Em cartaz nos cinemas brasileiros desde 19 de setembro, o segundo longa-metragem da diretora e roteirista francesa tem Demi Moore, Margaret Qualley e Denis Quaid no elenco. Em uma narrativa que faz o espectador desviar os olhos da telona, acompanhamos a obsessão feminina pela juventude e pela beleza.
Na semana passada, fui todos os dias ao cinema. No caso, o correto seria dizer todas as noites. A rede Multiplex, uma das principais exibidoras de Buenos Aires, fez promoção em que os ingressos custavam 2.500 pesos argentinos (algo como R$ 11,00 no ingrato câmbio atual). Acho que o evento se chamava Semana do Cinema. Acho! Juro que não tive a menor preocupação de verificar o nome. O meu interesse se concentrou nos filmes em exibição e, claro, no desconto de quase 50% nas entradas. Nessa bem-vinda promoção, apenas as sessões em 4D (sou da época em que o 3D já causava frenesi) eram mais caras: 5.000 pesos. Como um bom cinéfilo raiz que sou (esse lance de vários Ds é para o público Nutella) e um pé rapado que conta as moedas para terminar o mês próximo do azul (moedas argentinas, o que é pior), aproveitei a oportunidade para acampar na frente das telonas. Uhu!
Assim, visitei de quinta-feira, 26 de setembro, a quarta-feira, 2 de outubro, a unidade de Belgrano do Multiplex, a mais perto da minha casa. Tão logo escurecia no charmoso e esverdeado bairro de Saavedra, minha rotina era correr para a sessão noturna a fim de conferir alguma novidade da Sétima Arte. No cardápio cinematográfico que pude provar, solicitei ao maître da bilheteria quatro produções argentinas e três produções norte-americanas. Seguindo minhas inconfundíveis preferências, as pedidas giraram em torno de terror, suspense psicológico, comédia dramática e título com China Soares – minha atriz argentina favorita desde “El Duelo” (2023) e que, por isso, ganhou uma categoria própria em meu combalido coraçãozinho.
O mais curioso da minha imersão na Semana do Cinema (vamos chamar a promoção desse jeito, apesar de não estar certo de sua verdadeira nomeação) foi que, a cada longa-metragem assistido, voltava para casa com a certeza de ter descoberto o filme que iria debater no Bonas Histórias. Contudo, na nova visita do dia (ou noite) seguinte, mudava meus planos. Aí pensava: será esse o título que vou comentar na coluna Cinema. A firmeza das palavras durava exatamente 24 horas. Nessa sucessão de ótimas experiências cinematográficas, vi “Joker” (2024), “Não Fale o Mal” (Speak No Evil: 2024), “El Aroma del Pasto Recien Cortado” (2024), “Longlegs – Vínculo Mortal” (Longlegs: 2024), “Linda” (2024) e “Culpa Cero” (2024). Foi exatamente essa a ordem cronológica de exibições e a ordem crescente de preferência. No caso dos recém-lançados títulos argentinos, não preciso dizer que eles ainda não foram traduzidos nem exibidos no nosso cada vez mais caloroso Brasilzão.
Y por supuesto assisti a “A Substância” (The Substance: 2024), o novo filme da diretora e roteirista francesa Coralie Fargeat que foi a cereja do bolo (ou a dose extra de doce de leite do alfajor, como preferir) da minha movimentada semana à la Rubens Ewald Filho. Juro que quando deixei a sala do Multiplex Belgrano na última quarta-feira, decretei em alto e bom tom: é esse o filme que vou debater no Bonas Histórias e ponto final. E completei para espanto dos argentinos à minha volta: ele é o melhor terror que conferi nos cinemas neste ano; preciso fazer um post para a coluna Cinema sim ou sim!!!
Pensando agora com a devida calma (e longe dos olhares inquisitórios daqueles que não entendem português nem acham graça quando alguém fala sozinho na saída do cinema) e estendendo a comparação aos demais gêneros cinematográficos de 2024, “A Substância” só perde em qualidade para os imbatíveis “Pobres Criaturas” (Poor Things: 2023) e “Dias Perfeitos” (Perfect Days: 2023). Se lembrarmos que essa dupla foi lançada efetivamente no ano passado (eu é que demorei para vê-la), talvez possamos colocar a novíssima produção de Fargeat no alto do pódio da atual temporada de cinema até mesmo na categoria geral.
