2020 foi um ano diferente, estranho e até mesmo áspero. E uma de suas sequelas é que o Carnaval de 2021 foi adiado para julho. Mas essa festa é tão tradicional que, em nossos corações, ela está vibrando ao longo de fevereiro, sim! Sabendo disso, vamos falar neste mês, na coluna Dança, de uma modalidade que tem a cara do Carnaval brasileiro, o Frevo. A ideia é discutirmos, no post de hoje do Bonas Histórias, o seu surgimento e suas principais características. Assim, depois de comentarmos a História da Dança e de detalharmos as particularidades do Ballet Clássico, da Dança Moderna e Contemporânea e da Dança de Salão, vamos mergulhar em um ritmo genuinamente nacional. Falar do Frevo é falar de uma arte propriamente brasileira, que se estende para as expressões musicais, coreográficas e poéticas.
O Frevo possui dois títulos que o reconhecem como patrimônio cultural: Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, oferecido pelo Iphan em 2007; e Patrimônio Imaterial da Humanidade, concedido pela Unesco, em 2012. Essa modalidade é uma das mais ricas expressões da inventividade brasileira. Ela mistura os gêneros musicais e dançantes com a Capoeira e o artesanato. Suas apresentações se dão principalmente durante o Carnaval de Pernambuco. Foi em terras pernambucanas, inclusive, que, nas festas carnavalescas do final do século XIX, o Frevo surgiu. E entender sua trajetória é acompanhar a história das classes populares urbanas de Olinda e de Recife.
No período de nascimento do Frevo, Pernambuco, especialmente Recife, entrava em uma fase de intensa modernização. A industrialização e a urbanização mudaram a cara da capital do Estado. A cidade passava por grandes transformações sociais, políticas e econômicas, consequências da abolição da escravatura, em 1888, e da Proclamação da República, em 1889. Esses fatores socioculturais desencadearam na criação do Frevo. A invenção desta dança está intimamente relacionada à vida e à história dos recifenses – sua organização social, seus hábitos de promover festas populares e seu cotidiano de engajamento político.
O surgimento da classe de trabalhadores urbanos em Pernambuco, operários de fábrica e da construção civil principalmente, influenciou tanto a formação do Frevo que os nomes de seus passos são, até hoje, associados ao universo dessas profissões. Alicate, serrote, tesoura, ferrolho, martelo e parafuso são alguns movimentos típicos desta dança. A classe trabalhadora que estava ligada às origens do Frevo era constituída, em sua maioria, por pessoas negras e mestiças. Elas misturaram o que já traziam da cultura tradicional africana com o que aprendiam e viam nos novos tempos de urbanização no Brasil. Buscavam, assim, uma nova forma de se organizar política e economicamente, além de poderem se expressar culturalmente de um jeito mais genuíno. O resultado disso tudo tem um nome: Frevo!
Essa expressão artística é composta pelo Passo (a dança Frevo é vibrante, rica e rápida) e pela musicalidade (derivada das orquestras de metais e de pau-e-corda). A dança e a música andam juntas, se misturam e se complementam. A poesia do Frevo registra os lugares, as épocas, as falas dos seus grupos sociais e é marcada por uma forte crítica social. Seu discurso mostra as inquietudes e os questionamentos do povo mais simples de Pernambuco. Como já falei, o Frevo vai além da dança, da música e da literatura. Ele também tem um pé no artesanato. Tão logo falamos dessa arte, já vem em nossa mente os estandartes, os flabelos e os bonecos gigantes que desfilam no Carnaval de Pernambuco.
Os estandartes são as bandeiras em tecido. Eles são levados na frente dos blocos de Frevo. Os flabelos são os abre-alas, objetos decorativos usados na abertura ou na entrada dos clubes carnavalescos. Eles são feitos de material resistente e no formato de leque. Os bonecos gigantes chegaram em Pernambuco, na cidade de Belém de São Francisco, trazidos pela tradição dos bonecos da Europa. No Velho Continente, eles eram muito usados nas festas religiosas. Na pequena cidade pernambucana, o primeiro boneco gigante foi às ruas no Carnaval de 1919 com o personagem Zé Pereira. Apenas em 1929, ele ganhou sua companheira, a Vitalina. E em 1932, os bonecos gigantes chegaram, enfim, às ladeiras de Olinda.
O primeiro personagem olindense foi o Homem da Meia-noite, criado pelos artistas plásticos Anacleto e Bernardino da Silva. Depois, em 1937, surgiu a Mulher do Meio-dia e, em 1974, apareceu o Menino da Tarde, ambos do artista plástico Silvio Botelho. Botelho popularizou as apresentações dos bonecos ao criar o Encontro dos Bonecos Gigantes de Olinda, um dos eventos mais famosos do Carnaval nordestino. Nesses encontros, que acontecem às terças-feiras de Carnaval, diversos artistas apresentam seus bonecos em um grande desfile pelas ruas históricas de Olinda. E quem visita Recife pode ver os Bonecos Gigantes pois eles ficam expostos, no restante do ano, na Embaixada de Pernambuco – Bonecos Gigantes de Olinda, localizada na mítica Rua do Bom Jesus, no Recife Antigo.
