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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Foto do escritorRicardo Bonacorci

Crônicas: Tempos Portenhos - Episódio 1 - Distopia Paulistana (ou Carioca)

No primeiro texto da nova temporada da coluna Contos & Crônicas, ficamos sabendo o quão seguro é viver em Buenos Aires. Diferentemente de São Paulo, do Rio de Janeiro e de boa parte das grandes cidades brasileiras, a capital argentina transmite a sensação de segurança dia e noite.


Distopia Paulistana (ou Carioca) é o primeiro episódio de Tempos Portenhos, a coletânea de crônicas de Ricardo Bonacorci sobre como é para um brasileiro viver em Buenos Aires – texto sobre a sensação de segurança na capital argentina

Para quem acabou de descobrir as páginas do Bonas Histórias, aviso que a coluna Contos & Crônicas tem uma novíssima coletânea de textos não ficcionais. Ao longo de 2024 e 2025, apresentarei “Tempos Portenhos”, os relatos de como é viver em Buenos Aires. Afinal, escolhi morar na capital argentina pelos próximos dois ou três anos (isso é, se o Sr. Câmbio não me decepcionar) e tenho muito (muito mesmo!) o que compartilhar com meus compatriotas sobre essa inusitada e rica experiência. Se você ficou interessado(a) no tema, saiba que há algumas semanas publiquei o calendário de posts de “Tempos Portenhos”. Lá tem os links para todas as demais narrativas que vou produzir e postar aqui no blog.


Hoje, como prometido, trago o primeiro episódio da coletânea de crônicas. Seu nome é Distopia Paulistana (ou Carioca). Na estreia de “Tempos Portenhos”, quero debater o aspecto que mais chamou minha atenção nesses oito meses de Argentina: viver em uma cidade em que temos a sensação de segurança dia e noite


Confesso que não me recordo se alguma vez me senti realmente protegido nas ruas brasileiras (talvez só no sul de Minas). E olha que morei em muitas cidades desse Brasilzão. Porém, como meu país natal é grande e heterogêneo, posso garantir que morar em Buenos Aires confere uma impressão de paz e tranquilidade que nenhum paulistano ou carioca consegue sequer imaginar. Daí o título dessa crônica. A realidade na capital da Argentina pode soar como distópica para os moradores de São Paulo e do Rio de Janeiro (e de qualquer metrópole sul-americana que se fale português). Acredite se quiser: o nível de segurança que os portenhos têm no dia a dia é incrivelmente alto e beira o absurdo para os padrões brasileiros.


Antes de debater em detalhes o assunto de hoje de “Tempos Portenhos”, gostaria de relatar seis cenas corriqueiras da minha rotina em Buenos Aires. Ao apresentar fragmentos da vida real, creio que ficará mais fácil para você entender o nível de segurança que se tem na maior cidade argentina.


Na crônica Distopia Paulistana (ou Carioca), primeiro texto da série não ficcional Tempos Portenhos, Ricardo Bonacorci relata o nível de segurança de se viver em Buenos Aires

Cena 1: Voltando do cinema tarde da noite ou de madrugada.


Como os leitores mais assíduos do Bonas Histórias bem sabem, sou fãnzaço da sétima arte. Para manter a coluna Cinema devidamente atualizada com novas análises, vou semanalmente às salas de cinema. Adoro conferir as principais novidades das telonas. Meu local favorito em CABA (Ciudad Autónoma de Buenos Aires) para ver filmes é o Multiplex Belgrano, que fica mais ou menos perto de casa. Se bem que ultimamente comecei a frequentar mais o Cine Lorca, que não fica tão perto assim de onde moro. O que a gente não faz por uma boa promoção, né?


Diferentemente do que ocorre em várias metrópoles brasileiras (São Paulo e Rio de Janeiro, principalmente), esses cinemas são de rua. Cinema de rua?! Sim, senhor(a). Esse tipo de estabelecimento não morreu em todas as partes do mundo. E em um lugar onde a sétima arte é muito forte, como na Argentina, ainda há exibidores fora do circuito clássico do shopping center. Além dessa primeira surpresa para os brasileiros, trago outra: as sessões dos cinemas de rua vão até tarde da noite (ao melhor espírito portenho de abraçar a madrugada). Já saí do Multiplex Belgrano a uma e meia da manhã. Acho que isso ocorreu quando vi “A Sociedade da Neve” (La Sociedad de la Nieve: 2023).


