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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

  • Foto do escritorRicardo Bonacorci

Crônicas: Tempos Portenhos - Episódio 2 - Vida ao Ar Livre

No segundo relato de um brasileiro que vive em Buenos Aires, conhecemos a mania dos moradores da capital da Argentina de priorizar os ambientes externos, algo que potencializa o amor pela cidade e o convívio nos espaços públicos.

Vida ao Ar Livre é o segundo episódio de Tempos Portenhos, a coletânea de crônicas de Ricardo Bonacorci sobre como é para um brasileiro viver em Buenos Aires – texto sobre a paixão dos moradores da capital argentina pelos ambientes externos

Façamos um novo passeio pela linda e surpreendente Buenos Aires. Mais uma vez, nossos guias turísticos pelos atrativos das margens mais fervilhantes do Rio da Prata são as páginas do Bonas Histórias. Para desavisados de plantão e visitantes ocasionais, estamos em “Tempos Portenhos”, a nova coletânea de narrativas não ficcionais da coluna Contos & Crônicas. Se no mês retrasado eu comentei a sensação de segurança que os moradores da capital argentina sentem no dia a dia, tema do Episódio 1: Distopia Paulistana (ou Carioca) e assunto que os brasileiros pensam ser impossível de se obter em um país latino-americano, dessa vez trago para o debate a paixão dos portenhos pelas atividades ao ar livre.


Sim, senhoras e senhores, o assunto do Episódio 2 do relato deste brasileirinho vivendo em CABA (Ciudad Autónoma de Buenos Aires) é a rotina fora de casa. Para esclarecimento inicial, esse foi justamente o segundo aspecto que mais chamou minha atenção no período de quase um ano residindo em tierras hermanas (o primeiro foi, por supuesto, a questão da segurança pública). Porque em qualquer metrópole contemporânea que preze pela qualidade de vida dos seus habitantes, o melhor a ser desfrutado deve ser do lado de fora das construções e não no interior. Acho que o Raul Juste Lores iria gostar de me ver propagando suas teses urbanísticas. Por falar nisso, abraço, Raul! A temporada “Buenos Aires nas Alturas”, série de vídeos postados no “São Paulo Nas Alturas”, está impecável! Parabéns!!!


Se você se acostumou, como um legítimo brasuca escaldado, aos hábitos de seus compatriotas de evitar as ruas, os parques, os transportes coletivos, as aglomerações em locais públicos, os programas outdoor, as atividades físicas em ambientes externos, os contatos sociais aleatórios e o flanar sinestésico pelos grandes centros urbanos, saiba que a realidade na maior cidade da Argentina é impressionantemente diferente. Eita povo que ama viver em contato com a natureza e respirar o ar natural (nem sempre puro). O choque cultural é enorme, principalmente para quem foi criado em uma localidade que tem a mania de enclausurar seus habitantes. Sou de São Paulo, onde isso é evidente. Porém, morei em muitos outros pedaços desse Brasilzão. Em quase toda grande cidade brasileira de Norte a Sul, a tônica cotidiana é se esconder, se proteger e de evitar vários contatos sociais.


A vida que tenho em Buenos Aires é tão diferente daquela que levava no Brasil que aposto que alguns leitores do Bonas Histórias irão dizer que estou mentindo ou exagerando nos relatos de “Tempos Portenhos”. Realmente, não sou lá a pessoa mais verdadeira do mundo. Por causa do meu ofício de escritor, a mentira faz parte da minha rotina de trabalho e me amarrou como se eu fosse um praticante de Shibari. Além disso, confesso que estou caidinho, caidinho de amores por essa senhora centenária. Pela primeira vez, me apaixonei por uma cidade. Provando que não comungo do etarismo nem que me rendo exclusivamente aos encantos do sexo feminino da minha espécie, minha grande e atual paixão é um emaranhado de concreto (e muito verde) de mais de quatro séculos de vida.