Orçado em US$ 17,5 milhões, um trocado para as cifras hollywoodianas, mas uma pequena fortuna para o cinema europeu, “A Substância” traz em seu elenco Demi Moore, Margaret Qualley e Denis Quaid. O primeiro sucesso que o filme fez foi no Festival de Cannes em maio, quando conquistou o prêmio de melhor roteiro. Naquela oportunidade, a crítica internacional se rendeu à força e ao vigor da trama de uma mulher que tenta combater a qualquer preço o envelhecimento e a perda da beleza. Agora “A Substância” arrebatou as plateias do circuito comercial. O longa teve ótimos números de bilheteria no final de semana de estreia tanto na América do Norte quanto no Velho Continente. Até no Brasil e na Argentina, esse fenômeno se repetiu. Vale lembrar que estamos falando de uma produção de nicho e não de um blockbuster convencional. Daí a surpresa do seu êxito junto ao grande público.
“A Substância” é o segundo filme dirigido e roteirizado por Coralie Fargeat, desde já uma das cineastas mais promissoras da atualidade. Para ser correto na minha descrição, esta é uma coprodução entre Inglaterra, Estados Unidos e França. Portanto, quando eu disse lá no início do post que o longa-metragem era um exemplar do cinema norte-americano, contei meia-verdade. Saiba que ele é também produto do cinema inglês e do cinema francês. Para ser preciso em minhas palavras, podemos enxergá-lo até mais como um título europeu do que um título hollywoodiano.
Aos 48 anos, Fargeat conseguiu se destacar em trabalhos no cinema independente e em séries da televisão na França. Suas produções como diretora e roteirista têm quase duas décadas, apesar de elas não serem tão conhecidas pelos cinéfilos fora da Europa. Só recentemente, a cineasta teve a chance de atuar em estúdios com orçamentos e visibilidades um pouco maiores. Mesmo assim, é bom que se diga que ela ainda não conquistou o espaço merecido dentro dos grandes estúdios internacionais. “A Substância”, por exemplo, foi produzido pela Working Title Films, um estúdio inglês de cinema e televisão, e foi distribuído mundialmente pela Mubi, uma companhia mais artística do que comercial.
O primeiro longa de Coralie Fargeat foi “A Vingança” (Revenge: 2017), um suspense aterrorizante de uma mulher vítima da violência brutal de um grupo de homens. Ao sobreviver à crueldade imposta pelos companheiros de viagem, a personagem principal busca fazer justiça com as próprias mãos. Confesso que fiquei dividido em relação à estreia da diretora no cinema. Apesar de ser um filme com narrativa forte, ter ótimas cenas, possuir tensão dramática do início ao fim e contar com um estilo visual marcante (repetido em “A Substância”, o que indica o esboço de certa unidade autoral pela cineasta francesa), “A Vingança” escorregou na originalidade do roteiro. Para mim, essa produção é uma cópia de “Doce Vingança” (I Spit on Your Grave: 2010), o polêmico terror de Steven R. Monroe que fez muita gente se contorcer na frente da tela. Em outras palavras, o longa-metragem de estreia de Fargeat era muito bom, mas pecou por não trazer nadinha de novo.
Curiosamente, “A Substância” guarda semelhanças estéticas, narrativas e estruturais com “A Vingança”. A sensação que o espectador tem no início da sessão do novo filme da francesa é de déjà vu. O público com mais repertório cinematográfico certamente irá pensar tão logo comece a exibição de “A Substância”: já vi essa história antes... Para mim, o segundo longa de Coralie Fargeat é uma mistura de “Homem Elefante” (The Elephant Man: 1980), clássico do suspense de David Lynch, “Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard: 1950), obra-prima noir de Billy Wilder, e “Professor Aloprado” (The Nutty Professor: 1963), um dos maiores sucessos cômicos de Jerry Lewis. Por melhores que sejam as referências, ainda assim o peso da falta de originalidade do enredo do filme recém-lançado pesa.
Aí alguém pode indagar: mas esse roteiro não foi premiado no Festival de Cinema de Cannes deste ano?! Respondo com a convicção dissimulada: foi, caro(a) e atento(a) leitor(a) da coluna Cinema, mas isso não se deu pela criatividade da história e sim pela belíssima construção narrativa. Se a originalidade não é o ponto forte do(s) roteiro(s) de Fargeat, a força de sua(s) trama(s) e a maneira como o(s) enredo(s) cinematográfico(s) é(são) apresentado(s) ao público são simplesmente sensacionais. Nesse sentido, o filme é realmente brilhante (e mereceu o troféu de melhor roteiro do badalado festival francês).
