Dirigido e roteirizado por J. A. Bayona, o longa-metragem que representa a Espanha no próximo Oscar chegou aos cinemas internacionais em dezembro de 2023 e já estreou na Netflix em janeiro de 2024 com grande audiência.
Para os cinéfilos de plantão, a safra de filmes de ótima qualidade nessa virada de ano foi farta. Confesso que precisei aumentar minhas visitas às salas de cinema em dezembro e janeiro para dar conta da demanda dos bons lançamentos da sétima arte. O mais legal foi notar que fomos contemplados com excelentes produções em quase todos os gêneros cinematográficos. Em outras palavras, havia opções para os diferentes gostos.
Quem curte uma tragicomédia com pegada cult, a melhor pedida era “Folhas de Outono” (Kuolleet Iehdet: 2023), produção germano-finlandesa que chega como principal favorita à categoria Melhor Filme Internacional no Oscar de 2024. Para os adoradores das cinebiografias, dava para escolher entre “Priscilla” (2023), “Maestro” (2023) e “Napoleão” (Napoleon: 2023). Se você for chegadinho(a) aos dramas psicológicos com altíssimas doses de suspense, o japonês “Monster” (Kaibutsu: 2023) era o caminho infalível para a alegria (ou seria para o medo?!). Seu lance é mais o futebol? Nesse caso, valia a pena visitar os cinemas argentinos só para conferir o engraçadíssimo e impactante “Muchachos” (2023). Para o público mais corajoso e sedento por fortíssimas emoções, a melhor opção em cartaz era/é “A Sociedade da Neve” (La Sociedad de la Nieve: 2023), produção espanhola da Netflix.
Uma vez conferido tantos filmes ótimos, minha angústia foi transferida automaticamente para o trabalho no Bonas Histórias: qual desses títulos analisar na primeira matéria da coluna Cinema em 2024, hein?! Se meu critério principal fosse a excelência artística, não teria dúvida: o escolhido seria o espetacular e inovador “Folhas de Outono”. Por outro lado, se recorresse à experiência mais inusitada na sala de cinema (Marcelinha está de prova da loucura que foi ver o filme da conquista da última Copa do Mundo pela Seleção Argentina no meio dos hermanos!), aí teria muito o que falar sobre “Muchachos”. Porém, admito que minha decisão recaiu sobre o longa-metragem mais impactante, aquele que mexeu mais com minhas emoções. Por isso, hoje vamos debater “A Sociedade da Neve”, o mais novo filme de Juan Antonio Bayona, mais conhecido como J. A. Bayona.
“A Sociedade da Neve” chegou aos cinemas internacionais em dezembro de 2023 e ficou disponível na Netflix já no começo de janeiro de 2024. Como sou do tipo que prefere acompanhar uma boa história nas telonas ao invés de ficar na frente das telinhas, fui ao Multiplex Belgrano na última sexta-feira à noite (com direito à passeio pelo sempre vibrante e colorido Barrio Chino) para uma sessão de pipoca (ou de pochoclo, como preferir!). Pelo visto, a concorrência entre plataformas não esmoreceu a animação do público cinéfilo de Buenos Aires: a sala estava lotadinha! Por essas e outras, me sinto cada vez mais portenho e menos paulistano. Será que meus conterrâneos da cidade de São Paulo priorizam o cinema raiz ao streaming? Tenho lá minhas dúvidas!
Dirigido e roteirizado por J. A. Bayona, cineasta espanhol responsável pelo aterrorizante “O Orfanato” (El Orfanato: 2007), pelo suspense dramático “O Impossível” (Lo Imposible: 2012), pelo suspense fantástico “Sete Minutos Depois da Meia-noite” (A Monster Calls: 2016) e pelo midiático “Jurassic World – Reino Ameaçado” (Jurassic World – Fallen Kingdom: 2018), “A Sociedade da Neve” foi inspirado na história real de um acidente aéreo ocorrido na Cordilheira dos Andes na década de 1970.
