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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Foto do escritorMarcela Bonacorci

Dança: Tango - As características e os detalhes da charmosa dança argentina

Conheça a história, a evolução, as influências, a sensualidade, os encantos e as particularidades do Tango, o estilo dançante criado em Buenos Aires que conquistou admiradores no mundo inteiro.


Dança Tango: Marcela Bonacorci apresenta na coluna Dança a história, a evolução, as influências e as particularidades do Tango, a dança uruguaio-argentina que emociona o mundo inteiro até hoje

Vamos começar o 2024 da coluna Dança em grande estilo. Hoje falaremos de uma dança envolvente, visualmente impactante e que mexe com as emoções de muita gente, o Tango. Sei que já apresentei no Bonas Histórias as características, os detalhes e os ritmos da Dança de Salão. Naquele momento, não escondi minha preferência pelas diversas modalidades dançantes praticadas a dois. A ideia agora é nos aprofundarmos no Tango, que é um dos estilos mais charmosos e desafiadores da Dança de Salão.


É curioso que quando falamos em Dança de Salão, muitas pessoas já se lembram automaticamente do Tango. É quase impossível não associarmos os dois termos. O mesmo princípio vale para quando pensamos em Argentina e Buenos Aires. Em qualquer parte do mundo, citar o país sul-americano e a sua encantadora capital é se lembrar direta ou indiretamente da coreografia passional de um casal dançando Tango.


Gosto de comentar logo de cara essa atração universal porque é como se o Tango fosse o parceiro inseparável da Dança de Salão, da Argentina e de Buenos Aires. É como se eles estivessem sempre abraçados, com braços e pernas entrelaçados em um bailado ritmado e intenso. Sem poderem se separar, acabam ficando juntos e dançando eternamente no imaginário popular. É ou não é lindo, hein?!


Como fã do Tango desde pequena, como professora dessa modalidade na Dança & Expressão há duas décadas e como praticante desse ritmo há mais de vinte e cinco anos, vou aproveitar o post de hoje da coluna Dança para apresentar vários aspectos do Tango: sua história, sua evolução, suas peculiaridades, suas influências, suas polêmicas, seus encantos, o carisma de suas músicas, seus passos desafiadores e seus artistas mais emblemáticos.   


Começo esse debate comparando o Tango com as danças brasileiras. Quando pensamos nos nossos ritmos nacionais mais típicos, como o Frevo, o Samba e o Forró, por exemplo, imediatamente nos vem à mente a alegria e a extroversão dos dançarinos em ação. Com certeza, esse conjunto de características não se aplica à modalidade portenha. Como definiu Enrique Santos Discépolo, poeta, compositor, ator e dramaturgo argentino, o Tango é “um pensamento triste que pode ser dançado”. Apesar do tom melancólico e soturno, ele é uma dança envolvente, bela, expressiva e extremamente intensa. É impossível ficarmos indiferentes aos movimentos hipnotizantes de um casal dançando Tango.


Essa dança exige muita técnica, entrosamento do par, movimentos precisos e grande habilidade dos pés e das pernas de seus praticantes. Em uma única música, os movimentos misturam sensualidade e agressividade, paixão e tristeza, passos lentos e ágeis e coreografias combinadas e improvisadas. Tudo isso com uma carga dramática elevada, que transmite a ideia de beleza, cumplicidade, luxúria e sensualidade, elementos mais expressivos do Tango.


Confira a origem, a história, os estilos, as influências culturais e o charme do Tango, a modalidade de dança nascida na Argentina que é sinônimo de elegância, sensualidade e passionalidade

De tão intimidadora e complexa à primeira impressão, essa modalidade é oferecida normalmente nos níveis avançados dos cursos gerais de Dança de Salão da Dança & Expressão (exceção feita aos Cursos de Férias e aos workshops específicos). Porém, não quero desanimar os interessados em praticar Tango. Afinal, há muita gente que não se arrisca a dar os primeiros passos por acreditar que esse ritmo é inalcançável para os dançarinos amadores. Isso não é verdade! Como professora de dança, posso garantir que é possível para todo mundo dançar qualquer modalidade. Basta começar dos passos básicos e ter disciplina e paciência para ir melhorando aos poucos. Aí um dia os dançarinos estarão em uma apresentação para amigos e familiares e ouvirão os aplausos e a admiração do público pelo excelente desempenho no palco.