“A Substância” é um filme de terror que traz muitos elementos satíricos, suspense psicológico, escatologias, reflexões filosóficas e críticas sociais. É inegável o questionamento ao machismo na nossa sociedade, à opressão da indústria audiovisual ao padrão estético das mulheres e à obsessão feminina pela juventude e pela beleza eternas. Se esses aspectos não são novidade para ninguém minimamente esclarecido e se as peças da narrativa do longa-metragem de Coralie Fargeat podem ser vistas como clichês cinematográficos, ainda assim afirmo: temos aqui um filmão!!! É o bom e velho arroz com feijão que quando muito bem-feito, provoca sensações inesquecíveis.
Não só saí embasbacado da sala de cinema (July, além de fantasmas e pinguins, agora não consigo dormir sozinho depois de ver filmes de mulheres monstruosas!), como voltei para Saavedra refletindo sobre uma série de temas. Se isso não é o efeito colateral de se assistir a uma ótima produção cinematográfica, não sei mais o que posso chamar de cinema de primeiríssima categoria. Gostei tanto da experiência que no dia seguinte estava enviando mensagens para vários amigos brasileiros assistirem a esse terror (abraços, Paulinho, Débora, Marcela, Luiz e Carlinha).
O enredo de “A Substância” começa mostrando a construção de mais uma ala da calçada da fama de Hollywood. A nova estrela do cinema que é inserida no famoso piso de Los Angeles é Elisabeth Sparkle (interpretada impecavelmente por Demi Moore). Adorada pelos fãs, a atriz é linda, jovem e talentosa, uma combinação bombástica na indústria dos filmes. Contudo, o tempo é implacável e os anos passam rapidamente. Ao se reinventar, Sparkle consegue emprego em um programa de ginástica na televisão pelas manhãs. Esbanjando beleza, ótima forma e carisma, a personagem principal do longa-metragem vira a musa fitness dos Estados Unidos. Todos admiram seu corpo e comportamento em prol da vida ativa e dos hábitos saudáveis.
O problema é que novamente o tempo (sempre ele!) segue sendo cruel para nossa linda heroína. Como diria Januário de Oliveira, ele é MUITO, MUITO CRUEL! Ao comemorar 50 anos, Elisabeth Sparkle é vítima de etarismo. Harvey (Dennis Quaid), o nojento presidente da emissora de televisão, acredita que a estrela está velha demais para comandar o programa que ela mesma consagrou por tantos anos. Onde já se viu uma mulher cinquentenária ser modelo de beleza e juventude na América contemporânea, hein?! Com essa visão machista, Harvey demite Sparkle sem piedade e começa a procurar uma substituta mais nova para o tradicional programa fitness de todas as manhãs.
Deprimida e solitária, Elisabeth Sparkle não aceita o ocaso da carreira nem o peso da idade, por mais deslumbrante e talentosa que continue sendo. Vulnerável emocional e psicologicamente, ela se torna alvo fácil de uma companhia exclusivíssima que vende uma droga ao mesmo tempo misteriosa e poderosa. A aplicação do produto permite que seu usuário seja replicado. Em outras palavras, o cliente ganha uma versão mais jovem. A partir daí, a vida da pessoa se divide em uma semana com a réplica com menos idade e uma semana com a versão tradicional. Enquanto uma personalidade vive normalmente e usufrui do dia a dia, a outra personalidade fica dormindo e é alimentada por uma espécie de soro injetado diretamente no sangue.
Não é preciso dizer que a protagonista do filme aceita sem titubear as regras e aplica em si a droga aparentemente milagrosa. A nova versão de Sparkle se chama Sue (Margaret Qualley). A moça, que beira os 20 anos, é realmente estonteante. Não por acaso, ela se candidata ao emprego da emissora de televisão e conquista sem dificuldade o posto de âncora do programa fitness. Surge, assim, uma nova estrela dos Estados Unidos.
Sue revoluciona os exercícios aeróbicos e potencializa a audiência da atração matutina a níveis inimagináveis. Seu segredo é mesclar sexualidade, jovialidade e novos tipos de movimentos de ginástica. Não há corpo feminino mais admirado do que o dela no país. Todas as mulheres querem ser Sue. E todos os homens sonham em tê-la. Como novo símbolo sexual dos Estados Unidos, a moça é capaz de movimentar a publicidade e de catapultar a audiência como raras vezes se viu na história.
