Na quinta-feira, dia 19, começou o Festival Varilux de Cinema Francês de 2020. Depois de um atraso de seis meses por causa da pandemia do novo coronavírus (espera devidamente compensada com o Festival Varilux Em Casa, versão extra e online que foi exibida entre maio e agosto e reuniu títulos das últimas edições do festival), enfim temos o retorno às salas de cinema de um dos mais tradicionais e aguardados eventos cinematográficos do país.
Com curadoria de Emmanuelle e Christian Boudier, a 11ª edição do Festival Varilux leva 18 filmes franceses a 44 cidades das cinco regiões do Brasil. Do novo catálogo de títulos do evento, 17 são produções recentes que obtiveram sucesso de público e/ou de crítica na Europa e há um clássico da sétima arte. O clássico é “Acossado” (À Bout de Souffle: 1960). Ele foi escolhido em homenagem aos 60 anos da Nouvelle Vague.
Na lista de títulos atuais, temos: “A Boa Esposa” (La Bonne Épouse: 2019), comédia com Juliette Binoche; “DNA” (ADN: 2020), participante da Seleção Oficial do Festival de Cannes deste ano; “Apagar o Histórico” (Effacer L´Historique: 2020), comédia que conquistou o Urso de Prata no Festival de Berlim e teve mais de 500 mil ingressos vendidos na França; “Mais que Especiais” (Hors Normes: 2019), drama que recebeu sete indicações ao Prêmio César (o Oscar francês) deste ano; “Donas da Bola” (Une Belle Equipe: 2020), comédia que levou mais de 300 mil pessoas aos cinemas franceses; “Verão de 85” (Ete 85: 2020), novo filme de François Ozon; “A Famosa Invasão dos Ursos na Sicília” (La Fameuse Invasion des Ours em Sicile: 2019), animação baseada na novela de Dino Buzzati; e “O Capital no Século XXI” (Le Capital Au XXI e Siécle: 2019), documentário adaptado do livro homônimo de Thomas Piketty.
Interessado em acompanhar de perto o evento (e precisando produzir algumas novas análises para a coluna Cinema do Bonas Histórias), fui neste final de semana ao Espaço Itaú de Cinema da Augusta para ver “Belle Époque” (La Belle Époque: 2019). Esta comédia dramática foi escrita e dirigida por Nicolas Bedos, ator, roteirista e dramaturgo francês de 41 anos. Ele estreara na direção cinematográfica com o ótimo “Monsieur & Madame Adelman” (Monsieur et Madame Adelman: 2016). “Belle Époque”, seu segundo trabalho como diretor de um longa-metragem, conquistou, em fevereiro, três estatuetas do César: melhor roteiro original, melhor atriz coadjuvante e melhor design de produção. O prêmio principal (de melhor filme) deste ano, vale a pena lembrar, ficou com “Os Miseráveis” (Les Misérables: 2019), produção de Ladj Ly.
Além das estatuetas conquistadas, “Belle Époque” concorreu em outras oito categorias no Prêmio César de 2020 (inclusive na de melhor filme). Não por acaso, podemos dizer que esta comédia inteligente e sensível de Bados ajudou a consolidar o nome do diretor como um dos cineastas franceses de maior potencial da atualidade. Nicolas Bedos é um excelente humorista e possui total domínio do texto cômico seja no teatro, na televisão ou no cinema. Além do roteiro de “Monsieur & Madame Adelman” e de “Belle Époque”, ele escreveu “Amor e Turbulência” (Amour & Turbulences: 2013) e “Os Infiéis” (Les Infidèles: 2012).
O êxito de “Belle Époque” não se restringiu aos elogios da crítica especializada e aos prêmios da Académie des Arts et Techniques du Cinéma. Seu sucesso se estendeu também para o público cinematográfico francês. Em seu país natal, onde foi lançado em novembro do ano passado, esta produção alcançou uma bilheteria superior a US$ 14 milhões. Foram mais de 1,2 milhão de ingressos vendidos no último verão europeu (2019/2020). Merecidamente, “Belle Époque” é agora, no Brasil, um dos destaques da nova edição do Festival Varilux.
Para o elenco principal deste longa-metragem, Nicolas Bedos escalou uma seleção de primeiro nível do cinema francês: Daniel Auteuil, de “Caché” (2015) e “O Oitavo Dia” (Le Huitième Jour: 1996), Guillaume Canet, de “Rock´n Roll - Por Trás da Fama” (Rock'n Roll: 2017) e “Um Banho de Vida” (Le Grand Bain: 2018), Doria Tillier, de “Monsieur & Madame Adelman” e “Tudo Sobre Yves” (Yves: 2019), e Fanny Pierre, de “Os Belos Dias” (Les Beaux Jours: 2013) e “A Mulher do Lado” (La Femme d'à Côté: 1981). Completam o time de atores e atrizes de “Belle Époque” Pierre Arditi, de “Smoking/No Smoking” (1993), Deni Podalydès, de "O Melhor Professor da Minha Vida" (Les Grands Esprits: 2017), Michaël Cohen e Jeanne Arènes.