O que acontece com as danças com um grau maior de complicação é que o aprendizado e a fluidez demoram um pouco mais, principalmente se você não tiver experiência em outras modalidades do gênero. Por exemplo, para dançar bem o Tango demanda muito mais tempo do que a Salsa e o Merengue. Aí muitas pessoas mais ansiosas acabam se frustrando. A expectativa delas era que em poucas aulas já chegassem ao patamar dos dançarinos de Tango que se exibem nos palcos e na televisão. Nas primeiras aulas até dá para sair realizando os passos mais simples. Porém, nada que vá impressionar os outros nem que chegue perto do nível das apresentações realizadas nas ruas de Buenos Aires. Nesse momento, eu preciso dizer para os alunos: muita calma nessa hora!


O Tango é uma dança realizada com o casal bem juntinho. Isso é fundamental para criar o entrosamento e a conexão entre eles e para desenvolver a estética passional dos passos. Os movimentos são realizados principalmente com os membros inferiores, com os desenhos das pernas das damas e dos cavalheiros. Eles se encostam, afastam, se entrelaçam e muitas vezes parecem que vão dar um nó difícil de desatar. Esses ganchos ou cortes, como são chamados tecnicamente esse entrelaçar de pernas, acompanham a música e são sem dúvida nenhuma o grande charme do Tango. O que transmite a elegância da dança é a variação que se emprega de angulação e velocidade em cada movimento. E a sua sensualidade deriva dos movimentos curvos, sinuosos e orgânicos do entrelaçar de pernas.


A dama tem que dançar com o corpo um pouco inclinado ao cavalheiro. Ela precisa deixar o tronco encostado ao parceiro e as pernas mais livres e com mais espaço para desenvolver seus desenhos e figuras. Se você for dançar um Tango, certamente fará muitos ganchos e arremates, além de rodar pelo salão inteiro. A maioria dos ritmos da Dança de Salão exige esse fluxo pelo ambiente. Trata-se de uma dinâmica corriqueira das danças em casal – o padrão é se deslocar pelo salão no sentido anti-horário. O Tango não é diferente. Ele obriga seus praticantes a se movimentarem constantemente, como se um dos principais objetivos fosse justamente ser visto por todos no recinto. Por isso, já nas primeiras aulas os alunos aprendem que dançar Tango é caminhar pelo salão.


Muitos estudiosos da dança inclusive afirmam que essa caminhada luxuriante tão típica da modalidade argentina carrega em si os elementos que fizeram o Tango tão apaixonante no mundo inteiro. A sensualidade, a elegância e a expressividade estão intimamente ligadas ao desfile de corpos grudados como se não pudessem se separar e não tivessem vergonha dos olhares alheios. Para os praticantes, essa movimentação natural pelo espaço leva geralmente um tempo para ser amadurecida. A própria base do Tango, constituída em oito tempos, faz com que nos desloquemos permanentemente e nos movimentemos intuitivamente pelo salão.


Se você já dança algum outro ritmo de Dança de Salão e quer dar os primeiros passos no Tango, aqui vai uma diferença importante. Em quase todas as modalidades de dança de casal, a pessoa que está sendo conduzida, ou seja, quem está no papel de dama, começa sempre a dançar com a perna direita. E quem está conduzindo, o papel do cavalheiro, inicia a dança com a perna esquerda. Essa regra quase universal da Dança de Salão não funciona no Tango, o que pode confundir os dançarinos mais experientes. Porém, asseguro que esse problema só ocorre no início do processo de aprendizado e/ou na arrancada da dança. A partir daí, a condução do Tango é feita através do movimento preciso do tronco e dos braços do cavalheiro. É ele que passa todas as informações para a dama, algo corriqueiro nas danças a dois.