Curiosamente, a maior adversária de Sue virá de onde menos se imagina. A única que não gosta da ascensão meteórica da jovem gatinha é Elisabeth Sparkle. Ao acordar para a sua semana de vida, a antiga estrela do cinema e da televisão sente ciúmes pelas conquistas instantâneas da versão mais jovial. Ao constatar que ninguém mais se lembra dela nem que a valoriza, Sparkle vai ficando mais e mais deprimida e com mais e mais raiva. A aparência que o espelho lhe mostra é injusta quando comparada às formas perfeitas de Sue. Assim, sair de casa e ter uma rotina convencional se torna um fardo pesado demais para a antiga atriz.
A partir desse ponto do filme, inicia-se uma rivalidade feminina das mais perspicazes da história do cinema. A mulher disputa com ela mesma o protagonismo da própria existência. A versão mais velha e a versão mais jovem passam a se odiar. Nenhuma aceita o estilo de vida e as crenças da outra. Tentando a qualquer custo se sobressair em relação à rival, cada uma delas não mede esforço para ficar com mais tempo no controle da situação. Não é preciso dizer que essa disputa interna terá consequências terríveis para ambas. Quanto mais se confrontam, mais as duas metades perdem. O terror psicológico chega a níveis alucinantes e mostra o quanto a inveja e a competitividade femininas podem ser autodestrutivas.
“A Substância” possui cerca de 2 horas e 20 minutos de duração. É, portanto, uma produção maior do que a média em cartaz no circuito comercial. Gostei tanto da experiência cinematográfica que sequer senti o tempo passar durante a sessão. Prova disso é que saí inteiro da sala. Em títulos muito longos, costumo ficar com dores e mais dores por todo o corpo. Culpa, claro, da juventude perdida (em algum lugar que não consigo encontrar). De qualquer forma, somos bombardeados como espectadores por tantos sentimentos contraditórios durante esse filme que as horas voam na sala de cinema. Além disso, o ritmo narrativo é impecável (seu roteiro não foi premiado à toa, né?).
O terror de “A Substância” é visceral e escatológico, uma combinação difícil de agradar aos melhores paladares. Porém, é preciso destacar que essa pegada se casou perfeitamente à proposta estética de Coralie Fargeat e à temática narrativa do seu novo filme. Fazia muito, mas muito tempo mesmo que não evitava olhar para a tela como fiz corriqueiramente nessa produção. Era um tal de desviar a vista para os lados ou fechar os olhos. Obviamente, o medo era de encarar de frente os absurdos que a câmera mostrava sem quaisquer receios morais e escrúpulos. Como falei, esse é um filme para os bravos e para as bravas (um perfil que percebi que infelizmente não integro).
Quando digo que este é um filme para gente corajosa, não estou exagerando (apesar do exagero, como já cantava Cazuza lá no final dos anos 1980, ser uma de minhas características mais ruidosas). Na sessão em que estive presente (por sinal, o cinema estava quase lotado numa quarta-feira à noite), vi muitas pessoas saindo mais cedo ou dando uma pausa fora da sala. Juro que na hora não entendi o alucinante entra e sai (que prejudica os demais espectadores). Até pensei: eita pessoal mais mal-educado! Contudo, refletindo melhor agora, até faz sentido a fuga momentânea ou definitiva da frente da telona. Possivelmente, muitas pessoas não aguentaram encarar a experiência impactante de “A Substância”.
Por mais besta (quase escrevi frouxo...) que eu seja, vale a menção que aguentei firme o tranco do longa-metragem até o final. Em tempos de overdose de operações bariátricas, de comprimidos de Ozempic tomados do café da manhã ao jantar, de cirurgias plásticas populares em todos os cantos do mundo, de cremes e mais cremes antienvelhecimento entupindo os lares e do uso indiscriminado dos filtros de imagem nas redes sociais, conferir os absurdos da vaidade humana que a ficção retrata com tanta propriedade não deve ser mesmo uma tarefa das mais fáceis para uma multidão!