No dia 12 de outubro de 1972, o voo 571 da Força Aérea Uruguaia levava o Old Christians, time amador de rugby de Montevidéu, para uma competição em Santiago. Ao lado dos atletas no avião fretado foram amigos e parentes em um total de 45 pessoas entre passageiros e tripulação. Depois de enfrentar fortes turbulências, a aeronave precisou fazer um pouso de emergência em Mendoza. No dia seguinte, mesmo com o mal tempo persistindo, a viagem foi retomada em direção à capital chilena. E quando o avião sobrevoava a fronteira dos dois países, em uma região com muita neve, ele se chocou com um pico andino e caiu no alto das montanhas. A partir daí, os 29 sobreviventes precisaram encarar todo tipo de adversidade: ar rarefeito dos 4.000 metros de altitude, frio de mais de 30º C negativos, falta de comida, abrigo precário, nevascas e ventanias constantes e, claro, convívio em um grupo fragilizado física e emocionalmente.
O filme é baseado no livro homônimo do jornalista uruguaio Pablo Vierci, ex-colega de escola de um dos jogadores de rugby daquele fatídico voo. Vierci, que mora até hoje em Montevidéu, aproveitou a proximidade com um dos sobreviventes para narrar, em 2008, a saga de seus conterrâneos. O resultado é uma obra não ficcional que apresenta um mosaico de vozes que detalham os 72 dias (sim, você leu corretamente, foram quase dois meses e meio!!!) que o grupo permaneceu no alto da montanha a espera de resgate. Como eles conseguiram sobreviver? Esse é o mistério por trás dessa história de superação que reserva polêmicas como a prática de canibalismo. Orçado em 60 milhões de euros, “A Sociedade da Neve” foi filmado ao longo de 2022 em Sierra Nevada, na Espanha, Montevidéu, no Uruguai, e na Cordilheira dos Andes, no próprio local do acidente (na fronteira entre Chile e Argentina).
Vale a pena esclarecer que essa não é a primeira vez que essa trama foi levada aos cinemas. Se você tem mais de 40 anos e está sentindo déjà vu, não se preocupe: você deve ter visto uma das outras versões da saga dos jogadores uruguaios de rugby pelos Andes. As outras produções que conheço (e assisti) são “Vivos” (Alive: 1993), longa-metragem do norte-americano Frank Marshall, e o também chamado “A Sociedade da Neve” (La Sociedad de La Nieve: 2018), documentário do uruguaio Gonzalo Arijón. Se formos buscar mais atrás na linha do tempo (mas esse eu não vi, tá?), encontraremos “Sobreviventes dos Andes” (Survive!: 1976), do mexicano René Cardona Jr (filho do genial René Cardona!).
Por que tantas regravações de uma mesma história por artistas de várias partes do mundo (América do Sul, América do Norte e Europa) e em épocas distintas (décadas de 1970, 1990, 2010 e 2020)? Simplesmente porque ela é a narrativa contemporânea de superação mais famosa e impactante do Uruguai (e uma das mais extraordinárias do planeta). De tão incrível, nem parece se tratar de fatos verídicos. Nenhum autor ficcional, creio eu, poderia criar um drama tão forte e cruel baseando-se somente na fértil imaginação humana.
Curiosamente, J. A. Bayona conheceu o conteúdo do livro de Pablo Vierci quando fazia pesquisas, por volta de 2010, para “O Impossível”, seu segundo filme (outra história inacreditável de superação). Sem titubear, o cineasta espanhol comprou os direitos autorais para a adaptação da obra do jornalista uruguaio para o cinema. Além disso, Juan Antonio Bayona entrevistou todos os sobreviventes e os principais familiares das vítimas daquele voo da Força Aérea Uruguaia. Assim, criou um forte vínculo com as figuras retratadas no longa-metragem. Como consequência, conseguiu a inédita autorização para a apresentação dos nomes verídicos de todos os envolvidos em sua produção. É legal dizer que os filmes anteriores não tinham conseguido essa façanha.