Patrimônio cultural tanto da Argentina quanto do Uruguai, o Tango é a modalidade de dança nascida em Buenos Aires que se tornou popular no planeta inteiro

Para quem assiste a uma apresentação de Tango, esses detalhes mais técnicos podem até passar despercebidos. O que acaba chamando mais a atenção do público espectador é o conjunto formado pela sensualidade dos passos, a harmonia do bailado do casal, a caminhada elegante pelo recinto, os giros e ganchos rápidos, as travas e os rodopios dos dançarinos, os movimentos deslizantes no chão e as poses dramáticas.


É inegável a importância do Tango para a dança mundial e para a cultura popular internacional. Em 2009, a modalidade foi elevada à categoria de Património Cultural e Imaterial da Humanidade pela Unesco. Esse título veio depois que os governos de Buenos Aires e de Montevideo deixaram de lado momentaneamente a rivalidade de onde o ritmo teria nascido, se uniram e lançaram a candidatura conjunta do Tango para essa honraria. Para quem possa ter estranhado a briga argentino-uruguaia, os dois países reclamam para si o posto de berço do ritmo. Por vezes, essa discussão adquire níveis de passionalidade parecidos aos embates mais ruidosos ocorridos dentro dos campos de futebol.


Para entendermos o apelo que o Tango tem até hoje, basta lembrarmos de algumas cenas mágicas do cinema. Quando inseridas a dança e a música argentinas (e/ou uruguaias) no roteiro, a atmosfera do filme se transforma completamente. Como não recordarmos de Al Pacino dançando com Gabrielle Anwar “Por una Cabeza” em “Perfume de Mulher” (Scent of a Woman: 1992). Essa talvez seja a cena de Tango mais famosa da sétima arte. Impossível não nos emocionarmos. Sabendo disso, os argentinos se enchem de orgulho e repetem a definição dada pelo filósofo americano Waldo Frank: “Tango é a dança popular mais profunda do mundo”.


Vamos voltar no tempo para conhecer mais sobre a história do Tango. Se hoje ele é conhecido por sua elegância e requinte, lá atrás a coisa era bem, bem diferente. É até difícil imaginarmos o quão popularesca era essa modalidade em sua origem e por onde ela já andou... E saiba que nem sempre o Tango teve esse ar de seriedade e o tom de introversão, duas de suas principais marcas atuais. No início, sua alegria e descontração lembravam muito mais os nossos sambas. Difícil de imaginar, né? Vamos, então, pegar a máquina do tempo para entendermos como essa transformação se efetivou.  


Um dos fatores que faz com que a Argentina e o Uruguai disputem a primazia do Tango é que ele nasceu nas margens do Rio da Prata. Em qual lado? Aí depende da interpretação de cada país. Segundo a versão dos argentinos, a mais propagada mundialmente, tudo começou por volta de 1877 no bairro de Montserrat, em Buenos Aires. Naquela época, essa região era conhecida como “Barrio del Mondongo” e ficava entre a Casa Rosada e o Congresso Nacional.


Nesse local se reuniam os afro-argentinos da capital. Eles se organizavam em associações beneficentes e promoviam festas para angariar dinheiro. Esses eventos eram acompanhados por um tipo de dança que escandalizava os moradores brancos de Buenos Aires. Na época do Carnaval, essas associações se apresentavam nas ruas ao som das batucadas conhecidas na região do Rio da Prata como candombe. A burguesia local achava indecente aquela dança. Nas disputas para mostrar quem tinha sido o melhor grupo nos festejos carnavalescos, sempre havia incidentes. Ou seja, brigas e confusões eram extremamente comuns. Por isso, o governo de Buenos Aires determinou a dissolução dessas associações e a proibição dos festejos nas ruas.