Por falar em falta de pudor do filme, nota-se pelos takes a obsessão pelos corpos femininos. Isso fica evidente na desinibição da câmera nos momentos de intimidade das mulheres no banheiro, na cama ou na hora da ginástica. Os closes e as tomadas de ângulo são totalmente corajosos (para não escrever despudorados), algo que certamente nem todas as atrizes consentiriam. Nesse caso particular, a presença de uma diretora ajudou no convencimento do elenco. Não se tratava de assédio ou perversão sexual de um cineasta babão e sim da proposta narrativa de “A Substância”. Para entender o que eu estou dizendo, tente contar quantas vezes Demi Moore e Margaret Qualley ficam inteiramente nuas (não estou reclamando, tá?). Ou quantas cenas têm as bundas das mulheres enfocadas (longe de mim chiar!). Esses números podem surpreender até mesmo os espectadores menos conservadores.
Com tantas questões delicadíssimas trazidas pelo filme, ainda assim é possível soltar algumas risadas (nervosas) durante a sessão. O humor de Fargeat é carregado de sarcasmo e ironia, o que faz a plateia se sentir mal ao se divertir com os absurdos vivenciados pela protagonista de “A Substância”. Só notamos o quão inteligente e cômico é o roteiro quando analisamos seus detalhes. Por exemplo, o nome do dono da emissora é uma referência direta a Harvey Weinstein, o fundador da Miramax que foi condenado por abusos sexuais. O espelho gigantesco do banheiro que dá a tônica do drama de Elisabeth Sparkle lembra simbolicamente o da madrasta da Branca de Neve – só faltou a frase “Espelho, espelho meu, quem é mais bonita do que eu”. Até a passagem bíblica do nascimento de Eva aparece no instante em que a versão mais nova sai da espinha da mulher que tomou a droga (e não da costela do homem/Adão). É ou não é uma narrativa divertida e sagaz, hein?!
Contudo, a chave do entendimento que faz de “A Substância” uma obra-prima da Sétima Arte contemporânea é a nova perspectiva da rivalidade feminina. Se o cinema – como em “A Favorita” (The Favourite: 2018) – e a literatura – como na “Tetralogia Napolitana” (Biblioteca Azul) de Elena Ferrante – já mostraram embates memoráveis entre mulheres, não me lembro de ter assistido a um duelo tão íntimo vivido por uma mesma pessoa. O que o filme de Coralie Fargeat mostra é a disputa entre a antiga versão e a nova versão da mesmíssima personagem. No fim das contas, queiramos ou não, Sparkle e Sue são um único ser.
Caso alguém possa questionar a validade desse embate das partes do mesmo indivíduo, lembro que isso é mais comum do que podemos supor. Nesse exato momento, meu eu do amanhã está brigando com o meu eu do presente. Enquanto o primeiro está pedindo para que eu pare de escrever esse post do Bonas Histórias, vá correr no parque, coma mais frutas e visite a bela vizinha paraguaia, o segundo insiste em trabalhar em longos textos, não quer se exercitar, adora devorar doces e prefere a braveza da milico da Província. Portanto, antes que você ache um absurdo a rivalidade retratada em “A Substância”, olhe para o seu umbigo. Suas versões também podem estar se digladiando e você ainda não percebeu a declaração de guerra.
Junto com o drama filosófico-existencial da protagonista, o filme também tece com perspicácia uma série de críticas sociais. As mais explícitas são o machismo e o etarismo da nossa sociedade. Enquanto as mulheres precisam ser jovens e lindas para sempre (do contrário, são trocadas por substitutas com a metade da idade), os homens, que se comportam quase sempre como predadores sexuais, podem envelhecer com naturalidade (note o perfil dos conselheiros da emissora de televisão que aparecem no final do longa-metragem, na festa de Ano-Novo). Nesse ponto, é chocante notar que se Elisabeth Sparkle, uma mulher belíssima, não gosta do que vê no espelho, imagine o que o restante da população feminina não pensa...
Outros temas interessantes abordados nessa trama: a dinâmica perversa do show business, a solidão da sociedade contemporânea, a busca por soluções mágicas para problemas complexos, a melancolia da rotina moderna, a limitação do alcance da ciência, o peso da opinião alheia na vida das pessoas, o comportamento desumano de muitos homens etc. Isso foi o que me lembrei de cabeça. Deve ter mais um monte de assunto que o longa-metragem trata e que não me recordo agora.
Além do excelente conteúdo da narrativa, “A Substância” se destaca pela inusitada experiência audiovisual. Curta o incrível jogo de luzes, cores e sons. As contradições luminoso-cromáticas e auditivas ficam mais evidentes quando há a alteração na rotina das versões da protagonista do filme. Sempre que a amargurada e arrependida Sparkle entra em cena, temos o predomínio de tons escuros e sombras, além de muito silêncio e ruídos desagradáveis. Quando a alegre e sonhadora Sue aparece, há uma avalanche de luzes, cores e músicas animadas.