No elenco principal de “A Sociedade da Neve”, temos prioritariamente jovens atores uruguaios e argentinos: Enzo Vogrincic, Agustín Pardella, Matías Recalt, Esteban Bigliardi, Diego Vegezzi, Fernando Contigiani García, Esteban Kukuriczka, Rafael Federman, Francisco Romero, Valentino Alonso, Tomás Wolf, Agustín Della Corte, Felipe Otaño, Andy Pruss, Blas Polidori, Felipe Ramusio e Simón Hempe. Com exceção dos argentinos Agustín Pardella e Esteban Bigliardi (e de Louta, que faz uma ponta), confesso que não conhecia os rostos da grande maioria dos intérpretes deste filme.
“A Sociedade da Neve” foi exibido ao grande público pela primeira vez no Festival Internacional de Cinema de Veneza, em setembro de 2023. Alguns dias antes, Juan Antonio Bayona teve a sensibilidade de fazer uma sessão exclusiva no Uruguai para os sobreviventes e as famílias das vítimas do voo 571 da Força Aérea Uruguaia. Antes de ser lançado no circuito comercial, o filme conquistou alguns prêmios cinematográficos: Prêmio de Melhor Filme segundo o público no Festival Internacional de Cine de San Sebastián (Espanha), Prêmio de Melhor Trama no Festival de Cine de Mill Valley (Estados Unidos) e Prêmio de Melhor Longa-metragem Internacional segundo público do Festival de Cine de Middleburg (Estados Unidos).
Em 13 de dezembro de 2023, “A Sociedade da Neve” estreou nos cinemas uruguaios. Ainda naquela semana, chegou às salas internacionais. No Brasil e na Argentina, por exemplo, seu lançamento foi em 14 de dezembro. Na Espanha, foi em 15 de dezembro. E por falar no país ibérico, “A Sociedade da Neve” foi escolhido para ser o representante espanhol na próxima Premiação do Oscar. Obviamente, ele concorre na categoria de Melhor Filme Internacional. Os finalistas devem ser anunciados na próxima semana. O que já sabemos é que esta produção de Bayona está entre as 15 pré-finalistas.
Desde 4 de janeiro de 2024, o longa-metragem está disponível aos assinantes da Netflix. Na primeira semana na plataforma de streaming, “A Sociedade da Neve” tornou-se a produção de língua não inglesa mais vista no mundo. Ou seja, esse é um suspense dramático que, 50 anos mais tarde e com várias versões da mesma narrativa, ainda mexe com a curiosidade do público. Não há prova mais cabal da força de uma boa história, né? Acho que agora deu para entender um pouco mais o porquê escolhi esse título para ser o tema do primeiro post da coluna Cinema em 2024.
O enredo de “A Sociedade da Neve” começa no início de outubro de 1972. Uma equipe amadora de rugby de Montevideu é derrotada na última partida do torneio local. A culpa recai em Roberto (interpretado por Matías Recalt), o mais rápido jogador do time. Ao invés de passar a bola para os companheiros desmarcados, ele tentou correr sozinho e foi interceptado pelo adversário no lance decisivo do jogo. A falha e, principalmente, a atitude egoísta do craque uruguaio não passam batidas no vestiário. Como é tradição no rugby, coube a Marcelo (Diego Vegezzi), o capitão da equipe, cobrar Roberto de um jeito mais contundente.