Na crônica Vida ao Ar Livre, segundo texto da série não ficcional Tempos Portenhos, Ricardo Bonacorci relata a mania dos habitantes de Buenos Aires de realizar passeios e programas outdoor

Fiz essa observação (desnecessária, claro) só para dizer que minhas narrativas são ardilosas e exageradas, frutos de uma mente atormentada e pouquíssimo confiável. Mesmo assim, saiba que minhas palavras não estão tão longe da verdade nua e crua. Pela natureza desse conjunto textual estar mais próxima das crônicas do que dos contos (divisão que fiz questão de ressaltar desde o início), não posso abandonar completamente o mundo real. Em nome da coerência da tipologia narrativa, agarro-me à realidade por mais que ela siga me maltratando como se eu fosse seu pior inimigo. Tá bom, vou parar de ser melodramático (já tirei a falsa carapuça) e voltar ao tema do post de hoje do Bonas Histórias (é para isso que estamos aqui, né?).


Só quem vive em Buenos Aires poderá atestar se o que digo em “Tempos Portenhos” é factual ou não. Por isso, quem tiver a oportunidade de se manifestar nos comentários abaixo, deixe sua opinião. Gostaria de saber se estou ficando maluco e tendo alucinações ou se o que vivencio é verídico. Entre uma certeza aqui e uma convicção ali, o que posso garantir, em um lapso inexplicável de sinceridade, é que não quero mais ir embora de CABA. Vim com o plano de ficar de dois a três anos. E, nem bateu doze meses de estadia, esse prazo já me parece extremamente apertado. Se bem que minhas consultoras do plano cósmico-astral (Jéssica, acho que descobri o que acontecerá comigo em agosto!) garantem que em breve trocarei de cidade e até de país. Será?! A paixonite por uma dama aventureira e misteriosa suplantará os encantos pela metrópole charmosa e caótica? Mistéeeeeerio!    


Brincadeiras à parte, confesso que me sinto muito mais portenho do que paulistano. É engraçado falar sobre isso. Os hábitos dos moradores de Buenos Aires são muito mais parecidos aos meus do que eram/são os comportamentos típicos dos habitantes da capital paulista. Quando vivia em São Paulo, era tachado de exótico, maluco, anormal, ET! O bullying era praticado, obviamente, pelos familiares queridos e pelos amigos mais próximos, que não perdiam a oportunidade de uma boa zoação. Talvez nenhuma ação seja tão representativa dessa constatação quanto curtir a cidade ao ar livre, algo que sempre fiz nos lugares em que morei (e que na Argentina se tornou o ponto alto do meu dia a dia) e que meus conterrâneos sempre abominaram (daí a incredulidade deles para meus comportamentos).


Para ficar mais claro o que quero dizer, vou usar o mesmo recurso narrativo que utilizei no Episódio 1: Distopia Paulistana (ou Carioca): pontuar minha crônica com diferentes cenas do cotidiano portenho. Assim, tenho certeza de que conseguirei mostrar na prática as enormes diferenças culturais entre os países (ou, sendo mais específico na minha comparação, entre as maiores cidades das duas nações). Simultaneamente, comentarei ponto a ponto os fragmentos extraídos sem muito pudor de expor minha vidinha e as rotinas de meus vizinhos e conhecidos. Afinal, hoje é dia de crônica, bebê.


Chega, então, de lero-lero e diz-que-me-diz. Vamos ao que interessa. Você está em “Tempos Portenhos”, amigo(a)! Toma aí quatro cenas comuns que encontramos em Mi Buenos Aires Querido quando o assunto é vida ao ar livre.

Na segunda narrativa de Tempos Portenhos, a nova temporada da coluna Contos & Crônicas, Ricardo Bonacorci apresenta Vida ao Ar Livre, relato pessoal sobre a devoção dos moradores de Buenos Aires pelas atividades em ambientes abertos

Cena 1: Parques e praças 24 horas por dia, todos os dias da semana.


Sei que já falei rapidamente sobre esse assunto na crônica anterior, Episódio 1: Distopia Paulistana (ou Carioca). Contudo, sinto que preciso aprofundar um pouco mais essa questão. Os portenhos amam as praças e os parques. É como se esses lugares fossem a extensão natural de suas casas. Chega a ser emocionante ver a relação que eles têm com os espaços verdes de Buenos Aires. É claro que aos finais de semana e aos fins de tarde a frequência dispara. Mesmo assim, é importante ressaltar que a qualquer hora do dia, da noite e da madrugada dá para passear em meio à natureza. Não há violência e os locais são receptivos aos visitantes.


