No terceiro relato das experiências de um brasileiro vivendo em Buenos Aires, conhecemos uma cidade em que os cachorros possuem elevada qualidade de vida e estão plenamente integrados à rotina urbana.
Se você é, como eu, BA-BA-CA pelos pets ao ponto de se curvar a todas as exigências (ou seriam ordens?!) deles, esta nova crônica de “Tempos Portenhos”, a coletânea de narrativas não ficcionais do Bonas Histórias da temporada 2024- 2025, é para você. Estamos juntos na escravidão aos nossos filhotes!
Em quase um ano vivendo em Buenos Aires (BsAs), um dos aspectos que mais chamou minha atenção foi como os cachorros têm qualidade de vida por essas paradas. Chega a ser absurda a comparação com a realidade dos animais de estimação da minha terra natal, São Paulo. Se os brasileiros adoram seus amiguinhos de quatro patas, os argentinos são totalmente devotos às necessidades e aos desejos de seus filhinhos não biológicos. Impossível não se apaixonar por essa característica local, ainda mais se você for um BA-BA-CÃO de marca maior.
Não por acaso, temos aqui o assunto de hoje da coluna Contos & Crônicas. O “Episódio 3: Dogland – Cães Felizes” trata do grau de satisfação canino do lugar em que escolhi morar pelos próximos anos. Depois de abordar a sensação de segurança da capital argentina (“Episódio 1 - Distopia Paulistana ou Carioca”) e o prazer dos portenhos pelos ambientes externos (“Episódio 2 - Vida ao Ar Livre”), vou falar agora em “Tempos Portenhos” de uma metrópole em que os bichinhos estão perfeitamente integrados à rotina urbana. É lindo de se ver. Um dos motivos que fizeram com que me apaixonasse por minha nova cidade é justamente a atenção e o cuidado que ela oferece aos pets, às crianças e aos idosos, combinação rara no Brasilzão-de-Deus-me-Livre-e-Salve-se-Quem-Puder.
Na minha humilde visão (míope de quase 10 graus), não há lugar no mundo em que las mascotas são mais felizes do que CABA – Ciudad Autónoma de Buenos Aires. Até pode existir grandes centros urbanos do planetinha cada vez mais cinza e plastificado que empatem com o Índice de Satisfação Canino (ISC) da capital da Argentina – dizem que em breve a ONU trocará o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) pelo ISC como critério de avaliação das nações. Contudo, acho impossível que tenham indicadores superiores aos de BsAs. Juro que não consigo imaginar os cachorros japoneses, noruegueses, canadenses, suíços (beijo, Belinha!) e neozelandeses com um dia a dia mais pleno do que os dogs portenhos. Numa possível Copa do Mundo de felicidade dos animais de estimação, a Argentina dá show nos gramados.
Antes que alguém reclame do meu exagero (exagerado, eu?!), sinto a necessidade de fazer um desvio nesse post de “Tempos Portenhos”. Deixaremos momentaneamente o assunto principal dessa publicação e rumemos pelo desconhecido. Não se perca, por favor, em minhas divagações com ar de desabafo, querido(a) leitor(a). Trata-se de uma tradição do Bonas Histórias. Minhas alterações de rota são tão sutis quanto aquelas realizadas pelas empreiteiras brasileiras durante as construções das rodovias públicas (por curiosidade, veja o traçado da nova Tamoios...). Prometo que voltaremos um dia quem sabe talvez ao debate exclusivo dos cachorrinhos. Se isso acontecer, você entenderá aonde quero chegar (algo que às vezes até eu mesmo gostaria de saber).
São curiosas as diferenças culturais de Brasil e Argentina (desvio feito – seja o que Deus quiser!). Estamos tão pertos e, ao mesmo tempo, somos tão distintos como povos e nações. A meu ver, as duas principais marcas dos argentinos é que eles (1) adoram se enaltecer e vangloriar aspectos da sua terra e (2) vivem reclamando da vida. Essa dobradinha fica mais evidente quando analisamos os hábitos e as manias dos portenhos (para quem não sabe, portenho é o morador da cidade de Buenos Aires).