O enredo de “Belle Époque” se passa em Paris nos dias de hoje. Casado há quatro décadas com Marianne (interpretada por Fanny Pierre), Victor (Daniel Auteuil) vive uma profunda crise pessoal, profissional e familiar. Desenhista de quadrinhos sexagenário, ele não se interessa por nada que seja moderno. Há muito tempo sem trabalhar (não aceita as novas técnicas de sua profissão nem a entrada da computação gráfica no trabalho dos ilustradores), o protagonista do filme se transformou em um velho chato, passivo e deprimido. Não à toa, sua esposa, uma mulher moderna que gosta de viver intensamente e abraça o mundo contemporâneo com uma alegria juvenil, se cansa dele. Certa noite, Marianne põe Victor para fora de casa sem qualquer compaixão.
Sem saber o que fazer agora que perdeu a mulher, Victor recebe um presente inusitado do filho, Maxime (Michaël Cohen). O presente é o convite para ele passar um dia nos Viajantes do Tempo, um parque de diversão gigantesco que recria fielmente cenas históricas segundo os pedidos dos clientes. O local é muito parecido a um estúdio de cinema. O empreendimento foi concebido por Antoine (Guillaume Canet), que dirige com mãos de ferro as encenações. O jeito ríspido e autoritário do proprietário, além do ciúme doentio que nutre por sua amada, o faz brigar rotineiramente com sua namorada, a bela Margot (Doria Tillier).
Uma vez no parque/estúdio de Antoine, Victor pede a encenação do dia em que conheceu sua esposa. Em 16 de maio de 1974, Marianne entrou em um restaurante-café de Lyon onde seu futuro marido estava jantando. Após brigar com o carinha com quem estava saindo, um cantor mulherengo e mentiroso, a moça o expulsou do estabelecimento a pontapés. Após ver a jovem triste e solitária na mesa ao lado, Victor puxou papo com ela. Era o início de um relacionamento que se estenderia pelos próximos quarenta anos. Para interpretar o papel de Marianne na encenação dos Viajantes do Tempo, Antoine escalou Margot.
A reconstituição daquele encontro deixou Victor de queixo caído. Os cenários, a ambientação, os figurinos, os diálogos, as músicas, a iluminação e todos os detalhes de cada cena foram montados com grande fidedignidade pela empresa contratada. A impressão era realmente que o tempo havia regredido e que o cliente estivesse vivenciando novamente aquele momento do passado.
Empolgado e rejuvenescido com a experiência nos Viajantes do Tempo, Victor vende um apartamento para passar mais tempo com a versão fictícia de Marianne/Margot nos estúdios de Antoine. De repente, o senhor de sessenta e poucos anos se vê perdidamente apaixonado pela atriz que tem a idade para ser sua filha. Ao ver um homem gentil, carinhoso e de bom coração encantado por ela, Margot parece dar trela para o cliente do marido. Ao notar isso, Antoine explode em uma crise intempestiva de ciúmes, o que irá abalar ainda mais a sua já tumultuada relação com a namorada.
A proximidade de Victor e Margot irá suscitar reviravoltas nas relações afetivas dos dois. Transformados pela experiência nos Viajantes do Tempo, tanto ela (cada vez mais bonita e segura de si) quanto ele (mais jovem e propenso a encarar a modernidade e a vida com a mesma intensidade do passado) irão despertar os velhos amores de seus antigos parceiros. Este é o início de uma divertida confusão que mexerá com as relações do espaço temporal (passado, presente e futuro irão se misturar) e da realidade (verdade e ficção irão se embaralhar).
“Belle Époque” tem quase duas horas de duração e é realmente uma comédia dramática das mais interessantes. Confesso que cheguei à sessão pensando que iria ver uma versão moderna e afrancesada de “O Show de Truman” (The Truman Show: 1998). Contudo, não é correto fazermos essa associação. “Belle Époque” está mais para um pot-pourri de “Amor à Segunda Vista” (Mon Inconnue: 2018), "Nerve - Um Jogo Sem Regras" (Nerve: 2016), "Homens, Mulheres e Filhos" (Men, Women & Children: 2014) e de “ED TV” (1999).
Apesar das lembranças aqui e acolá de outras produções do cinema contemporâneo, é preciso elogiar a criatividade da narrativa deste novo filme de Nicolas Bedos. Sua trama é ótima e, ainda por cima, reserva ótimas surpresas durante a sessão. Não por acaso, temos aqui o primeiro elemento a ser enaltecido em “Belle Époque”: seu roteiro é uma peça cinematográfica irretocável. O que torna essa história mais rica e divertida é o desenvolvimento de uma dupla narrativa: (1) os perrengues amorosos de Victor/Marianne e (2) os encontros e desencontros de Antoine/Margot. As brigas matrimoniais, os contratempos sentimentais e as tentativas de superação das desavenças de dois casais tão distintos só provam o quanto os conflitos amorosos surgem independentemente da idade e do tempo de união.