Ao fim da sessão, o público vai para a rua conversar e se divertir. Muitos aproveitam para tomar algo nos bares e para comer alguma coisa nos restaurantes da redondeza. Tanto Belgrano quanto a Avenida Corrientes são excelentes points noturnos. Isso é feito na mais perfeita tranquilidade. Não há estresse nem preocupação por parte da plateia no instante em que deixa o cinema e coloca os pezinhos na rua (ou na calçada, como preferir).


Em Buenos Aires, a noite e a madrugada não são sinônimos de maior perigo ou de falta de segurança. Pelo contrário: esse é o momento ideal para passear (principalmente no Verão, quando a temperatura é mais agradável após o pôr-do-sol) e para bater papo com os locais (os portenhos são seres noturnos e ficam muito mais animados de madrugada – principalmente depois das duas da manhã). Quantas vezes não fui andando para casa em Saavedra (percurso de 30 a 40 minutos) ao lado da Paula (también conocida como Paola, la policia mas hinchapelota de Belgrano o la chica mas hermosa de Villa Crespo – ¡como quieras!) após a sessão de cinema do Multiplex. Em dias de chuva (ou de muito frio ou de preguiça), a melhor opção sempre foi o ônibus. Por falar nisso, os colectivos em CABA funcionam 24 horas. Portanto, não há aquela correria para se chegar ao ponto antes que o último carro passe.


Se você mora em São Paulo ou no Rio de Janeiro, me conte quando foi a última vez que ficou perambulando a pé ou de transporte público pela sua cidade tarde da noite ou de madrugada. Muita gente só sai na rua nesses horários de carro (se for blindado, melhor ainda!). Nem parar no semáforo é seguro. Depois das 20 horas, o trânsito urbano adquire regras diferenciadas, algo perfeitamente aceito até pelas autoridades. Tudo por causa da insegurança brasileira.


Na primeira narrativa de Tempos Portenhos, a nova temporada da coluna Contos & Crônicas, Ricardo Bonacorci apresenta Distopia Paulistana (ou Carioca), seu relato pessoal de quão seguro é morar em Buenos Aires

Cena 2: Parques lotados à noite e de madrugada.


Eduardo, um dos meus melhores amigos, veio com a família para Buenos Aires no Carnaval. Na segunda-feira carnavalesca (que em terras argentinas é um dia como outro qualquer), ele passeou bastante pela cidade com a esposa e os filhos. Depois de ficar o dia inteiro com o maridão (algo que talvez não estivesse mais acostumada), Adriana, a esposa do Edu, me pediu encarecidamente para eu levar seu estimado esposo para longe (bem longe) de sua presença. Coisas de casal que está há muito tempo junto (e com duas crianças pequenas). Aceitei a missão. E lá fomos eu e Eduardo para um rolê noturno e aleatório pelo Barrio Chino. Enquanto eu queria comer uma boa pizza, ele só pensava em degustar os bons vinhos argentinos. Começava a entender o drama da Dri...


O fato é que ficamos proseando pelas divertidas ruas da parte mais asiática da capital argentina até muito tarde. Quando reparamos nos ponteiros do relógio, já eram duas da matina. Era hora de levar meu amigo de volta para o hotel na Recoleta. Até sua esposa já estaria com saudades dele naquele momento. Se ele não apanhasse da Adriana naquela oportunidade, acho que nunca mais levaria umas boas palmadas dela. O problema é se sobrasse para mim. Se bem que não havia acertado o horário da devolução do pacote matrimonial da minha amiga. Então, achei que estivesse de boa para mim.   


Caminhamos até a Avenida Cabildo onde pegaríamos um ônibus. Para isso, saindo do Barrio Chino, cruzamos as Barrancas de Belgrano, um parque público no coração de Belgrano (um dos bairros mais tchutchuquinhos da capital argentina). Ao avistar a grande área verde, Eduardo parou e ficou olhando admirado para o lugar. Vi que ele não estava entendendo nada. Já sabendo o que ele, que vive há aproximadamente 25 anos em São Paulo, estava tentando processar mentalmente, me adiantei e expliquei: “Os portenhos adoram frequentar praças e parques. Inclusive de noite e de madrugada”.