Dança sul-americana carismática, o Tango tem movimentos sensuais, coreografias complexas, passos marcantes e por vezes improvisados, forte carga dramática e músicas intensas

Dessa forma, nasceu os tambos, lugares criados pelos afro-argentinos para dançar. Nessa época, a dança era realizada de forma solta, requebrada e com bastante animação. Quem rapidamente passou a frequentar os tambos foram os compadritos. Naquele momento, esse termo não era destinado ao diminutivo de compadre como é hoje. Ele era designado aos homens que viviam de biscates na periferia das cidades. Eles dedicavam-se a jogatina, tocavam violão e tinham o hábito de lavar a honra com sangue. Os compadritos dançavam a milonga, a polca, a quadrilha e a mazurca. Com a chegada dos brancos aos tambos, houve uma modificação sensível das danças que os negros praticavam. Dessa mistura surgiu um novo ritmo, que se convencionou chamar de Tango.


A nova dança passou a ser em par. Os casais dançavam colados, mas com irreverência e de maneira jocosa. Pouco a pouco, a animação e a descontração africanas foram cedendo espaço para a elegância e a melancolia dos espanhóis de Buenos Aires. Até então, os compadritos estavam acostumados a dançar apenas em bordéis e nos peringundines, lugar exclusivo para a prática do sexo pago. Assim, o Tango, em seus primórdios, não era dançado pelas mulheres da alta sociedade portenha. Como era malquisto pela burguesia devido à forte conotação sexual, esse ritmo era praticado quase que exclusivamente pelas prostitutas. Afinal, como os compadritos não encontravam mulheres disponíveis para dançar com eles, era preciso improvisar. Aí valia desde pagar pela companhia de meretrizes até convidar outros homens para o bailado.


Na década de 1880, chegou à Argentina uma grande leva de imigrantes italianos. Sua contribuição para o Tango foi expressiva tanto na música quanto na dança. Eles adicionaram instrumentos como a flauta, o bandolim e o realejo. E as prostitutas italianas deixaram o Tango menos vulgar. Nessa fase, ainda de transição do Tango dos tambos para o que temos hoje, a dança ficava restrita aos cabarés da esquina da Avenida Corrientes com a Rua Uruguai. Esses espaços logo foram fechados devido à pressão da polícia e se deslocaram para o Centro da cidade.


Da nova localidade, o Tango se expandiu para as áreas nobres de Buenos Aires. Os responsáveis pela popularização do ritmo foram os cajetillas, rapazes da classe nobre portenha. Querendo imitar a descontração e a libertinagem dos compadritas, os cajetillas começaram a frequentar os mesmos lugares dos biscateiros. Ali, falavam, gesticulavam e dançavam como seus ídolos. Contudo, os cabarés do Centro não tinham o glamour que a juventude endinheirada estava acostumada a respirar. Assim, os filhos da alta burguesia levaram o Tango para os bairros abastados de Buenos Aires. Ali, a dança ganhou roupagem mais refinada, novos instrumentos e músicos profissionais. Foi nesse instante que se acrescentaram o violino, o piano e o bandonéon.


Em 1913, quatro décadas após o aparecimento dos tambos, a Argentina havia crescido muito. O país contava com 1,55 milhão de habitantes, sendo 850 mil homens e 700 mil mulheres. Como consequência a essa diferença entre os sexos, a população masculina frequentava bastante os cabarés. Além disso, é importante dizer que Buenos Aires no início do século XX era uma cidade portuária (não à toa, seu gentílico é portenho, termo que faz menção aos moradores da região do porto). Com uma leva considerável de marinheiros e viajantes, as meretrizes tinham muito trabalho. 


Em outras palavras, os cabarés ganharam força e cresceram, o que ajudou na divulgação do Tango. Os músicos que tocavam nos estabelecimentos dos bairros nobres passaram a ser mais profissionais devido a exigência da nova clientela, formada por importantes figuras da alta sociedade portenha: advogados, médicos, atores, fazendeiros e banqueiros. Foi assim que o Tango se tornou ao mesmo tempo mais conhecido e refinado, em uma contradição entre a sua popularização e sua sofisticação. Como a elite de Buenos Aires era, naquele momento, uma das mais ricas do mundo e frequentava regularmente Paris, a dança foi levada para a capital francesa, então a metrópole da cultura ocidental.


