou fidedigno), entendi o lado dos mexicanos. Uma coisa é um conterrâneo criticar as mazelas de sua própria terra. Outra é um estrangeiro vir e apontar o dedo para as suas deficiências. Aí o caldo entorna.


Entretanto, o que pesou mais para os mexicanos foi a sua cultura extremamente conservadora, que viu como uma afronta uma trama tão progressista ambientada em seu país. É importante alertar que o México é um país extremamente machista, religioso, homofóbico e transfóbico. Se você acha que o brasileiro é assim, então precisa dar uma passadinha na América Central para ver os preconceitos sociais potencializados a níveis assustadores. Portanto, mostrar um machão violento virar uma mulherzinha sensível num filme internacional é como dar uma punhalada na alma nacional dos descendentes dos maias e astecas.  

Principal produção do cineasta francês Jacques Audiard, Emilia Pérez (2024) é o musical protagonizado por Karla Sofía Gascón, atriz trans nascida na Espanha e radicada no México

Na onda de má vontade dos mexicanos com “Emilia Pérez”, principalmente depois que o longa foi bem-sucedido em Cannes e no Globo de Ouro, começaram a surgir vários apontamentos negativos sobre produtores e elenco. As atrizes selecionadas para os principais papeis não eram mexicanas. O espanhol falado por elas não tem o sotaque da América Central. Karla Sofía Gascón tem um histórico interminável de declarações polêmicas e politicamente incorretas. Até a utilização da Inteligência Artificial (IA) para corrigir as cenas musicais entrou na pauta das críticas – como se o uso da tecnologia fosse uma novidade no cinema contemporâneo.


Além disso, é importante dizer que os Estados Unidos vivem, desde a última eleição presidencial, sob forte ventania conservadora. Até onde o retorno dos valores da extrema-direita, que prega o ódio às pessoas trans, aos estrangeiros (principalmente os mexicanos), às mulheres, ao consumo das drogas e à cultura externa, poderá atrapalhar a conquista da 13ª estatueta de Melhor Filme Internacional (e primeiro na categoria geral) pelos franceses?! E será que a avalanche de comentários negativos que “Emilia Pérez” vem recebendo há semanas influenciará o voto dos jurados? Essas são dúvidas que não consigo responder.


O que posso garantir com alguma convicção é que, há pouco menos de um mês para o Oscar, “Emilia Pérez” vive seu período de inferno astral. Também posso assegurar que temos aqui um filme de muita qualidade, mas com problemas graves (QUE NINGUÉM CITA!) que compromete a experiência cinematográfica da plateia. Por isso, não seria surpresa se ele ganhasse o Oscar (os jurados relevariam seus tropeços narrativos) ou se perdesse para “O Brutalista” (esse sim um longa-metragem sem contestação). Das produções que assisti até agora, essa dupla é inegavelmente a melhor.


Em suma, a minha intuição (que em se tratando de Oscar sempre falha) diz que “Emilia Pérez” ganhará como Melhor Filme Internacional e “O Brutalista” ficará com o troféu de Melhor Filme. Mas então o Brasil voltará de mãos abanando? Não. Sinto que Fernanda Torres poderá levar como Melhor Atriz (se perder, será para Mikey Madison), enquanto Zoë Saldaña será coroada como a Melhor Atriz Coadjuvante. A produção francesa ainda ganhará como Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Canção Original (“El Mal”) e Melhor Som. Nada mal voltar para a França com cinco troféus na bagagem. Contudo, “Emilia Pérez” perderá os troféus de Melhor Roteiro Adaptado (para “Conclave”), Melhor Cabelo e Maquiagem (para “A Substância”), Melhor Edição (“O Brutalista”) e Melhor Fotografia (“O Brutalista”). Como deixei claro desde o início desse parágrafo, essas são só as minhas precárias opiniões pelo que vi e avaliei. Certamente errarei todas as previsões, como faço há alguns anos.


Assista, a seguir, ao trailer de “Emilia Pérez” (2024):

Enquanto a cerimônia do Oscar não chega, sigo aguardando o lançamento de “Ainda Estou Aqui” nos cinemas argentinos. Prometo que tão logo a produção de Salles entre em cartaz em Mi Buenos Aires Querido, vou assisti-la com alguma isenção. Aí produzirei um post para a coluna Cinema com as minhas sinceras impressões. Só desse jeito, terei uma avaliação completa das chances brasileiras de conquista em Los Angeles. Se isso porventura acontecer, é bom dizer, será a maior façanha verde-amarela no campo artístico-cultural internacional. Repito em alto e bom tom: “Ainda Estou Aqui” se tornará a MAIOR REALIZAÇÃO das artes brasileiras da história se abocanhar o prêmio de melhor filme do Oscar. Por essas e outras, a nossa grande expectativa por um resultado positivo.  


Torcemos, meu povo. Torcemos para o Brasil, para nossa cultura, para o cinema nacional, para Walter Salles e para Fernanda Torres. Torcemos!!!


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