O que se faz em uma praça ou parque da capital da Argentina? Tudo. Ou quase tudo. Esse é o melhor lugar para praticar atividades físicas, jogar bola, passear com os pets, levar as crianças para brincar, fazer piqueniques (los mosquitos sueñan con familias haciendo picnics en los bosques de Ezeiza), descansar, socializar, pedalar, namorar, paquerar, discutir a relação, fazer refeições divertidas, dançar, fazer academia a céu aberto, jogar xadrez, realizar compras, encontrar os amigos, charlar por teléfono etc.


Vou contar a realidade do Parque Saavedra, que é o mais perto de onde moro – estou a exatos 500 metros dele, conforme indicado pelo Google Maps. Já levei alguns brasileiros para dar uma voltinha por lá (minha casa é quase um consulado informal do Brasil; é só aparecer que tem uma caminha para você). Durante esses passeios, sempre vejo olhos de incredulidade nos meus compatriotas. Em primeiro lugar, o parque não é cercado por grades – uma mania que se tem em São Paulo. Portanto, você pode frequentá-lo a qualquer horário. E acredite: nas noites e nas madrugadas, ele é relativamente movimentado. Sei disso porque corto caminho pelo seu miolo quando volto dos passeios boêmios por Palermo, Belgrano, Chacarita e Villa Crespo. Além disso, no Verão, para fugir do calorão, ia correr só depois que o sol tinha se posto. E para minha surpresa, essa era a opção de grande parte dos meus vizinhos.


Entretanto, o que mais me encanta no Parque Saavedra é a sua estrutura e sua dinâmica social. São incontáveis as atrações à disposição do público: vários parquinhos infantis (quem aproveitou bastante foi o Gui no Carnaval), carrossel, mesinhas para refeições, gramado para crianças e cachorros correrem/brincarem, pistas de bicicleta e de caminhada, equipamentos de ginástica, aparelhos de musculação, tablado para dança, quadras/campos de futebol à bocha, banheiros, postos de policiamento, coreto, centros de reciclagem etc. Aos finais de semana, é montada uma feirinha popular em que se vende de tudo. A oferta de comes-e-bebes é responsabilidade dos vários restaurantes, cafeterias, panaderias, kioscos e bares estrategicamente instalados nos arredores do parque.


Numa voltinha despretensiosa por Saavedra, seja num sábado ou domingo, seja no fim de tarde de um dia de semana, é possível ver a explosão de vida do lugar. Há gente correndo, pedalando, fazendo musculação, brincando, passeando, namorando, se alimentando, dançando, cantando, tocando instrumentos musicais, fazendo reuniões religiosas e políticas (o encontro dos peronistas é aos domingos à noite no coreto central), protestos (se bem que os cacerolazos diminuíram bastante nos últimos meses), tirando fotos (abraço, Rai e Carlos!) etc. Há muitos personal trainers que dão aulas particulares e em grupo no parque. Eles não vão para um lugar fechado para atender aos clientes.


O mais legal é ver que tudo funciona muito bem sem precisar pagar nada. NADA!!! Para os paulistanos que não conseguem imaginar um serviço público que funcione plenamente ou um serviço privado que não tenha jeitão de extorsão, conferir algo gratuito de elevada qualidade é impressionante. Juro que revi vários conceitos sobre a gestão municipal brasileira desde que vim morar em Buenos Aires. Esse lance de conceder à iniciativa privada espaços urbanos só porque as prefeituras são incompetentes é abraçar a ignorância e a ineficiência do Estado.


Assistindo à realidade de CABA, a única dúvida que tenho é se Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais? Explico. Quanto mais os portenhos usam os parques e as praças, mais esses lugares se tornam agradáveis e seguros. Paralelamente, quanto mais agradáveis e seguros ficam, mais gente os procura. É a famosa lei Tostines – dúvida universal criada pelo genial Enio Mainardi há 40 anos. Dando vazão a essa relação que chamo de “focinho-rabo de cachorro rodopiando”, a todo momento estão surgindo novas áreas verdes pela cidade. Na Zona Norte de CABA, a mais recente entrega da Prefeitura foi o Parque de los Niños, às margens do Rio da Prata, na divisa de Núñes com Vicente López. O lugar é um espetáculo. Até prainha tem – praia ao estilo argentino, que fique claro! E o que falar do Parque de la Inovación, que está em construção ao lado da cancha do River Plate, hein?