Modalidade dançante que faz admiradores no mundo inteiro, o Tango é uma Dança de Salão em que os casais precisam de entrosamento e habilidade para executar passos complexos

Na Europa, o novo ritmo se tornou uma febre. Na França, o centro da moda e da diversão mundial, ele era praticado tanto nos cabarés quanto nos salões da alta classe. Curiosamente, a fama e o prestígio do Tango no exterior foram superiores ao que ele possuía em nível doméstico. Enquanto na Argentina muitas pessoas ainda marginalizavam aquela dança de origem simplória, no Velho continente o Tango era uma unanimidade.


Talvez o correto seja dizer quase unanimidade. Porque alguns bispos franceses queriam a proibição daquela dança que julgavam atentar contra os bons costumes e a moral católica. Depois de receber reclamações formais da Igreja francesa, o Vaticano começou a julgar o caso. Antes que o Papa pudesse acatar as vontades dos opositores do Tango, a embaixada argentina em Roma se adiantou e marcou uma apresentação da dança para a Sua Santidade. Eles queriam mostrar o quão inofensivo e casto era o ritmo que estava contagiando a Europa. Assim, Pio XI assistiu à exibição de um jovem casal de irmãos italianos. Obviamente, a dança fora previamente preparada para ocultar os momentos mais indecorosos e não escandalizar o Sumo Pontífice. Resultado: o Papa não só não se opôs à modalidade como a achou sem muita graça. Pio XI teria recomendado aos jovens algo mais animado, a Furlana, uma dança camponesa do século XIX.


Com as bênçãos da Igreja, o Tango voltou para Buenos Aires com novo status. Contudo, seu retorno triunfal foi marcado por uma forte repaginação estética. Ele chegou muito mais elegante e sensual e com menos erotismo. Foi só nesse momento em que ele conquistou definitivamente os argentinos. Todas as classes sociais e gêneros passaram a ver o Tango com bons olhos, motivo de orgulho para a nação inteira. Buenos Aires não apenas abraçou o ritmo como se orgulhava de ter sido seu berço.    


Na Europa ainda sobrava uma pontinha de dúvida sobre a obscenidade e a imoralidade da modalidade argentina. Em fevereiro de 1924, Pio XI quis novamente analisar o Tango pessoalmente. Pelo visto, os cardeais franceses não tinham engolido a primeira avaliação papal. Outra vez, a apresentação fora organizada pela embaixada argentina em Roma e contemplou a versão mais leve do Tango. Ao final da exibição, o Papa não falou nada. Apesar do silêncio, ele aprovou o que viu. Não havia, portanto, mais dúvidas para o Vaticano que o Tango era uma dança íntegra e que respeitava os valores católicos. A partir daí, o ritmo pôde se expandir para o resto do mundo, onde triunfou galantemente sem qualquer questionamento.  


Mas será que você já se perguntou o porquê do nome Tango? Há muitas hipóteses para isso. Infelizmente, jamais chegaremos a uma conclusão certa. Para alguns estudiosos, a palavra seria derivada de “tambo”. Para outros, sua origem estaria no termo “tangó” que os espanhóis utilizavam para se referir ao espaço onde aprisionavam os escravos. Para outros tangólogos, Tango viria de Xangô, deus africano da guerra. Outros defendem que deriva de “tang”, que no dialeto africano significa aproximar-se, tocar. Há ainda os que acreditam que o nome teria influência na palavra latina “tangere”, que também significa tocar. Uma outra vertente acredita que a palavra teria se originado de “tambor”, o instrumento musical. O que se sabe exatamente é que o Tango apareceu pela primeira vez em 1839 com a grafia que conhecemos hoje. Foi dessa maneira que ele foi registrado no Diccionario Provincial de Voces Cubanas.


É importante dizer que o Tango não é apenas uma dança carismática. Ele também tem um forte componente musical. Ao longo dos anos, grandes compositores e intérpretes contribuíram para a constituição dessa música. A orquestra de Vicente Greco foi a responsável por gravar o primeiro Tango em 1898. “Don Juan” era o título da canção criada pelo compositor Ernesto Ponzio. Em 1926, dois grandes nomes do Tango surgiram: os poetas e compositores Homero Manzi e Enrique Santos Discépolo.