Confesso que é até engraçada a mania de grandeza dos hermanos. É um tal de temos a avenida mais larga do mundo, o maior consumo de pizza do planeta, os melhores jogadores da história, o rio mais largo de-não-sei-o-que, as mais saborosas carnes, alfajores e empanadas, o mais alto obelisco da Av. 9 de Julio, a capital com maior número de estádios de futebol, uma das maiores indústrias de cinema da Terra, a maior quantidade de psicólogos etc. Eles falam essas coisas com enorme orgulho e sem um pingo de dúvida, por mais absurda que sejam as estatísticas e os recordes anunciados de geração por geração.
Paradoxalmente, ouvimos uma enxurrada de lamentos cotidianos da Argentina (e de CABA). É como se estivéssemos no pior lugar do mundo para se viver. Para a maioria dos argentinos (e portenhos), estar feliz e satisfeito é uma afronta gravíssima de caráter e de comportamento. Demorei para entender essa particularidade local. No dia a dia, o pessoal me perguntava se estava tudo bem e eu inocentemente respondia que estava tudo certo. Para piorar, ainda sorria. Afinal, é isso o que estamos acostumados a fazer no Brasil, né? Juro que não entendia os olhares raivosos disparados em minha direção. Depois que mudei a estratégia e comecei a reclamar da rotina e da minha vida em tom extremamente categórico, fiz várias amizades. De repente, virei alguém simpático aos olhos dos moradores de Buenos Aires. Até namoradas arranjei com essa tática.
De qualquer maneira, para mim não faz sentido essa combinação de características culturais. Se tudo na Argentina é melhor e maior, porque os resmungos frequentes, hein?! Se pararmos para refletir, é exatamente o contrário da cultura brasileira. Meus conterrâneos têm o complexo de vira-lata tatuado na alma, como nos ensinou tão bem o velho e saudoso Nelsão. Ao mesmo tempo que (1) se acham os piores do mundo em tudo, os brasileiros (2) amam de verdade seu país, chegando até a achar que não existe lugar melhor no planeta para se viver. Mas pera aí: se tudo é ruim e pior no Brasil, como ele pode ser o melhor país para se morar?! Note que também não faz o menor sentido.
Como agora sou, segundo os documentos e a burocracia internacional, meio argentino (Maradona jogou muito mais do que Pelé, e Messi superou os dois de olhos fechados) e meio brasileiro (que saudades de comer pão com requeijão tomando um bom cafezinho mineiro), tive que unir aspectos das duas culturas. Assim, virei um sujeito que (1) adora se enaltecer e vangloriar aspectos da sua terra (aqui sou argentino, tá?) e (2) ama sua localidade como se não houvesse melhor (nesse aspecto sou brasileiríssimo). Se essa combinação parece ridícula (sou um Sancho Pança contemporâneo e sul-americano), como justificativa digo que ela faz mais sentido do ponto de vista lógico do que as incongruências existencialistas de argentinos e brasileiros. Não queria jogar na sua cara, mas você pediu...
Mas por que estou falando sobre isso se o assunto de hoje em “Tempos Portenhos” é a alegria da cachorrada?! Para explicar (desvio concluído – voltemos ao tema principal desta publicação) o porquê acho que Buenos Aires é a cidade com os cães mais felizes do mundo. Juro que acredito nisso, mesmo não tendo visitado quase nenhuma capital do planeta. Como pode um absurdo desse tipo, Ricardo?! Respondo sem uma ponta de vergonha na cara: sou argentino-brasileiro, senhoras e senhores. Não preciso de muito embasamento para tirar conclusões apressadas, exageradas, passionais e equivocadas. Fez sentido agora o meu longo desvio no texto ou não?!
Antes que alguém me chame de louco (saiba que concordo com essa classificação, mas não pelo que foi mostrado até aqui) ou, o que é pior, interrompa a leitura no meio (calma, estamos só começando nossa longa conversa sobre Mi Buenos Aires Querido), sinto-me obrigado a provar minhas crendices estapafúrdias. Portanto, prepare-se, desavisado(a) e incauto(a) leitor(a) do Bonas Histórias. A seguir, lanço mão de cinco cenas que são comuns em CABA e que podem elucidar um pouco as razões que fazem deste o lugar mais perfeito do mundo para os pets. Se ainda duvida de mim, leia com atenção o quinteto de argumentos que farão seu coração peludo se derreter pelos bichinhos mais fofos da Terra.