Por essas e outras, se você morar na capital da Argentina ou se só estiver passeando a turismo por aqui, minha recomendação é: embrenhe-se pelas áreas verdes da cidade como se explorasse as ruínas históricas de Roma/Atenas ou as praias de Cancún/Maldivas. Você não conseguirá conhecer a alma portenha e a dinâmica de Buenos Aires se não compreender a relação de seus moradores com os parques e as praças.

A rotina fora de casa, seja nas caminhadas pelas ruas, seja nas visitas às praças e parques, é o tema de Vida ao Ar Livre, a segunda crônica de Tempos Portenhos, a nova série narrativa da coluna Contos & Crônicas

Cena 2: Fugindo dos shopping centers


Você quer ver um(a) paulistano(a) feliz? Não tem erro. Convide-o(a) para ir ao shopping center. Até quem não é consumista gosta de passear pelos corredores padronizados, refrigerados, limpos e seguros daquele cubo de concreto. Há muito tempo esse lugar passou a ser o principal centro de lazer de São Paulo. Encontramos de tudo lá: praça de alimentação, cinemas, teatros, lojas, supermercados, lotéricas, veterinários, academias de ginástica, bancos... Mais recentemente, foram implementados serviços médicos e laboratoriais e até escolas. Uma vez li que os habitantes das grandes cidades brasileiras amam os shopping centers porque é o único lugar em que ele se sente efetivamente seguro. Talvez esse não seja um ponto de vista tão maluco assim.


Por que estou falando sobre isso? Porque, em Buenos Aires, as pessoas não têm esse frenesi pelos centros de compra. Até há alguns bons e grandes shoppings em CABA, mas nenhum deles passa perto do burburinho dos estabelecimentos paulistanos e cariocas. A razão é que as atrações que estariam concentradas nesses lugares estão dispersas pela cidade. Você quer ir ao cinema ou ao teatro? Tem várias ótimas redes de exibição e casas de espetáculos nas ruas. Você quer ir a restaurantes, pizzarias, churrascarias e cafeterias descolados? Há vários espalhados na maioria dos bairros. Por falar nisso, comer na calçada ou no terraço, para aproveitar o clima da cidade e a paisagem, é uma atração muito requisitada por comensais e bebedores portenhos. Inclusive no Inverno e no Verão, muita gente não perde essa mania – algo que não aconselho se o local não tiver aquecedor eficiente ou uma cobertura apropriada!


Até mesmo as compras que os brasileiros fazem tipicamente em shopping, como roupas e artigos para casa, são realizadas nos centros comerciais de rua. Villa Crespo (beso, Paula) reúne vários outlets de moda muito charmosos. Enquanto caminham pelas vias desse bairro calmo e bucólico, os consumidores matam a curiosidade espiando as belas vitrines das lojas. Dizem que é nesse pedaço de CABA que se encontram os melhores artigos de couro (melhores em minha frase é no sentido de melhor custo-benefício, tá?). Quem procura vestuários mais baratos, a opção é o barrio de Flores. A Avenida Avellaneda e suas imediações são os points da roupa com preços mais baratos da capital da Argentina. Se a sua necessidade for coisas para a casa e miudezas no geral, aí você deve partir para Once (beso, Yudy). Naquele formigueiro humano, é possível encontrar itens pela metade ou até um terço do preço do que é praticado nas outras partes da Capital Federal. Não preciso dizer que adoro o comércio popular de Flores e Once.


Para o argentino que vive na capital, não faz sentido ir ao shopping center. Alguns até vão, mas noto que esse não é um passeio obrigatório nem muito requisitado pelas famílias, casais e grupos de amigos. No Brasil, a alegria da criançada e dos adolescentes é dar um rolê no shopping (um dos poucos lugares onde alguns pais os deixam sozinhos em segurança). Se você convidar um gatinho ou uma gatinha para um encontro, uma boa opção é dar uma volta por um centro de compras. Ou se os parentes estão em casa entediados, o convite para uma espiada de vitrine no estabelecimento de compras mais próximo pode ser uma boa solução para desativar o clima explosivo da família.


PELO AMOR DE DEUS: shopping não é vida! Se os moradores de sua cidade só encontram prazer fora de casa pelos corredores de um centro de compras, saiba que vocês têm um sério problema (e, talvez, nunca tenham percebido).