Quando o Frevo começa a tocar não dá para confundir. Sua música é marcante, frenética, rápida e vigorosa. Sua formação se deu pela junção de alguns ritmos como a Marcha, o Dobrado, o Maxixe, a Quadrilha, a Polca, as peças de repertório erudito, entre outros. Nos primórdios, ela era executada pelas bandas marciais e fanfarras. Na década de 1930, o Frevo passou a ser dividido em três ritmos: Frevo de Rua, Frevo de Bloco e Frevo Canção.
O Frevo de Rua foi o primeiro estilo que surgiu. Esse ritmo é totalmente instrumental e acelerado, tocado pelas orquestras nas ladeiras e ruas. Ele é feito exclusivamente para dançar, possui notas agudas e tem predominância de pistões, saxofones, tubas, clarinetes, taróis, surdos, bombardinos e trombones.
O Frevo de Bloco, com origem nas serenatas, tem sua instrumentação típica chamada de conjunto de pau-e-corda. Ele é composto de banjos, violões, bandolins, flautas, cavaquinhos e, mais recentemente, o clarinete. Esse ritmo é mais lento do que o anterior e suas letras têm um tom saudosista.
Já o Frevo Canção é o mais lento de todos. Possui uma instrumentação parecida com o Frevo de Rua. Ele se assemelha um pouco às marchinhas cariocas, por isso também é conhecido como Marcha-canção. Suas músicas têm uma introdução e uma parte cantada. Elas terminam ou começam quase sempre com um refrão e suas letras tratam costumeiramente do contexto político-social contemporâneo.
E quando o Frevo começa a tocar, não dá para ficar parado. A dança Frevo também é conhecida como Passo e teve grande influência da Capoeira. Essa modalidade é frenética e exige dos dançarinos a habilidade da improvisação. O Passo é caracterizado por movimentos rápidos com os pés e com o corpo, como se o chão estivesse “fervendo”. Embora seja uma dança de rua, que arrasta milhões de foliões, ele é complexo e exige muito preparo físico e destreza. O Frevo é constituído por saltos, rodopios, passos miúdos e rápidos e movimentos de descida que exigem muito das articulações dos joelhos. Mesmo assim, ele cumpre seu papel de espalhar alegria e divertimento.
No começo, o Frevo era apenas uma folia de rua singela. Ele contagiava com sua música frenética e atraía muitas pessoas. À medida que o tempo foi passando e o evento foi se tornando mais sério, o número de foliões foi aumentando e muitas brigas e discussões passaram a acontecer, principalmente pela rivalidade das agremiações. Visando conter as arruaças, capoeiristas foram contratados para acompanhar a festa. Eles iam à frente dos blocos, afastando os intrusos com seus movimentos rápidos e apartando as confusões.
Os capoeiristas usavam, para se defender ou para atacar, guarda-chuvas. E por que eles começaram a usar esse acessório como arma? Os capoeiristas sofriam muita repressão por parte do poder público da época, que acabava confiscando suas bengalas e seus cassetetes, os instrumentos preferenciais nas brigas do dia a dia. Ao adotarem o guarda-chuva ou a sombrinha, eles usavam como desculpa a necessidade de se proteger da chuva e do sol. A partir daí, não tiveram mais seus pertences apreendidos pela polícia e tinham algo para usar na hora das brigas.
Em função das ações dos capoeiristas, as brigas nos desfiles foram diminuindo até rarear. Mesmo assim, os capoeiristas foram mantidos na festança, mesmo que só para se divertir. E seus guarda-chuvas também continuaram. Esses utensílios deram origem às famosas sombrinhas do Frevo, uma das marcas mais fortes dessa dança. A Capoeira influenciou o Frevo por emprestar muitas de suas características à nova modalidade. O Frevo tem em seus fundamentos a destreza, a força, a ginga, a resistência, os movimentos de flexões e a formação de roda, que confere destaque ao dançarino que fica no centro. Por isso, costumamos dizer que a Capoeira é uma arte irmã do Frevo.
O Frevo mantém muitas de suas tradições, mas foi passando por transformações nos últimos anos, que continuam acontecendo até hoje. Ele mantém a pegada de manifestação cultural urbana, com desfiles de agremiações carnavalescas, passistas dançando na rua, nas ladeiras, nas pontes e nos palcos, músicas contagiantes e símbolos visuais tão característicos.
Inicialmente, os passistas desfilavam com as roupas comuns dos trabalhadores urbanos, que eram trajes com mangas longas e de cores sóbrias. Hoje, o figurino, já tradicional do Carnaval, é composto por roupas mais leves e coloridas, lembrando as cores da bandeira de Pernambuco. O próprio guarda-chuva, originalmente grande e preto quando tinha a função de defesa e ataque nas brigas, foi ganhando cor e passou a ser menor, quase uma sombrinha de criança. Ele também foi incorporado aos movimentos da dança.