Além dessa dicotomia entre as duas facetas da personagem principal, é legal reparar no cuidado estético de vários elementos da produção e com o jogo de câmeras. Por exemplo, os frascos da droga possuem uma riqueza visual impressionante, assim como sua caixa e as mensagens escritas. Por vezes, eles tomam toda a tela, em um zoom que os transforma quase em personagens do filme. O corredor colorido que interliga o banheiro da mansão de Elisabeth Sparkle ao quarto não é por acaso. A overdose cromática indica os sonhos e o estado emocional da mulher. E o que falar da brincadeira de posicionar a câmera em ângulos inusitados. Achei espetacular esse efeito!!!
A estética de “A Substância” é muito parecida a dos videoclipes da década de 1990. Aliando música (ou som) às várias imagens em sucessão, a cineasta conta rapidamente histórias que levariam muito tempo para serem narradas da maneira convencional. Gostei desse recurso. Ele foi tão bem usado que é outro elemento de contraste entre o dia a dia da versão antiga da protagonista (narrativa careta e lenta) com a rotina da versão jovial (narrativa moderna e alucinantemente rápida).
A própria sonoridade do longa-metragem é um capítulo à parte. Há muitas passagens com ausência quase absoluta de música (ou canções de enorme sutileza que fazem a plateia achar que não há trilha sonora em várias cenas). Brinco ao chamar esse expediente de som de “Náufrago” (Cast Away: 2000), filme de Robert Zemeckis que tinha longos takes de total mudez. Claro que isso ocorre geralmente quando o drama da personagem de Demi Moore está sendo enfocado. Quando Margaret Qualley surge, o êxtase auditivo acompanha os estímulos visuais. Porém, o que talvez seja mais marcante é o conjunto de ruídos desagradáveis de “A Substância”. Eles são tão fortes (e, por que não, divertidos) que roubam a cena em vários momentos.
Se você assistiu a “A Vingança”, o primeiro longa-metragem roteirizado e dirigido por Coralie Fargeat, notará a incrível semelhança visual e de recursos cinematográficos entre as duas produções da francesa. Isso é o que eu chamo de estética autoral – algo que só os grandes cineastas possuem. É muito legal descobrir as características marcantes do trabalho de Fargeat, mesmo com apenas dois longas-metragens no portfólio. Por tal perspectiva, “A Substância” dialoga intimamente com o conteúdo e, principalmente, com a experiência audiovisual de “A Vingança”.
A beleza e a força de “A Substância” se dão também pela contundência das cenas. Esse é um filme com muitos instantes emblemáticos. Não por acaso, usei a palavra “muitos” na frase anterior. Entre as cenas memoráveis desta produção, posso citar: a inserção da estrela de Elisabeth Sparkle no hall da fama do cinema e a passagem rápida do tempo; a reunião no restaurante com o dono da emissora fazendo barulhos repugnantes ao comer camarão; a imagem da protagonista sendo trocada do outdoor na highway de Los Angeles; a divisão do corpo de Sparkle (ou seria o nascimento de Sue?) após a injeção da droga; o programa de estreia de Sue na televisão; o desespero da personagem principal ao se arrumar para um encontro amoroso e encarar a imagem de sua versão mais jovem; e a cena final de... Bem, essa última descrição vou ficar devendo. Não damos spoiler nos posts do Bonas Histórias, senhoras e senhores.
A atuação do elenco principal também é impecável. Muito tem se falado do desempenho absurdamente bom de Demi Moore, talvez o melhor de sua carreira. Concordo com os elogios. Contudo, saliento que Margaret Qualley e Denis Quaid também estiveram ótimos. Em muitos momentos, a dupla conseguiu ser até mesmo mais brilhante do que a protagonista. O que prejudicou um pouco o trabalho da atriz de “Ghost – Do Outro Lado da Vida” (Ghost: 1990), “Proposta Indecente” (Indecent Proposal: 1993) e “Striptease” (1996) é que da metade para o final do longa-metragem ela foi desaparecendo embaixo do figurino/composição de sua personagem (sem maiores explicações para não dar spoiler!).