Em plena terça-feira às duas horas da manhã (a segunda-feira tinha acabado a pouco tempo), as Barrancas de Belgrano estavam cheias de gente. Eram casais fazendo piquenique, pais empurrando carrinhos de bebê, donos de pet dando uma voltinha para que seus amiguinhos dessem aquela aliviada, pessoas de idade tomando mate e jovens bebendo cerveja e conversando. Tudo na maior serenidade. Medo? Insegurança? Risco de ser assaltado?! Esses sentimentos não passavam pela cabeça de ninguém ali.


Acho que Eduardo voltou para São Paulo chocado. O termo é esse mesmo: choque! Como é possível frequentar parques e praças de uma metrópole em qualquer dia da semana e em qualquer horário do dia e da noite com naturalidade?! Diante de sua perplexidade, não contei para ele que gosto de ir, na estação mais quente do ano, correr no Parque de Saavedra justamente à noite. Certamente, ele iria me chamar de mentiroso ou de irresponsável.


A sensação de segurança de se caminhar pelas ruas de Buenos Aires é o tema de Distopia Paulistana (ou Carioca), a primeira crônica de Tempos Portenhos, a nova série narrativa da coluna Contos & Crônicas

Cena 3: Usando o celular nos ônibus, nos trens, nos metrôs e até nas ruas.


Por mais que as caminhadas noturnas sejam surpreendentes e as visitas aos parques e praças madrugadas à dentro pareçam coisas de outro mundo, o que mais chama atenção dos brasileiros que vem para Buenos Aires é poder usar os celulares na rua. O quê? Usar telefone fora de casa?! Como assim? Não é perigoso?! Não serei roubado(a)?


Quando ouço essas interrogações, geralmente tenho uma fala pronta para meus amigos e familiares: “Olhe para a sua volta e veja quantas pessoas estão usando aparelhos eletrônicos”. Não digo só celular porque muita gente utiliza notebook, tablet e Kindle enquanto está em cafés e restaurantes. Em alguns casos, as mesas estão na rua. O quê? Usar computador na rua?!!! Juro que não tenho coragem, mas vejo muitas pessoas fazendo isso.


Eu falei que esse meu relato poderia parecer absurdo para quem não conhece o dia a dia da capital da Argentina. Já começo, inclusive, a temer que seja acusado de mentiroso ou de falsificar a realidade portenha. Mas, sim, querido(a) leitor(a) da coluna Contos & Crônicas, por essas bandas não existe tanto medo de ser assaltado só porque se está na rua com algo eletrônico. É verdade que nos últimos anos aumentou esse tipo de crime por aqui. Porém, ainda assim está longe, muito longe de chegar perto do drama de paulistanos e cariocas.


Faça o teste. Entre num ônibus ou trem e observe. A maioria das pessoas está digitando no celular. Há quem leia no Kindle ou consulte o tablet. Vá num café e verá que muitos fregueses trabalham naturalmente em notebooks. Tem quem vá ao banheiro ou se levante para pagar a conta no caixa sem a menor preocupação de deixar seus itens na mesa. Chega a ser assustador para um brasileiro. Pela rua, o povo caminha com aparelho telefônico em mãos, seja tirando fotos, consultando endereços/trajetos, falando em chamadas telefônicas ou conversando em aplicativos de mensagens instantâneas. Confesso que foi difícil me acostumar a esse cenário um tanto surreal.


Para me divertir um pouco com os brasileiros desavisados, sempre falo para eles tomarem muito cuidado quando estiverem caminhando pelas ruas. Buenos Aires está perigosíssima. O Centro, então, está um terror! Fiz isso, por exemplo, com a minha irmã em dezembro (beijo, Marcelinha!) e com Carla em janeiro (beijo, Carlota!). Quando elas pegavam os celulares do bolso ou da bolsa (geralmente para tirar foto, algo que odeio), na hora eu alertava em tom apavorado: “Isso é muuuuuito perigoso! Não estamos na Suíça!” Nos primeiros dias, as pobres paulistanas caíram en mi broma. Contudo, depois de alguns dias de bateção de perna pela capital argentina, as respostas delas eram sempre as mesmas: “Você só pode estar brincando, né? Olhe para a nossa volta. Tá todo mundo de celular em mãos”. Quando elas percebiam que se tratava de uma simples brincadeira minha, perdiam o receio e tascavam tirar foto de tudo. Já falei que odeio foto?!