Um dos nomes mais importantes do Frevo é Egídio Bezerra. Conhecido como Rei do Passo entre as décadas de 1950 e 1970, ele incorporou a sombrinha à dança do Frevo. Outro nome de destaque deste ritmo, que também não largava o instrumento colorido na hora de fazer seus movimentos dançantes, foi Mestre Nascimento do Passo. Há muita gente que o considera o maior nome do Frevo. Mestre Nascimento do Passo foi o responsável por criar muitas das coreografias e sequências do Frevo atual. Ao catalogar mais de 80 passos, ao difundir essa dança em aulas e ao promover o Frevo como manifestação cultural, ele contribuiu para a consolidação dessa arte no cenário nacional.
O termo Frevo surgiu da palavra ferver, que dá a ideia de agitação e de rebuliço. Na pronúncia popular, dita rapidamente, ferver virou “frever”. E daí para Frevo foi um pulinho.
Não dá para falar dessa arte sem citar os famosos bloquinhos que ajudaram e ajudam a perpetuar sua cultura e afirmar o Frevo como patrimônio cultural brasileiro. Os dois mais importantes bloquinhos são o Galo da Madrugada, de Recife, e o Clube de Vassourinhas, de Olinda.
O Galo da Madrugada surgiu em 1978 com a intenção de resgatar o Frevo de rua. No primeiro ano, ele saiu à rua com 75 foliões e 22 músicos. A partir de então, todos os anos ele foi ganhando mais e mais passistas. Em 1994, O Galo da Madrugada entrou para o Guiness Book como o maior bloco de Carnaval do planeta ao levar à rua 1,5 milhão de foliões. Atualmente, esse número já ultrapassou a marca dos 2 milhões de foliões. Os desfiles do Galo da Madrugada acontecem todos os sábados de Carnaval. Seu hino, composto por José Mário Chaves, já foi gravado por Alceu Valença e é sempre cantado com muita alegria no Carnaval pernambucano.
O Clube de Vassourinha desfila há mais de cem anos pelas ruas de Olinda. Uma de suas músicas, a “Vassourinha’, passou a ser uma das músicas-símbolos do Frevo. Essa canção, composta por Matias da Rocha e Joana Batista, em 1907, se tornou tão popular que foi adaptada para um jingle político quando Jânio Quadros se candidatou à Presidência do Brasil (sim, é aquela do “Varre, varre, Vassourinha”!). Nos últimos anos, o Clube vem sofrendo com a má administração e a falta de recursos. No ano retrasado, ele quase não conseguiu sair às ruas. Para respeitar a tradição e manter seu nome vivo, o Clube de Vassourinha desfilou em uma categoria abaixo da sua.
O carnaval de Pernambuco é realizado pelo povo e por milhares de famílias que saem às ruas para festejar. Ele não pode ser considerado o maior Carnaval do país, pois não possuí escolas de samba nem trios elétricos, mas é sem dúvida o mais popular do Brasil. O Frevo não para de crescer. Além dos reconhecimentos de patrimônio cultural que já falamos, ele ganhou, em 2014, um museu dedicado à sua valorização. Trata-se do Paço do Frevo. Ele está localizado no Recife Antigo e é responsável por planejar, coordenar e promover tudo o que se refere à esta dança.
Alguns fatos demonstram que não só o Frevo continua em expansão no Brasil como também é cada vez mais reconhecido mundialmente. Em 2014, a SpokFrevo Orquestra fez uma apresentação no Lincoln Center, uma das maiores casas de espetáculos de Jazz dos Estados Unidos. Seu diretor musical e trompetista, Wynton Marsalis, esteve no Paço do Frevo no ano seguinte e falou da importância desse gênero. Em 2016, o Paço do Frevo recebeu pesquisadores da Itália, de Portugal e do Japão que estão estudando à fundo essa dança e essa música. Em 2017, aconteceu o 1º Concurso Europeu de Passistas de Frevo. O evento foi realizado pela Escola Brasil da Suíça e pelo Grupo Alto Astral de Lisboa.
Fico na torcida para que possamos ter a inteligência e o respeito para valorizar cada vez mais o Frevo como uma expressão artística brasileira rica e genuína. E para terminar este post da coluna Dança, deixo aqui um pedacinho da música “Bom Demais” de Alceu Valença, considerado o embaixador do Frevo no Rio de Janeiro. Confira:
“Eu tenho mais que tá nessa/Fazendo mesura na ponta do pé/Quando o Frevo começa/Ninguém me segura/Vem ver como é...”.
Dança é a coluna de Marcela Bonacorci, dançarina, coreógrafa, professora e diretora artística da Dança & Expressão. Esta seção do Bonas Histórias apresenta mensalmente as novidades do universo dançante. Gostou deste conteúdo? Não se esqueça de deixar seu comentário aqui. Para acessar os demais posts sobre este tema, clique na coluna Dança. E aproveite também para nos acompanhar nas redes sociais – Facebook, Instagram, Twitter e LinkedIn.