1) As praças e os parques portenhos são a Disneylândia dos cachorrinhos
Você quer ver um cão feliz? Então vá a uma praça ou a um parque de Buenos Aires. É nesse lugar que você melhor visualiza a minha tese (e começa a entender que minhas palavras não são tão absurdas quanto pareceram inicialmente). Sei que já falei bastante dos espaços verdes de BsAs nas crônicas de “Episódio 1 - Distopia Paulistana ou Carioca” e “Episódio 2 - Vida ao Ar Livre”. Entretanto, ainda não abordei esse assunto pela perspectiva dos pets.
As praças e os parques da capital da Argentina são o suprassumo da diversão canina. Por isso a comparação com a Disneylândia. É muito legal dar uma volta por esses lugares e constatar a diversão da bicharada. Há desde cachorros jogando bolinha com os donos (saudades, Pescuitto!), brincando de pega-pega com os amiguinhos de quatro patas, dando uma voltinha descompromissada na coleira ou sem coleira, correndo felizes sozinhos, coçando as costas na grama com a barriga para cima, provando um petisco, carregando galhos de árvore, interagindo com a criançada ou cheirando tudo e todos. Isso acontece, acredite se quiser, de manhã, de tarde, de noite e até de madrugada. E de segunda a segunda. Não existe hora nem data para a diversão dos cães.
Muitas vezes, tenho a impressão de que as áreas verdes foram feitas para eles e não para a gente. Até existem, dependendo do bairro, os famosos parcões, espaços exclusivos para os pets (que são cada vez mais comuns no Brasil). Porém, na maior parte das praças e dos parques portenhos, eles são desnecessários. Porque os cachorros estão em todos os ambientes. Não faz sentido segregá-los em um canto exclusivo. Para não dizer que os cachorros podem entrar em todas as áreas de lazer, existe uma em que são proibidos de ingressar: os playgrounds infantis que possuem areia. Até aí acho justo. Muito justo. Justíssimo.
Lembro que em um dos primeiros passeios pelo Parque Saavedra, quando ainda vivia em Núñez, me deparei com uma mulher caminhando fortuitamente com seu Basset. Ao chegar no meio do parque, ela tirou a coleira e o deixou totalmente solto. O cãozinho ficou radiante com a liberdade. Ele corria alucinado pelo gramado. Para mim, não havia sinal mais evidente de alegria do que a disparada do bichano pela relva esverdeada. Quando cogitei que não poderia ser surpreendido, tropecei nos meus pensamentos.
Depois de cansar de tanto correr, o pet parou em uma poça de lama. Tinha chovido muito na noite anterior. Para desespero da dona (e diversão dos demais frequentadores do parque), o Basset mergulhou na lama como se não houvesse amanhã. Ele rolava e rolava no barro, se sujando da ponta do focinho à extremidade do rabo. Saiu irreconhecível e satisfeito com a safadeza. Só lembro de ter ouvido a dona falar: “Você tomou banho ontem! O que vou falar para a moça do petshop quando te levar outra vez lá?!”.
Quer ver cachorros felizes? Vá em qualquer praça ou parque de Buenos Aires.
2) Passeios e mais passeios
Qual é a graça de ter cachorrinho e não o levar para passear, hein? Sempre acreditei que a parte mais legal dessa interação é justamente o convívio externo. Pratiquei muitas andanças pelo meu bairro em São Paulo, o Parque São Domingos, com o bom e intrépido Pescuittinho. Geralmente saíamos duas vezes ao dia (hora do almoço e fim de tarde) para longas excursões. Não foram poucas as vezes que ficamos mais de três horas fora de casa. Ele sempre adorou. Não sabia, mas esse é um hábito portenho. Os moradores de Buenos Aires são apaixonados por levar os pets para a rua.
Como sei disso? Em primeiro lugar, observando a cidade em que vivo. Em qualquer bairro que você esteja, há uma multidão perambulando com os pequenos. Em Saavedra, bairro da Zona Norte de BsAs onde moro atualmente, a experiência é até mais interessante porque muitos dogs caminham sem coleira. Não importa se a voltinha é perto de avenidas movimentadas (Cabildo, del Libertador, Roberto Goyeneche, Dr. Ricardo Baldín) ou nas proximidades de autoestradas com trânsito pesado (General Paz, Panamericana). Os pets sabem como se comportar e andam ao lado dos donos tranquilamente. Como um paulistano amedrontado com o caos urbano, admito que fico com o coração na mão, principalmente quando os assisto atravessar a rua sem coleira.