Nesse sentido, não deixa de ser curioso que em um filme em que se questiona o envelhecimento e a busca doentia pela beleza eterna no show business, a atriz principal conseguiu, enfim, mostrar seu talento artístico para a crítica cinematográfica e para o grande público. Pare para pensar. No auge da carreira, Demi Moore de 30 e pouquinhos anos sempre foi vista mais como símbolo sexual (numa rivalidade involuntária nos anos 1990 com a não menos deslumbrante Sharon Stone) do que uma ótima atriz. Agora como sexagenária, ela conseguiu provar seu valor (além de se manter deslumbrante). É curiosa essa contradição involuntária da nova produção de Coralie Fargeat.
De pontos negativos, repito: “A Substância” flerta com as histórias de vários filmes. Além dos já citados clássicos de Lynch, Wilder e Lewis, me lembrei bastante durante essa sessão de “Rock´n Roll - Por Trás da Fama” (Rock'n Roll: 2017), a excelente comédia dramática de Guillaume Canet. A diferença é que a produção francesa do namorado/marido de Marion Catillard retrata o mesmo problema pela perspectiva masculina e usando prioritariamente o humor. De resto, os enredos são quase idênticos. Se pegarmos a literatura como comparação, há uma variedade de títulos com essa temática. Talvez a obra mais famosa seja o brilhante “O Retrato de Dorian Gray” (Penguin-Companhia), romance de Oscar Wilde publicado originalmente em 1891. Ou seja, esse é um tema que perturba a humanidade há muito, muito tempo.
Outro aspecto que não gostei foi o desfecho. Se a narrativa caminha impecavelmente desde o início, seu desenlace se mostra aquém da qualidade do restante do longa-metragem. Enquanto o filme é excelente, a parte final é meramente protocolar. Além do mais, o fim de “A Substância” tem com o mesmo vício das tramas iniciais de Stephen King: com muitas explosões, sangue, caos e destruição. É o que chamo de fim apocalíptico, um recurso fácil que escritores e roteiristas possuem na maleta de ferramentas e que é usado quando se faltam soluções mais criativas. Mesmo assim, admito que a última cena dessa produção de Coralie Fargeat é de tirar o chapéu (e fecha o arco dramático de forma sublime).
Outra questão que não poderia deixar de comentar nessa análise da coluna Cinema é uma pequena contradição do enredo. Se Elisabeth Sparkle e Sue são as mesmas pessoas, elas não compartilhariam a consciência seja parcial ou total?! A impressão em alguns momentos do filme é que sim. Inclusive, a companhia que vendeu a droga para a protagonista vive batendo nessa tecla: vocês duas são apenas uma. Contudo, em nenhum instante o filme mostra esse tipo de interação e a partilha da memória. Por isso, fiquei com dúvida: as duas metades da laranja tinham ou não tinha alguma ligação de consciência, hein? Saí do cinema sem uma resposta clara para essa pergunta.
Por fim, é preciso dizer que as personagens de “A Substância” são quase sempre caricatas (um problema que já havia notado no roteiro de “A Vingança”). Isso se aplica tanto as figuras masculinas (quase sempre desprezíveis, egoístas e nojentas) quanto as femininas (inseguras, fracas emocionalmente e fúteis) do novo filme de Fargeat. Como os leitores do Bonas Histórias bem sabem, não gosto de personagens planas nem de acompanhar tramas em que elas se proliferam. O mundo real não é tão cartesiano nem tão maniqueísta quanto o retratado por histórias ficcionais que insistem no universo preto e branco.
Assista, a seguir, ao trailer de “A Substância” (The Substance: 2024):
Em suma, achei esse o melhor filme de terror do ano e um dos melhores longas-metragens que conferi em 2024 nas salas de cinema. Por mais brilhante que seja, ainda assim sei que as polêmicas de “A Substância” podem não agradar a todos os espectadores, principalmente as almas mais sensíveis. Quem tem estômago forte, gosta de ser desafiado intelectualmente e aprecia vivenciar experiência cinematográficas diferenciadas, acredito que irá adorar à nova produção de Coralie Fargeat.
Para falar a verdade, fiquei fã desta cineasta francesa. Certamente, vou correr para o cinema quando ela lançar seu terceiro filme como diretora e roteirista (mesmo que não esteja tendo boas promoções nas redes de exibição que costume frequentar). Torçamos que seus trabalhos futuros tenham a qualidade do seu portfólio atual e mantenham a evolução narrativa que assistimos entre “A Vingança” e “A Substância”.
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