Ricardo Bonacorci apresenta, na coluna Contos e Crônicas do Bonas Histórias, o relato de como é seguro morar em Buenos Aires, a capital argentina

Cena 4: Visitando uma agência bancária portenha.


Numa terça-feira de dezembro, aproveitei que já estava na rua fazendo um monte de coisa e decidi ir ao banco. Precisava pagar um boleto. Quando já estava na frente da agência bancária em Núñez, lembrei que não poderia entrar lá. Afinal, estava com a mochila nas costas. Dentro dela havia um monte de coisas: xerox do curso de espanhol que me inscrevi na Universidade de Buenos Aires (UBA), documentos que levei para a Migração para conseguir a residência na Argentina, um regalo que ganhei da Paula e dinheiro que havia sacado na Western Union. Todo brasileiro sabe que não se entra COM NADA em uma agência bancária. NADA!!! Inclusive dignidade, autoestima e vergonha na cara.


Quando já estava dando meia volta para rumar para casa em Saavedra, vi uma senhora entrar no banco com um carrinho de feira. O quê? Ela entrou com várias frutas e legumes! NO BANCO!!! Fiquei pasmo com a cena. Aí comecei a reparar nas pessoas que passavam pela porta principal da agência. Um homem entrou carregando uma caixa. UMA CAIXA?! Logo depois, uma mulher com uma bolsa maior do que a minha mochila passou. Na hora pensei: se eles podem entrar com esse monte de quinquilharia, eu também posso.


Com esse pensamento, assumi a postura abusada e fui em direção à entrada do banco. Na minha cabeça, a qualquer instante o segurança iria me bloquear. No pior dos casos, poderia praticar meu espanhol ainda claudicante. Ou teria que ligar para a Paula ir me tirar da cadeia (algo contraditório considerando sua profissão). Contudo, não foi preciso nenhuma medida mais extrema.


O banco não tinha porta-giratória nem sequer detector de metal. Também não vi nenhum segurança logo de início. Ao indicar o serviço que queria fazer no terminal eletrônico, recebi uma senha e fui esperar sentado a indicação do caixa em que deveria me dirigir. O pessoal ao meu redor fazia o mesmo. Eles usavam o celular numa boa e conversavam animadamente entre si. Todos SENTADOS. A senhora com o carrinho de feira colocou suas compras em um assento. Talvez as frutas e legumes precisassem descansar até chegar em casa.


Vinte minutos depois, fui chamado pelo painel eletrônico. Paguei a conta no caixa e saí do banco. Quando cruzei a porta, encontrei um segurança que entrava tranquilamente. Pelo jeito que palitava os dentes, acho que voltava do almoço. Inconformado com aquela experiência sui generis, não me segurei e perguntei se era permitido sempre entrar com mochila na agência. Ele foi muito simpático e me disse que sim. “Por que não poderia?”, quis saber intrigado. Expliquei que eu era de São Paulo e que na minha cidade não se entrava com NADA (ABSOLUTAMENTE NADA) nos bancos. O cara não acreditava no que ouvia (ou meu espanhol estava mesmo muito ruim). Depois que expliquei um pouco mais a saga dos usuários dos bancos no Brasil, o segurança (que era torcedor do River e morava em Pilar) resumiu bem nossa conversa: “Os bancos brasileiros são então fortalezas!”. Envergonhado, concordei. “Sim, você usou a expressão certa. São fortalezas”.


Se você não acredita no que estou relatando, faça uma experiência antropológica (ou seria sociológica?). Vá até uma agência bancária em Buenos Aires e fique vendo o que as pessoas levam. É hilário! Não dá para acreditar. Os funcionários não têm medo de assalto?! Não existe roubo à banco nessa cidade, Santo Deus?! Será que um pouco de segurança não seria indicado para um lugar em que se trabalha com dinheiro e com serviços financeiros?!