Todas as pessoas que conheço e conheci em Buenos Aires têm cachorros ou gatos. No caso dos donos de cães, eles possuem o hábito de passear diariamente com os bichinhos, faça sol ou chuva, frio ou calor. O meu vizinho de andar (abraço, Martín) tem o Pacho, um labrador divertido, carinhoso e muito estabanado. A dupla, conforme descobri, passeia pelo boulevard da Garcia del Río e pelo Parque Saavedra cinco vezes ao dia. Pela alegria do Pacho, é definitivamente o melhor momento de sua rotina. Ter cachorro é abraçar a cidade e se lançar em caminhadas constantes pelo bairro.
Para quem possa achar essa relação um tanto óbvia, informo que não é assim que ocorre na cidade de São Paulo. Por lá, muita gente não tem a preocupação de levar seus cachorros para uma voltinha pelo quarteirão. Para ser franco com os leitores do Bonas Histórias, vários paulistanos raramente colocam os pés fora do lar. Quem me alertou para esse comportamento dos moradores da capital paulista foi minha prima Daniella (fala-se “Daniecha”), que atualmente mora na Suíça. Entre os hábitos de seus conterrâneos que mais a incomodam quando visita a família (usar sacola plástica para qualquer coisa e assistir à televisão fora de casa estão nessa lista), deixar o animal de estimação fechado em casa está no topo das atrocidades.
Por mais difícil que seja admitir (brincadeirinha, Dani), minha prima tem razão. Para a saúde física e mental dos bichanos, eles precisam ganhar rotineiramente as ruas e caminhar bastante. Ainda mais se vivem em apartamentos pequenos, uma realidade cada vez mais comum nas grandes metrópoles. Os moradores de Buenos Aires sabem disso há muito tempo e colocaram em suas rotinas essas voltas com os familiares de quatro patas. Para os portenhos, é hábito cultural o passeio com os pets pelo bairro. Ainda bem!
3) Serviços sofisticados para os pets
Notamos a questão cultural e a paixão dos argentinos pelos cachorros pela quantidade e qualidade dos serviços oferecidos nesta área. Talvez o mais chamativo seja o do passeador de cães, figura que compõe a paisagem urbana de Buenos Aires assim como os charmosos cafés, os belos parques e os prédios de arquitetura europeia. A voltinha dos dogs é tão importante para os portenhos que, quando a rotina dinâmica impossibilita tal atividade, eles contratam alguém para fazê-la. Aí surgem rapazes e moças que têm como profissão exatamente o perambular pelas ruas com os amiguinhos de quatro patas. É muito bonito e engraçado vê-los com vários cães simultaneamente. Minha diversão é justamente contar. O máximo que presenciei foi um passeador com quinze dogs ao mesmo tempo – isso ocorreu em uma sexta-feira na proximidade do Parque General Paz. Os bichos vão amarrados na cintura do profissional, que usa um cinto especial (sonho de consumo da minha irmã).
Confesso que acho essa atividade perfeita! Se não tivesse meus afazeres literários, juro que seria um passeador de cachorros em BsAs. Essa profissão une dois elementos pelos quais sou apaixonado: as caminhadas pela cidade e a interação com os pets. E a pessoa ainda ganha dinheiro para fazer isso! Se pudesse, passava o dia inteiro nas ruas com a cachorrada. Não por acaso, tenho a alma de vira-lata – em uma das melhores definições que ouvi sobre mim, apesar de não ter gostado dela na época.
A atividade de passeador é apenas a ponta do iceberg. Existe uma infinidade de outras que os argentinos não reparam no nível de sofisticação (afinal, já estão acostumados com elas há décadas) e que os turistas não reparam no grau de complexidade (por não interagirem com os locais de maneira mais intensa). Tenho uma amiga em Saavedra que tem um gatinho muito fofo (beijinho, Leo!). Como seus pais moram no interior, ela vai frequentemente visitá-los aos finais de semana. Certa vez, fiquei assustado com a possibilidade do meu amiguinho ficar alguns dias sozinho em casa (era feriado prolongado) e a questionei como faria com o pequeno. Com a maior naturalidade do mundo, minha amiga respondeu: “Você acha mesmo que teria coragem de deixar o Leo sozinho?! Claro que não. Sempre que viajo, ele fica com “la niñera”. Fiquei pasmo. O bichano tem uma babá.