Na coluna Dança, Marcela Bonacorci explica as características e os detalhes do Tango, a charmosa dança argentina que emociona tantas pessoas

Manzi foi mais criativo em suas letras e trouxe novos temas e um certo refinamento às canções. A partir dele, outros compositores ousaram sair dos versos tradicionais. Nesse grupo temos Homero Expósito, Catulo Castillo e Horácio Ferrer. Esse último compôs diversas letras com Astor Piazzolla, talvez o compositor mais popular desse ritmo.


Discépolo, ou Discepolín, como era chamado por seus amigos, foi o responsável por criar o Tango Introspectivo. Sua característica principal era o pessimismo. Um dos seus versos mais conhecidos é: “o mundo foi e será uma porcaria”. Ele trouxe à temática musical não apenas aquilo que o rodeava, mas também as angústias íntimas que carregava.


Um dos nomes mais célebres do Tango é o cantor Carlos Gardel. Sua origem é questionada ainda hoje. E novamente temos uma peleja entre argentinos e uruguaios. Gardel poderia ter nascido em 1887 no Uruguai ou em 1890 na França. Ele chegou ainda pequeno em Buenos Aires com apenas 2 anos. Umas das vozes mais importantes do Tango, o francês (ou uruguaio) naturalizado argentino levou sua música para diversas regiões do mundo.


Carlos Gardel foi o percursor do Tango Canção, um estilo mais romântico. Ele começou a ter prestígio em 1914, quando se apresentava junto com o cantor e compositor uruguaio Jose Razzano no cabaré Armenonville, em Buenos Aires. Em 1917, a dupla interpretou pela primeira vez a música “Mi Noche Triste” com letra. Até então, ela só havia sido executada de forma instrumental. Ainda nesse ano, Gardel protagonizou seu primeiro filme, “Flor de Durazno” (1917). Em 1925, já naturalizado argentino e famoso na América Latina, Espanha e França, Carlos Gardel desfez a parceria com Razzano e passou a se apresentar sozinho. Começou aí sua fase de maior visibilidade. A partir de 1927, ele passou a se apresentar regularmente na Europa em shows muito concorridos.


Entre 1931 e 1932, Gardel foi contratado pela Paramount para estrelar quatro filmes que foram gravados na França. Em 1934 e 1935, foi a vez de ele gravar filmes, cantar e participar de programas importantes nos Estados Unidos. Em 24 de julho de 1935, no auge artístico, Carlos Gardel morreu em um acidente aéreo, na cidade de Medellin, Colômbia, enquanto fazia uma turnê pela América Latina.


Paradoxalmente, mesmo com a tristeza pela morte do músico e da lacuna deixada por ele, o Tango vivenciou a sua “Era de Ouro” daí em diante. Isso se deu ao longo da segunda metade da década de 1930 e durante os anos 1940. Grandes orquestras se apresentavam na Argentina para o delírio do público. O responsável pelo apogeu do Tango foi o músico Juan D’Arienzo. Extremamente popular entre os argentinos, ele fez com que a orquestra novamente fosse a protagonista dos espetáculos, deixando os cantores em segundo plano. Nesse momento, os shows de Tango voltaram a imperar nos grandes salões e eram aclamados pela população local. Nessa fase, diversos músicos navegaram entre o tradicionalismo e as novidades trazidas pelos mais jovens. Entre os nomes que mais se destacaram podemos citar Oswaldo Pugliese, Aníbal Troilo e, claro, Astor Piazzolla.


Confira a origem, a história, os estilos, as influências culturais e o charme do Tango, a modalidade de dança nascida na Argentina que é sinônimo de elegância, sensualidade e passionalidade

Piazzolla foi o grande compositor argentino do século XX e é ainda uma grande referência do Tango nesse início de século XXI. Ele foi responsável por trazer novidades ao gênero. Por exemplo, incorporou elementos do Jazz, da percussão, da guitarra elétrica, do violoncelo e das orquestras sinfônicas em suas músicas. Claro que ele não era uma unanimidade. Incomodadas com tantas inovações, as figuras mais tradicionais do Tango sempre achavam algo para criticá-lo. Uma das principais reclamações dos conservadores era a maneira como Astor Piazzolla tocava o bandonéon – de pé e apoiando o instrumento em um joelho. Para seus admiradores, tratava-se de uma ousadia inovadora. Para os críticos, que acreditavam que o correto era tocar sempre sentado, tratava-se de uma blasfêmia.