Quando fiz esses questionamentos para a Paula à noite (a polícia daqui é tão encantadora que não resisti e levei para casa a agente com quem mais me afeiçoei – brincadeirinha!), minha amiga me respondeu com o sarcasmo típico dos portenhos: “O que os ladrões vão levar dos nossos bancos, hein? Pesos argentinos?! Nossa moeda está valendo tão pouco que é mais lucrativo assaltarem os supermercados para levar comida. Além disso, você já imaginou a operação logística que os assaltantes precisariam empregar para levar uma boa quantia?!”. Juro que não tinha pensado por esse ponto de vista. Está aí também a explicação para ninguém me molestar quando saio quinzenalmente do Western Union com uma mochila abarrotada de notas de dinheiro (cujo valor seria facilmente coberto por duas ou três notas mais altas de real).

Na crônica Distopia Paulistana (ou Carioca), primeiro texto da série não ficcional Tempos Portenhos, Ricardo Bonacorci relata o nível de segurança de se viver em Buenos Aires

Cena 5: Mulheres andam sozinhas para cima e para baixo a qualquer horário do dia e da noite.


Alguém pode chiar comigo: “É claro que você se sente seguro na Argentina, Ricardo. Você é homem, feio e pobre. Quem iria mexer com você na rua? Além do mais, você nasceu e cresceu no bairro de Pirituba, na cidade de São Paulo. Se você não sente medo das pessoas, saiba que as pessoas sentem medo de você!”. Para quem disse (ou só pensou) essas palavras tão ácidas e amargas para a minha pessoa, peço um pouco de calma (e de carinho). Muita calma nessa hora, querido(a) e salve-salve leitor(a) da coletânea de crônicas “Tempos Portenhos”.


Quando falo da sensação de segurança em Buenos Aires, não estou me referindo apenas a mim. É algo geral, principalmente entre os brasileiros que para cá vem morar. Avaliar a opinião dos locais não vale. Os portenhos não conseguem ficar satisfeitos com NADA, mas isso é uma coisa cultural deles. E é justamente entre as mulheres estrangeiras que essa percepção fica mais nítida. Converse com uma paulistana ou uma carioca que vive na capital argentina há certo tempo e lhe pergunte sobre a sensação de segurança. Certamente, a visão delas é mais impactante e positiva do que a minha ou a de qualquer homem.


Para você entender o que estou me referindo, saia na rua tarde, bem tarde da noite. O que é tarde para você? Para mim é 23 horas, meia-noite ou uma da madrugada. Tenha certeza de que nesses horários terá muita gente andando pelas ruas, tomando ônibus e frequentando bares e restaurantes. Contudo, o mais impressionante é a quantidade de mulheres sozinhas nas calçadas (voltando para casa ou indo para a baladinha) ou no transporte público. Elas não têm receio de ir-e-vir seja de dia, seja de noite. Chega a ser maravilhoso para quem está acostumado com a realidade no Brasil.


Se pensarmos bem, as metrópoles brasileiras não são muito diferentes das cidades sauditas, afegãs, iranianas, emiradenses e cataris para a população feminina quando o sol se põe. Colocar os pés na rua é uma sentença de morte ou de violência de gênero dependendo do horário. Se você falar para as paulistanas e cariocas recém-chegadas à CABA que o ir-e-vir é tranquilo mesmo de madrugada, inclusive se precisarem usar o transporte público, possivelmente elas não irão acreditar em suas palavras.


É curioso esse lance de ter vivido em São Paulo por muito tempo e de ter me acostumado à violência brasileira. Quando eu saio com uma moça na capital argentina, eu não consigo deixá-la ir sozinha para casa à noite ou de madrugada. Como não dirijo, faço questão de acompanhá-la de ônibus ou Uber por cavalheirismo e, claro, por segurança. Ainda passa pela minha cabeça que algo de ruim possa lhe acontecer no trajeto de retorno. Aí a culpa será obviamente minha e da minha negligência na parte final do passeio.


O problema é que minha atitude zelosa é vista com espanto pelas portenhas. “¡Que raro, Ricardo!” é o que sempre ouço nessas situações. Infelizmente, a palavra “raro” em espanhol significa “estranho”. Ou seja, elas sempre acham que estou forçando a barra ou tentando algo a mais no fim de noite. Não à toa, assisto a um novo espanto quando tão logo abrem a porta de suas casas e entram. Aí me veem dando meia-volta e seguindo sereno e sozinho para o meu apartamento. “¡Que raro, Ricardo! ¡Que raro eres vos!”, ouço à distância. Tenho vontade de responder gritando: “Não sou estranho. Só sou paulistano”.