Apesar da tristeza pela derrota, o ambiente entre os jogadores é o melhor possível. Nos próximos dias, os rapazes entre 20 e 30 anos da classe média da capital uruguaia vão embarcar para uma competição internacional no Chile. Lá, vão praticar o esporte que mais amam e turistar um pouco. Entretanto, o que mais os motiva é a possibilidade de conhecer hermosas chicas chilenas com quem já trocam correspondências. Por isso, ao invés de se preocuparem tanto em reprender Roberto pela jogada equivocada, os atletas estão mais preocupados em convencer os colegas que não querem acompanhá-los na viagem a mudar de ideia. Por exemplo, Numa (Enzo Vogrincic) é um dos que não querem renunciar à rotina em Montevidéu para ir por alguns dias à Santiago do Chile. Porém, após insistência dos companheiros, ele enfim aceita partir para a aventura no exterior.
O voo acontece em 13 de outubro de 1972. Ao invés de utilizar um avião comercial, como seria o mais corriqueiro nessa situação, a equipe recorre a uma pequena aeronave da Força Aérea Uruguaia. Importante contextualizar que o Uruguai (e boa parte do continente sul-americano) vivia nesta época sob o regime ditatorial dos militares. E com o poder executivo, legislativo e judiciário em mãos, os milicos gastavam recursos governamentais em seus interesses particulares e em benefício dos amigos (não, imagine, na época da Ditadura Militar não tinha corrupção!). Ou seja, para que os garotos de classe média de Montevidéu com bons contatos no governo federal não precisassem pagar a viagem dos próprios bolsos, a Força Aérea Uruguaia cedeu gentilmente uma aeronave para o grupo. Junto com os atletas embarcam amigos e parentes, em uma espécie de trem da alegria com asas. Entre passageiros e tripulação, 45 pessoas vão a bordo.
No meio da viagem, quando sobrevoa a Cordilheira dos Andes já no Chile, o avião enfrenta uma forte turbulência. Por causa da empolgação dos passageiros e do espírito de camaradagem dos rapazes, a maioria não dá bola à princípio para o mal tempo e para os problemas da aeronave. O clima é de alegria e diversão. Infelizmente, rapidamente a situação sai do controle e o comandante pede para os passageiros ficarem em seus assentos com cinto apertado. O pior acontece. Depois de perder altitude, o avião se choca com as montanhas de gelo e cai em um lugar remoto da Cordilheira dos Andes.
No acidente, 29 das 45 pessoas a bordo sobrevivem. Este é o primeiro milagre desta história, se assim podemos chamar a alta taxa de sobrevivência (64%) para uma catástrofe aérea. Quem escapou ileso não tem a oportunidade de comemorar a sorte inicial. Eles caíram em uma região montanhosa desabitada e com frio extremo. Nos dias seguintes, o novo desafio é se manter vivo até a chegada do resgate. Enquanto isso, os passageiros cuidam dos feridos, isolam os corpos dos mortos e procuram fazer sinais para os aviões que sobrevoam a região em busca dos destroços da aeronave.
O problema é que o veículo da Força Aérea Uruguai é da cor branca e a região do acidente está com bastante neve. Nunca a equipe de resgate conseguirá achá-los, pensam os mais pessimistas. E é exatamente isso o que ocorre. Pelo rádio da aeronave, os jogadores de rugby ouvem, após algumas semanas no alto da montanha, que os trabalhos de localização foram interrompidos por causa do mal tempo. Só no Verão, quando o clima melhorar, as autoridades chilenas voltarão a enviar equipes para monitorar a área. Na certa, pensam que não há sobreviventes.
O desespero toma conta dos passageiros. Agora eles estão sozinhos e isolados em um lugar inóspito. O ar rarefeito dificulta a respiração. A pouca comida que eles tinham achado no avião já acabou faz tempo. Não há roupas de frio suficientes. As tempestades de neve são constantes e provocam avalanches. Como sobreviver algumas horas nestas condições?! Aí surge o segundo milagre: apesar da adversidade, boa parte da equipe consegue se manter viva. Os dias no alto da montanha se transformam em semanas e as semanas viram meses. O que parecia impossível se torna real: os uruguaios insistem em sobreviver.