Nadia Boulanger era uma compositora francesa de música erudita que deu aula para diversos músicos, entre eles Piazzolla. Foi ela quem teria descoberto a aptidão do argentino para o Tango. Quando já estava cansada de ver Astor Piazzolla se esforçando sem glória no estudo da vertente erudita, Boulanger perguntou se ele não tinha nada diferente para apresentar. Podia ser algo típico de seu país. E foi aí que ele disse: “Sim, posso mostrar um Tango”. Ao tocar a canção “Triunfal”, a professora viu que aquele jovem até então pouco talentoso e com sérias dificuldades técnicas era na verdade um músico brilhante. Ao notar isso, ela o incentivou a seguir tocando Tango. Foi o que ele fez até o fim da vida.  


O poeta Horacio Ferrer foi o principal parceiro musical de Piazzolla. Quando o músico conheceu o trabalho do escritor nascido em Montevideo, teria dito: “Isso o que você faz na poesia, eu faço com as canções. Larga tudo e vem trabalhar comigo”. Foi o que Ferrer fez – renunciou ao posto na Universidade da República na capital uruguaia e foi trabalhar com música na Argentina.


Uma das grandes obras-primas da dupla surgiu depois que eles assistiram no cinema a “Esse Mundo é dos Loucos” (Le Roy de Coeur: 1966), filme do diretor Philippe de Broca. Inspirado no soldado da ficção que admirava os loucos que fugiram do manicômio, Horacio Ferrer criou um eu-lírico que, por causa da loucura, tinha uma visão positiva da vida. Nascia, assim, “Balada para un Loco” (não confundir com “Balada do Louco”, composição de Arnaldo Baptista e Rita Lee que veio seis anos depois e, que acredito, tenha se inspirado na versão portenha).


A canção foi apresentada pela dupla uruguaio-argentina no Festival Ibero-americano de Dança e Canção em 15 de novembro de 1969. Mesmo sendo muito ovacionado pelo público, “Balada para un Loco” não conseguiu o primeiro lugar. A tradição ainda imperava e a vencedora foi a nem um pouco ousada “Até o Último Trem”, de Julio Ahumada e Julio Camillioni.


Mesmo sem a conquista do prêmio principal, na semana seguinte ao festival, o disco de Piazzolla e Ferrer que continha essa música foi lançado com enorme êxito na Argentina. Em pouco tempo, cerca de 200 mil cópias foram adquiridas no país. Mais tarde, “Balada para un Loco” foi gravada também por Roberto Goyeneche e se tornou famosa em todo o mundo. A revolução proporcionada por Astor Piazzolla no Tango foi tamanha que uma nova fase deste ritmo só apareceria mais de uma década depois de sua morte. Estamos falando do Tango Techno.


Patrimônio cultural tanto da Argentina quanto do Uruguai, o Tango é a modalidade de dança nascida em Buenos Aires que se tornou popular no planeta inteiro

Em 1990, o Tango ganhou sua roupagem mais moderna e polêmica. O Tango Techno, também chamado de Tango Eletrônico, mistura as batidas tradicionais do gênero do Rio da Prata ao ritmo do Rock, do Techno, Rap e até do Heavy Metal. Ou seja, mescla o antigo com o novo. Se você acha que não conhece nenhuma canção desse subgênero, lembro que as novelas globais trouxeram em suas trilhas sonoras algumas músicas do Bajofondo, a banda uruguaio-argentina de Tango Eletrônico. Em “A Favorita” (2008), Pa’ Bailarfoi sua faixa de abertura e em “Avenida Brasil” (2012), “Infiltrado” se tornou a canção-tema da inesquecível Carminha, a vilã do folhetim. O Bajofondo se tornou conhecido no Brasil e em vários países de língua espanhola. É interessante comentar que um de seus integrantes é Gustavo Santaolalla, músico e compositor argentino vencedor de duas estatuetas do Oscar na categoria Melhor Trilha Sonora.