Ricardo Bonacorci apresenta, na coluna Contos e Crônicas do Bonas Histórias, o relato de como é encantadora a vida ao ar livre em Buenos Aires, a capital argentina

Cena 3: Desviando de bombas e fugindo do trem.


Adoro flanar por Buenos Aires. Todo dia (é todo dia mesmo, inclusive quando faz frio polar ou calorão equatorial) saio para caminhar. Uma voltinha normal dura em torno de uma hora e meia, duas horas. Sempre vou para um bairro diferente: Núñez, Belgrano, Palermo, Chacarita, Coghlan, Colegiales, Villa Urquiza, Villa Crespo e Almagro. Quando estou com disposição (geralmente aos finais de semana), engato uma viagem para Vicente Lopes ou San Isidro, cidades vizinhas, ou rumo para o Centro, Recoleta, Porto Madero, San Telmo ou Congresso. Quando fico por Saavedra mesmo, escolho um parque diferente (não faltam parques e praças pelo meu bairro).


Nessas andanças quase sempre aleatórias, reparo que não sou o único que está batendo perna por aí. Os portenhos têm o hábito de andar muito. Aproveitando a topografia plana, o bom calçamento (até Tio Luís iria elogiar o piso da cidade), a segurança pública, o clima agradável e o baixo índice de chuvas de Buenos Aires, eles dão preferência para a caminhada. Pegar carro ou tomar transporte público só em último caso.

É legal notar isso na prática. Perambulando pela cidade, vemos muitos senhores e senhoras, alguns bem velhinhos, fazendo compras nos supermercados e nos açougues. Alguns têm evidentemente graves problemas de locomoção. Mesmo assim, vão e voltam a pé (carregando suas sacolas ou puxando seus carrinhos de compras). As crianças, desde cedo, aprendem a prática do bater pé. Vejo vários meninos e meninas indo sozinhos para a escola. Até os pets parecem acostumados ao ritual de percorrer as ruas (no caso, as calçadas) de CABA. Boa parte dos cachorros do meu bairro andam sem coleira com enorme tranquilidade, mesmo ao lado de vias mais movimentadas.


Essa liberdade para o caminhar é melhor representada pela travessia das ferrovias, que cortam a capital argentina. Não por acaso, esse aspecto foi um dos que mais me surpreenderam. Diferentemente de São Paulo (e de boa parte dos municípios brasileiros), a Capital Federal da Argentina tem uma série de linhas de trens para passageiros que estão integradas à dinâmica social do município. Não existe, por exemplo, segregação do espaço onde passam as locomotivas e onde os pedestres e os carros atravessam. Assim, em uma caminhada banal pelas redondezas de casa, acabo sempre cruzando uma ou duas vezes os trilhos de trem. Isso é perigoso? Talvez. Contudo, nunca ouvi relatos de mortes ou acidentes sérios. As pessoas prestam atenção e tomam cuidado na travessia (há sinalização sonora e visual quando as locomotivas estão se aproximando). Acho que isso seria impossível no Brasil. Em minha terra natal, se constroem grades e muros para evitar que as pessoas transitam livremente por várias partes da cidade. Até praças têm o acesso bloqueado em São Paulo.


Por falar em perigo, talvez o grande temor por se caminhar pelas calçadas de Buenos Aires seja o excesso de bombas caninas. Acredito que elas são produzidas estrategicamente para pegar turistas e moradores que vivem com a cabeça nas nuvens. Tal qual um campo minado, só que de excrementos de animais de estimação, uma pisada em falso pode fazer explodir sentimentos, texturas e odores desagradáveis. Felizmente, uma tragédia desse tipo ainda não aconteceu comigo. Portanto, por mais que a arquitetura histórica da cidade e os predicados das argentinas correndo pelos parques com roupas esportivas aticem os olhares de admiração, lembre-se: NÃO TIRE OS OLHOS DO CHÃO, PELO AMOR DE DEUS!!!

Na crônica Vida ao Ar Livre, segundo texto da série não ficcional Tempos Portenhos, Ricardo Bonacorci relata a mania dos habitantes de Buenos Aires de realizar passeios e programas outdoor

Cena 4: O café da tarde na praça


Acho que já está ficando claro que, para os moradores de Buenos Aires, não há impedimentos para deixar as casas e os prédios e ganhar as ruas. Há até uma expressão popular no castellano rioplatense para designar esse conceito: cultura callejera. Em uma tradução informal (e inconsequente da minha parte), esse termo seria como a “cultura rueira” ou a “cultura de rua”. Desacostumado a esse hábito local nos primeiros meses de vida na Argentina, eu demorei para entender o ritual de um casal de idosos de um prédio na Avenida García del Río.