Assim, é formado um novo tipo de sociedade no alto das montanhas nevadas (daí o nome do livro de Pablo Vierci, que o filme de J. A. Bayona se apropriou). A decisão mais polêmica que o grupo de amigos precisa tomar é como obter alimentos. Sem outra opção disponível (não há nada nos Andes além de gelo, gelo e mais gelo), eles cogitam se alimentar dos corpos dos passageiros mortos. O canibalismo é a única alternativa para se manterem vivos, pensam alguns. Para outros, essa hipótese é impensável. A decisão cabe, então, ao capitão do time, Marcelo. E ele é terminantemente contra à prática tão desumana e que afronta sua religião.
Esse só é um dos perrengues que os uruguaios passam. Cada dia no alto dos Andes é um exercício de superação do organismo humano contra a natureza selvagem e as carências biológicas. Conseguirá a equipe de rugby sobreviver muito tempo mais naquele cenário de filme de terror? Como eles vão fazer para sair das montanhas ou pedir socorro?! Essas são as dúvidas que movem os espectadores nesse thriller eletrizante.
“A Sociedade da Neve” possui quase 2 horas e meia de duração. É, portanto, um filme longo, muito longo (que chamo carinhosamente de longa-longa-metragem). Aqui está o primeiro acerto do cineasta espanhol – e olha que quem está dizendo isso é alguém que não gosta de longas sessões dentro do cinema! Vamos combinar que não dava para J. A. Bayona mostrar o incômodo absurdo de se passar 72 dias no alto dos Andes se isso não mexesse fisicamente com a plateia, né?! O curioso é que o público não pode reclamar de cansaço ou de mal-estar dentro da sala de cinema com ar-condicionado, poltrona confortável e com saco de pipocas em mãos. O que é a reclamação de ficar 145 minutos sentado enquanto os uruguaios na telona estão padecendo de todo tipo de desconforto imaginável e inimaginável por semanas e mais semanas, hein?!
Por mais que a longa duração do filme possa incomodar um pouco alguns espectadores mais ansiosos, achei o roteiro de “A Sociedade da Neve” perfeito porque ele se arrasta justamente quando os passageiros da tragédia aérea buscam socorro. Ou seja, esse recurso dá um suspense maior à trama e transmite a ideia de que uma solução para os problemas das personagens é inviável. Além disso, a sensação de que o tempo não passa no alto dos Andes chega no outro lado da tela e atinge em cheio a plateia, em uma dinâmica intertextual e sinestésica maravilhosa.
Vejamos o que estou dizendo. A produção de Bayona demora em torno de 15 minutos para mostrar o acidente. Em suma, tudo ocorre muito rapidamente. Depois leva mais 20 minutos para inserir o drama do canibalismo. A partir daí, o enredo cinematográfico vai enfileirando uma série de acontecimentos que colocam a equipe de rugby ao limite máximo. Até aí tudo beleza: é adrenalina pura! O desfecho também é rápido (só não digo mais para não dar o spoiler). Então, onde o longa-metragem se arrasta? Quando os uruguaios partem em busca de ajuda. Nesse momento, as cenas ficam mais lentas e a todo momento achamos que eles vão conseguir, mas não conseguem. Repito: esse recurso é proposital para dar a dimensão da saga impressionante daqueles homens abandonados no fim do mundo. A demora nessa parte do filme (ou o tempo mais lento dos acontecimentos) indica o quanto as personagens estão esgotadas física e emocionalmente.
Outro elogio que precisamos fazer para “A Sociedade da Neve” é que ele foi muito bem filmado. A cena do acidente de avião é extremamente realista e angustiante (e uma das melhores cenas de ação dos últimos anos fora do cinema norte-americano). Para completar, a recriação da montanha andina está espetacular. Sabemos o quão fidedigno é o set de filmagem no final do longa-metragem, quando sobem os créditos na tela e são inseridas também fotografias reais (sim, os passageiros tiraram fotos do que viveram naqueles dias pavorosos). Confesso que não consegui diferenciar quais imagens eram fictícias e quais eram verídicas.