Convenhamos que não é normal, mesmo em metrópoles internacionais, encontrarmos passeadores de cães e babás de gatos. São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, não possuem esses serviços em muitos bairros centrais ou, quando têm, são atividades recentes. Em Buenos Aires, o mercado dos animais de estimação está em franca expansão, mesmo com a interminável retração econômica, e surpreende pela variedade de serviços. Em minhas andanças pela cidade, já encontrei lojas exclusivamente para gatos, estabelecimentos que só vendiam roupas e brinquedos caninos e negócios focados em aves. Isso sem falar dos petshops, veterinários, hotéis, spas e peluquerias de cachorros que se proliferam pela capital da Argentina.
Ter cachorro é coisa séria em CABA. Os empreendedores portenhos não descansam enquanto não inventam novas modalidades de produtos e serviços para atendê-los.
4) Cidade pet friendly
Buenos Aires é uma cidade pet friendly. Notamos essa característica rapidamente. Muitos negócios permitem a visita dos familiares de quatro patas, inclusive estabelecimentos alimentícios e de refeições. É claro que as mesas na rua ajudam os frequentadores de restaurantes, bares e cafeterias a levar os bichos. Um programa típico do final de semana dos portenhos é ir ao parque com a família inteira e depois dar uma passadinha para comer algo em algum estabelecimento do bairro. É claro que os cães vão junto e ficam tranquilamente entre as mesas na calçada.
Se isso é comum atualmente em cidades do Brasil, saiba que por aqui trata-se de algo que existe há décadas. Quando vivi em CABA entre 2004 e 2005, a integração dos bichanos à rotina urbana já era corriqueira. Lembro de ter me impressionado com a cena de uma mulher com um seu poodle. Eles estavam dentro de um banco no Microcentro. Na época eu fiquei pasmo. Pode entrar cachorro nas agências bancárias argentinas? E por que alguém levaria o pet para lá? Hoje em dia não faço mais esses questionamentos nem me assusto com tais episódios. A surpresa seria não me deparar com os animaizinhos no cotidiano da metrópole.
Por falar em cenas do dia a dia, uma imagem que sempre me chama a atenção caminhando por BsAs é me deparar com os cães esperando os donos fora de alguns estabelecimentos que não permitem suas entradas (sim, é raro, mas ainda assim têm). Geralmente isso ocorrem nas portas de padarias, açougues e supermercados, os famosos chinos. Os cachorros ficam presos nos postes ou aguardam sentados à volta dos humanos. É tão bonitinho de se ver que às vezes não resisto e brinco com eles. Alguns choram durante a espera e outros esnobam o carinho dos estranhos, permanecendo com o olhar fixo para dentro da porta.
Quem notou essa particularidade local foi minha irmã. Ela veio me visitar em dezembro do ano passado e se indignava toda vez que via um cão sozinho na calçada esperando o dono. Como uma paulistana desconfiada de tudo e de todos e apavorada com a violência urbana, hermanita sempre falava: “Nunca que deixaria meu cachorrinho sozinho na rua! Essa gente daqui não deve ter coração para fazer isso”.
A questão não é essa. Para os portenhos é normal tal comportamento. Com índices menores de criminalidade, quem iria fazer mal a um bichinho de estimação na rua?! Chega a ser absurdo para eles se cogitarmos o roubo ou o sequestro dos animais de estimação. Às vezes, só entendo o nível de falência da sociedade brasileira (e paulistana) quando noto as paranoias que adquirimos no dia a dia em nossa terra.
De qualquer maneira, posso garantir que a capital argentina é pet friendly há muito tempo. Se essa moda chegou recentemente ao Brasil e em outras capitais planetárias, por aqui é traço cultural. Porque o argentino é apaixonado por seus bichinhos de estimação. Por falar nisso, vamos ao quinto e último aspecto que gostaria de comentar com vocês neste post de “Tempos Portenhos”.