No ano passado, quando tinha acabado de me instalar em Saavedra, bairro recheado de parques e praças na Zona Norte da Capital Federal, via todo final de tarde uma dupla de velhinhos se acomodar em um banquinho do boulevard em frente ao apê que aluguei (beso, Soledad y Nora). Eles traziam sempre uma sacolinha, com garrafa térmica, cuia e saco de pão. Sem constrangimento, tomavam mate enquanto comiam alguma coisa, talvez medialunas ou empanadas (não sei exatamente). E, claro, conversavam muito e cumprimentavam os conhecidos que passavam por ali. Eles sempre estavam proseando com alguém diferente. Acho que deviam conhecer o bairro inteiro. Via rotineiramente aquela cena quando caminhava pelo boulevard ou quando olhava do terraço de casa.


Admito que não passava pela minha cabeça alguém deixar o conforto de sua casa para tomar o café da tarde (em Buenos Aires, esse momento é chamado de merienda) no banco da praça. Por mais que me encanta merendar, não abro mão de uma mesa, seja no meu apartamento, seja em uma cafeteria. O mais curioso é que o ritual dos meus vizinhos era sagrado. Não importava se fizesse sol ou chuva ou se estivesse frio ou calor. Lá estavam eles merendando. Soube disso em uma tarde de primavera, quando a temperatura era de 10ºC e chovia interminavelmente. E, para meu espanto, o bom casal de idosos estava tomando seu mate devidamente agasalhado com muita roupa e capa de chuva no meio da pracinha!


Tentando entender aquela situação nada convencional para um paulistano recém-chegado à CABA, puxei a Paula de lado (ela é mais conhecida nas crônicas de “Tempos Portenhos” como a policial de Belgrano) e pedi uma explicação racional para aquela cena que tanto me intrigava. A moça, que foi a minha primeira intérprete na então novíssima cidade, arregalou os olhos e respondeu com seu jeito doce de ser: “¿Que passa, boludo?! Ellos están merendando. ¿Lo que está mal?”. Quando consegui expressar o motivo da minha admiração, Paola (Paola é para os íntimos, tá?) justificou que eles gostavam de ir para a praça ao final de tarde. Todo mundo tem suas manias e aquele casal possuía a deles. Qual o problema?!


Foi aí que ela disse algo que me mostrou que talvez eu estivesse virando um portenho. “Você não tem a mania de correr no Parque Saavedra todo final de tarde? É a mesma coisa, Ricardo. Ninguém olha para você correndo e pensa: mas ele poderia estar correndo na esteira do edifício ou na academia! Se você gosta de se exercitar fora de casa, eles gostam de merendar ao ar livre. Não há nada o que se surpreender com isso”.

A rotina fora de casa, seja nas caminhadas pelas ruas, seja nas visitas às praças e parques, é o tema de Vida ao Ar Livre, a segunda crônica de Tempos Portenhos, a nova série narrativa da coluna Contos & Crônicas

Não é que Paola tinha (como sempre) razão. Descobri que na minha nova cidade, todos tinham suas manias. A semelhança é que esses costumes eram sempre realizados a céu aberto. 

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Nona série narrativa da coluna Contos & Crônicas, “Tempos Portenhos” é a coletânea de textos pessoais de um brasileiro que escolheu viver em Buenos Aires. Neste conjunto de memórias, Ricardo Bonacorci revela os detalhes da capital argentina, o dia a dia dos moradores locais e estrangeiros, a cultura da cidade, a história do país e os hábitos portenhos. Cada narrativa abordará um tema específico: o passeio habitual pelos parques; o amor incondicional aos cachorros; a paixão pela carne; a devoção pelo futebol; as particularidades da língua espanhola dos habitantes das margens do Rio da Prata; a segurança e a qualidade de vida na capital argentina se comparadas às das cidades brasileiras; a contradição da crise econômica e da metrópole fervilhante; o custo de vida mais baixo etc. O objetivo aqui é fazer, ao longo de 2024 e 2025, um raio-X da alma portenha.


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