Há outros grupos musicais famosos que seguiram por essa vertente. Dá para citar o Gotan Project, banda parisiense que teve mais sucesso na Europa, e o Tanghetto, essa sim uma legítima banda argentina. O ápice do Tango Techno aconteceu entre 2001 e 2002. Depois disso, confesso que não vi mais nenhum grande sucesso nem um forte apelo do público. A sensação é que ele está adormecido nos últimos anos, com raras exceções.


Recentemente fui visitar Buenos Aires e, por tudo o que sempre ouvi do Tango, achei que a cidade respirasse mais desse ritmo do que constatei na prática. Pode ser que cheguei com uma expectativa elevada? Pode ser. Pode ser que fui no finalzinho de ano e a capital argentina estava mais devagar? Pode. Apesar da ligeira frustração pela pouca quantidade no dia a dia portenho, reconheço que vi muito Tango de boa qualidade.


Como as praças são lugares de encontro e são muito bem frequentadas pelos argentinos, só vi em uma delas aulas e exibições dessa dança – na famosa Barrancas de Belgrano. Ali ocorrem todas as tardes/começos de noites apresentações de Tango. Em San Telmo, uma área mais turística, encontrei um casal dançando na rua. Mas eles estavam bem ao lado da estátua da Mafalda. Como consequência, acabaram ignorados pela multidão de turistas que se acotovelava para tirar uma foto da garotinha contestadora criada por Quino.


Outro lugar que, claro, pude encontrar o Tango foi na Puente de La Mujer. Essa ponte é uma obra do arquiteto espanhol Santiago Calatrava que foi inaugurada em dezembro de 2001. Pelo seu desenho futurista, ela se destaca na paisagem de Puerto Madero. A inspiração do arquiteto teria sido um casal dançando Tango. Muitas pessoas passam por ali sem conseguir encontrar o tal casal na obra – um deles é o Ricardo, que fica indignado por não ver nada. Sem querer deixar ninguém inconformado nem suscitar polêmicas, confesso que achei, depois de analisar muito, os dançarinos. O segredo está em olhar a ponte de frente e de longe. Quando a água do rio se mexe, fica mais fácil vermos o casal “se movimentando”.


Na minha interpretação, os dançarinos de Tango estão na posição clássica dessa dança. Contudo, eles estão na vertical, como se estivessem dançando deitados. O cavalheiro está reto (no caso, ele é a própria ponte) e na postura ereta da dança. E a dama está dançando inclinada a ele, com o tronco encostado ao cavalheiro e as pernas livres para os movimentos (ela seria o monumento que se destaca da ponte). E agora, você também conseguiu identificar os dançarinos na Puente de La Mujer?


Puente de La Mujer é uma obra do arquiteto espanhol Santiago Calatrava em Puerto Madero, Buenos Aires, que foi inspirada em um casal dançando Tango

Espero ter te encorajado a se aventurar pelo maravilhoso mundo do Tango. Tenho certeza de que uma vez praticado essa dança e tendo a disciplina e a paciência para aprendê-la, você não irá parar mais. E se você for convidado(a) para uma milonga, saiba que esses são os eventos onde as pessoas se reúnem para dançar Tango. Então não dispense esse convite e vamos bailar um Tango!


Dança é a coluna de Marcela Bonacorci, dançarina, coreógrafa, professora e diretora artística da Dança & Expressão. Esta seção do Bonas Histórias apresenta mensalmente as novidades do universo dançante. Gostou deste conteúdo? Não se esqueça de deixar seu comentário aqui. Para acessar os demais posts sobre este tema, clique na coluna Dança. E aproveite também para nos acompanhar nas redes sociais – Facebook, Instagram, Twitter e LinkedIn.

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