Outro aspecto que adorei em “Belle Époque” foi a predominância de personagens redondas. Nesta trama, os quatro protagonistas (Victor, Antoine, Marianne e Margot) são figuras contraditórias, com (muitos) defeitos e (algumas) qualidades. Nenhum deles pode ser descrito como o herói/a heroína infalível ou como um vilão/uma vilã desprezível. Esse tom de cinza (nem preto, nem branco) deixa a história do longa-metragem mais forte e com um humor extremamente sutil. É preciso encarar os nuances das diferentes situações para compreender a totalidade do(s) conflito(s) apresentado(s).
“Belle Époque” é um filme bastante engraçado e comovente. Sua graça está tanto na trama principal (tragicomédias dos casais de protagonistas) quanto nas subtramas que aparecem aos poucos durante a história (tragicomédias dos profissionais da empresa Viajantes do Tempo). Essas enquetes rápidas e cômicas que rodeiam os conflitos principais são ótimas e estão ancoradas nas hilárias personagens periféricas do longa. Os retratos dos diferentes funcionários de Antoine dão um ritmo ágil à narrativa e um colorido especial ao enredo. Adorei a utilização desse recurso narrativo!
Outro ponto que precisa ser destacado positivamente em “Belle Époque” é a sua trilha sonora. Curiosamente, o longa-metragem reúne clássicos consagrados da música internacional (como “Rescue Me”, “Por Uma Cabeza” e “Bésame Mucho”), canções comerciais não tão conhecidas assim do público brasileiro (“Yes Sir, I Can Boogie”, “The Man I Love”, “Honey” e “J´ai Dix Ans”) e algumas faixas instrumentais (“Ballade de Marianne”, “Soirée Hemingway” e “Margot Théâtre”, por exemplo). Independentemente do tipo, essas faixas são de excelente qualidade e dão uma contribuição considerável na criação do tom nostálgico e na pegada de romantismo desta produção. Se as músicas instrumentais foram compostas pela talentosa Anne Sophie Versnaeyen, as músicas comerciais foram definidas pelo próprio roteirista e diretor do filme. Nicolas Bedos provou ter um ótimo gosto musical e bastante competência para a escolha das faixas certas para cada situação específica de sua história (há cineastas que terceirizam essa função em seus longas-metragens).
Em “Belle Époque”, assistimos a uma atuação de gala do quarteto de atores protagonistas – Daniel Auteuil, Guillaume Canet, Doria Tillier e Fanny Pierre. Juro que não sei quem se saiu melhor. Minha sensação é que todos estiveram perfeitos em seus papéis. Fanny Pierre até pode ter conquistado merecidamente o César de melhor atriz coadjuvante de 2020, mas não seria exagero conceder estatuetas também para seus colegas de cena. Fazia muito tempo em que não via um filme com tantos atores brilhando simultaneamente.
A comédia dramática de Nicolas Bedos brinca o tempo todo com a mistura entre realidade e ficção. Em alguns momentos, até mesmo a gente na plateia se pergunta: pera aí, isso é verdade ou é apenas uma encenação. Por exemplo, até agora não sei se a personagem de Pierre Arditi é um funcionário dos Viajantes do Tempo ou se ele é um cliente (a cada momento, eu pensava uma coisa diferente). Quando somos pegos nestes contrapés, a narrativa se torna ainda mais hilária e rica.
Adorei “Belle Époque”! Agora entendi o porquê este filme foi uma das maiores bilheterias francesas e conquistou tantos prêmios. Posso dizer que, ao menos para mim, o Festival Varilux de Cinema Francês de 2020 começou em altíssimo nível. Assista, a seguir, ao trailer de “Belle Époque”:
A programação desta edição do Festival Varilux de Cinema Francês irá até 3 de dezembro. O valor do ingresso varia de cinema para cinema. Em algumas redes, há descontos nas exibições dos filmes do evento. Isso ocorre, por exemplo, no Espaço Itaú de Cinema, onde o ingresso é fixo em R$ 20,00. Porém, esse desconto já não ocorre no Cine Belas Artes. Lá, os valores das entradas do festival acompanham a tabela das produções normais. Sinceramente, não sei qual é a política de preços do evento fora da cidade de São Paulo.
Espero comentar, nos próximos dias, mais alguns títulos do Festival Varilux na coluna Cinema. Vale a pena recordar que analisamos, há pouco, no Bonas Histórias, quatro longas-metragens do Festival Varilux em Casa – “A Excêntrica Família de Gaspard” (Gaspard Va Au Mariage: 2017), “Rock´n Roll - Por Trás da Fama” (Rock'n Roll: 2017), “O Mistério de Henri Pick” (Le Mystère Henri Pick: 2019) e “Branca como a Neve” (Blanche Comme Neige: 2019) – e um filme do 8 ½ Festa do Cinema Italiano Edição Online – “Nápoles Velada” (Napoli Velata: 2017).
Bom festival a todos!
PS: Vanessa, a nota triste do final de semana foi a descoberta do fechamento do O Pedaço da Pizza da Rua Augusta. Vamos ter que achar outro lugar na região da Paulista para comer da próxima vez. Uma pena!
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