Ainda nessa linha, repare na preocupação das equipes de fotografia e de maquiagem para mostrarem o definhamento físico das personagens. Temos uma série de indícios que os rapazes estão morrendo: rostos ficando negros, urina preta, fraqueza muscular, cabelos e barbas rebeldes e dentes escurecidos. Mesmo com tanta adversidade, percebe-se que o grupo não vivenciou grandes intrigas. Talvez o único aspecto que gerou maior tensão foi mesmo a decisão de se alimentar de carne humana. Do resto, não houve brigas, intrigas ou picuinhas.
Por falar nisso, é bom esclarecer que “A Sociedade da Neve” é muito mais do que um filme sobre canibalismo. Ele traz outras questões tão importantes quanto a maneira como os sobreviventes arranjaram comida. Porém, é impossível falar dessa história sem falar do consumo de carne humana pela equipe uruguaia de rugby. Nesse sentido, gostei do jeito como a produção espanhola expôs a situação: mostrando sem constrangimento pedaços de carne e, em algumas tomadas de câmera, a ossada restante depois da extração do alimento. São cenas muito fortes. Como atenuante, o grupo de passageiros encontrou alternativas para mascarar a delicada decisão de ingerir os corpos dos companheiros. Por exemplo, eles escolheram uma pessoa para fazer o trabalho sujo longe dos olhos de todos. Essa estratégia funcionou por algum tempo.
Para quem (como eu) assistiu a “Vivos” e tenha gostado do filme de 1993 com essa mesmíssima história, preciso dizer que “A Sociedade da Neve” tem uma abordagem bem diferente. Enquanto o antigo longa-metragem era mais hollywoodiano (com atores norte-americanos e falando inglês) e priorizava as cenas de ação (com muita coisa inventada), o drama de J. A. Bayona é mais intimista (mostra a angústia psicológica das personagens) e tem tempero totalmente sul-americano (atores do cone sul falando espanhol do Rio da Prata).
Ainda nessa linha de comparação entre os filmes, achei “A Sociedade da Neve” mais fiel aos eventos reais de 1972 do que “Vivos”. As mudanças do roteiro de Bayona para o enredo do livro de Pablo Vierci são tão sutis que dá trabalho encontrá-las. Confesso que identifiquei apenas duas ou três adaptações totalmente pertinentes para a produção cinematográfica. Afinal, não fazia sentido mostrar o pouso em Mendoza no meio da viagem por causa do mal tempo nem enfocar a sorte do passageiro que perdeu o voo em Montevideu por ter dormido demais. Também não me incomodei com a ausência de explicações de como o fazendeiro chileno no meio do nada, lá no final do filme, fez para comunicar as autoridades do seu país sobre o aparecimento dos sobreviventes uruguaios (no livro e no filme de 1993, é relatado que ele precisou galopar dez horas, sendo uma figura essencial no salvamento do grupo).
Analisando o roteiro de “A Sociedade da Neve”, nota-se a preocupação de mostrar o lado humano dos vários integrantes da equipe de rugby. Assim, não temos um protagonista apenas e sim várias figuras principais que se revezam o tempo inteiro no centro da trama. Talvez possamos ficar com a sensação de que Numa Turcatti, interpretado por Enzo Vogrincic, tenha algum destaque um pouco maior porque é ele quem inicia e termina a narração. Porém, isso é só uma impressão. Todos os rapazes têm a mesma importância dentro da narrativa.