5) A paixão pelos bichanos é uma mania na Argentina
O argentino é apaixonado pelos cachorros. Isso é perceptível em alguns detalhes que podem passar desapercebidos pelos turistas, mas são nítidos para os moradores locais. Por exemplo, é raro vermos cachorros de rua em Buenos Aires. Sim, querido(a) leitor(a) da coluna Contos & Crônicas, não é comum encontrar cães morando na sarjeta na capital argentina. Por quê? Porque são rapidamente adotados por almas caridosas. Até pode haver crianças e velhos ao relento, mas animais nunca! Desafio você a perambular por CABA e achar um vira-lata solitário ou uma matilha em estado quase selvagem, como é comum em muitas cidades brasileiras.
Essa é uma contradição interessantíssima. Ao mesmo tempo em que temos ruas recheadas de cachorros (desafio qualquer um a dar uma voltinha pelo quarteirão e não se deparar com pelo menos uma família passeando com seu pet), todos os bichos têm donos e lares. E estão na rua momentaneamente, só para passeio. Depois retornam para o teto que os abriga.
A paixão dos portenhos pelos animais ganha tons surpreendentes. A corretora que me alugou o apê em que vivo em Saavedra (beijo, Nora) me contou que certa vez achou filhotes de papagaios em uma caixa na frente de sua casa. As aves pareciam famintas e sofrendo bastante. Ela não resistiu e as colocou para dentro. Alimentou e cuidou direitinho dos quatro passarinhos por um mês e meio no quintal. Até o dia que notou que não eram papagaios e sim pombas comuns. Aí bateu o desespero e a vontade de se livrar delas. Para meu espanto, ao invés de abrir o teto do quintal e deixá-las partir (como eu faria), a corretora as colocou em uma caixa e as levou ao zoológico (onde hoje é o Ecoparque ficava o zoológico de Buenos Aires).
Acho que essa história mostra bem o cuidado dos argentinos com os animais. Outro caso emblemático surgiu durante as últimas eleições presidenciais. Só os estrangeiros ficaram impressionados com o fato de um dos candidatos ao posto máximo do Executivo nacional ter cinco cachorros e os considerar como filhos. É óbvio que os cães são integrantes centrais da família e possuem status de criança. Qual a surpresa?! Por que alguém deveria se envergonhar disso, hein? Até hoje eu respondo à pergunta se tenho filhos: “Tenho. Um de quatro patas, que é uma fofura. Ele ficou com minha irmã no Brasil e morro de saudades dele”.
Na Argentina, as pessoas com mais recursos acabam até clonando os amigos de quatro patas. Os que têm a mente mais aberta (ou um parafuso a menos) abrem até contato mediúnico com os pets falecidos. Ah, falando em serviços que só existem por aqui, esqueci de mencionar o guia espiritual canino, que por supuesto precisa ter fluência idiomática na linguagem dos cães para fazer a comunicação entre o além animal e a vida real humana. Por mais absurdo que possa parecer algo assim, confesso que, se eu tivesse dinheiro para desperdiçar, contrataria esse profissional ao menos uma vez. Tenho curiosidade para saber o que o bom e velho Sheikinho diria de suas aventuras no céu canino (acho que ele foi para o céu, mas tenho dúvidas).
Por tudo isso, acho que Buenos Aires pode ser chamada também de Dogland. Reafirmo: até podem existir cachorros tão felizes quanto os da capital argentina. Contudo, acho improvável encontrarmos cidades em que os cães tenham qualidade de vida superior à de BsAs. Pronto, falei!
Auté a próxima!
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Nona série narrativa da coluna Contos & Crônicas, “Tempos Portenhos” é a coletânea de textos pessoais de um brasileiro que escolheu viver em Buenos Aires. Neste conjunto de memórias, Ricardo Bonacorci revela os detalhes da capital argentina, o dia a dia dos moradores locais e estrangeiros, a cultura da cidade, a história do país e os hábitos portenhos. Cada narrativa abordará um tema específico: o passeio habitual pelos parques; o amor incondicional aos cachorros; a paixão pela carne; a devoção pelo futebol; as particularidades da língua espanhola dos habitantes das margens do Rio da Prata; a segurança e a qualidade de vida na capital argentina se comparadas às das cidades brasileiras; a contradição da crise econômica e da metrópole fervilhante; o custo de vida mais baixo etc. O objetivo aqui é fazer, ao longo de 2024 e 2025, um raio-X da alma portenha.
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