Por falar na narração de Numa, achei espetacular colocá-lo nessa posição. Essa opção pouco convencional (não posso explicar o porquê agora, tá?) confere um ar sobrenatural ao filme (se bem que com esse comentário acho que já abaixei as cartas na mesa...). Ao mesmo tempo, presta-se com isso uma bonita homenagem a todos que faleceram no acidente, seja no instante do impacto do avião na montanha seja nos dias posteriores nos Andes. É ou não é uma escolha espetacular, hein? O cuidado do diretor para não macular os nomes, as imagens e as histórias dos envolvidos nesse drama que muitos chamam de “O Milagre dos Andes” é digno de elogios. Podemos reparar na preocupação do diretor quando se insere na tela o nome da pessoa no instante exato em que ela morre (um recurso visual mais comum dos documentários do que da ficção). Não à toa, todas as famílias aceitaram conceder os nomes dos parentes falecidos para a produção espanhola.
Quando falo que o roteiro está redondo, redondinho, é porque fiquei encantado com algumas construções narrativas feitas por J. A. Bayona. Peguemos o fato de os protagonistas serem de um time de rugby. A trama não deixou essa informação solta. Pelo contrário, usou-a para potencializar o drama. Para quem não conhece esse esporte a fundo, é importante dizer que se trata de uma das modalidades mais coletivas que existe. Como consequência, um excelente jogador nunca conseguirá se destacar mais do que o trabalho do time como um todo. Esse princípio esportivo do rugby aparece o tempo inteiro no filme, principalmente na comparação metafórica entre a corrida de Roberto no campo de jogo (no início de “A Sociedade da Neve”) e a longa caminhada pelas montanhas andinas (no desfecho do longa-metragem). Quando entendemos a relação entre as duas cenas/responsabilidades de Roberto, compreendemos a enorme dimensão humana por trás dessa história.
Ainda falando do rugby, o papel do capitão é de enorme importância para a equipe (muito mais do que esse posto possui no futebol). O capitão é quase um treinador, uma figura que tem muita influência sobre os demais jogadores. Ou seja, quando Marcelo diz que não será permitido comer carne humana, a decisão não é de um mero integrante do grupo e sim do grande líder dos rapazes. Por consequência, se alguém for contra os seus desígnios, isso indicará uma ruptura estrutural muito sensível naquele grupo de pessoas. Acho que essa explicação é muito relevante para o entendimento de uma cena emblemática.
O elenco de “A Sociedade da Neve” não é formado por atores e atrizes conhecidos do cinema argentino e do cinema uruguaio. Por isso, é bom esclarecer que eles não comprometem a qualidade do filme. Se ninguém dá show interpretativo na frente da tela, ninguém atrapalhou. É o famoso: deram conta do recado. Ou, na pior das avaliações, ganharam nota para passar de ano.
Confira, a seguir, o trailer de “A Sociedade da Neve” (La Sociedad de la Nieve: 2023):
Por mais que já tenhamos assistido às outras versões desse filme e conhecemos a história tintim por tintim, ainda assim saímos da sessão de cinema embasbacados. Eu posso garantir isso pela reação da plateia na sala em que estive presente na semana passada. Após o encerramento de “A Sociedade da Neve”, o público permaneceu imóvel nas poltronas por alguns minutos. Aos poucos, o pessoal foi saindo do cinema em total silêncio. Há muito tempo não presenciava uma reação tão forte de um filme nos espectadores. A impressão que tive é que a plateia foi embora em um transe reflexivo.
Por isso, resolvi fazer esse post para a coluna Cinema. O meu filme predileto das últimas semanas, insisto, continua sendo o impecável e original “Folhas de Outono” – e é para ele que estou torcendo no Oscar de 2024. O longa-metragem que mais gostei de ter visto de dezembro para cá foi “Muchachos” – a mais incrível experiência cinematográfica dos últimos anos em uma sala de cinema. Contudo, o título que mexeu mais comigo foi mesmo “A Sociedade da Neve”. Isso porque já conhecia sua história. Fiquei imaginando a reação da pessoa que se depara com esse drama pela primeira vez. Deve ser uma experiência incrível, né?!
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