Na primeira narrativa de Tempos Portenhos, a nova temporada da coluna Contos & Crônicas, Ricardo Bonacorci apresenta Distopia Paulistana (ou Carioca), seu relato pessoal de quão seguro é morar em Buenos Aires

Cena 6: A criminalidade existe sim, mas o que prepondera é a sensação de segurança.


Gostaria que ficasse claro que não estou dizendo que a criminalidade e a violência em Buenos Aires estejam em patamares próximos de zero. Os roubos, os assaltos e as agressões existem sim e, infelizmente, são cada vez mais comuns. Quem mais reclama são os portenhos, que dizem passar por uma grave crise de segurança pública. Não podemos nos esquecer que estamos em uma cidade grande da América do Sul e todo cuidado é pouco. Mesmo assim, a sensação de tranquilidade que o brasileiro tem ao perambular pelas ruas da capital argentina é muito, muito superior àquela que ele teria em seu país natal. Se essa pessoa for paulistana ou carioca, certamente terá a impressão de estar caminhando pelas alamedas de um país europeu.


Prova disso é o que aconteceu comigo na semana passada. Veja que episódio mais surreal que ilustra bem o que quero dizer com o termo “há criminalidade em CABA, mas ainda assim a sensação de segurança prepondera”.


Saí do curso de espanhol que faço três vezes por semana no centro da cidade e peguei o metrô com alguns colegas brasileiros. De pé, ficamos conversando de maneira descontraída no vagão durante o trajeto da linha D. Em determinado momento da viagem, senti alguém mexendo no meu casaco e na minha calça. Achei estranho. Juro que torci para que fosse uma mulher bonita se aconchegando para o meu lado. Ao olhar para o lado, vi um rapaz de jaqueta preta, que se afastou rapidamente depois da minha encarada nada amistosa. Ainda pensei: “Que indelicado! O cara passando a mão em mim na maior safadeza!”.


Continuei batendo papo com meus colegas numa boa como se nada de estranho tivesse ocorrido. Pouco a pouco, todos foram descendo, até que fiquei sozinho no trem. Como vou até a estação final da linha, em Congreso de Tucuman, sempre sou o último da turma de brasileiros a descer. Na penúltima estação, por acaso, ouvi um argentino ao meu lado comentar com a amiga para ela ter cuidado. Um boludo de mierda com jaqueta preta tinha tentado roubá-lo havia alguns minutos. Só nesse momento, minha ficha caiu. O cara não estava passando a mão em mim com intenções lascivas. Ele estava era tentando me roubar! Confesso que fiquei chocado com tal constatação. Foi a primeira vez em oito meses em Buenos Aires que sofri uma tentativa de roubo, algo até então impensável para mim.


Contudo, o mais curioso ainda estava por vir. No dia seguinte, conversei com a Jéssica, minha amiga catarinense que estava naquele vagão e foi a primeira da classe a descer do trem. Falei para ela o que tinha descoberto – a tentativa de roubo que havia sofrido do cara de jaqueta preta. Para minha surpresa, Jéssica soltou: “Sei quem é. Ele mexeu na minha bolsa e no meu casaco também”. Com o instinto de proteção aflorado de irmão (muito) mais velho (ou talvez de tio zeloso), devolvi de bate-pronto: “Como assim, ele mexeu nas suas coisas e você não falou nada para mim, que estava ao seu lado?!” A resposta dela foi ainda mais desconcertante e hilária: “Não pensei que fosse um assalto. Achei que ele estivesse apertado no metrô e estava se ajeitando para o meu lado”.


Tenho certeza de que esse episódio representa maravilhosamente bem o que quero dizer com SENSAÇÃO DE SEGURANÇA. Um sujeito no metrô mexe nas calças, nos casacos e nas mochilas dos passageiros e a maioria das pessoas (pelo menos entre os brasileiros) no trem não pensa que se trata de um roubo. É ou não é incrível, hein?! Para ninguém falar que eu esteja mentindo ou inventando história (não por acaso, estamos no Bonas Histórias, né?), tenho Jéssica como testemunha para corroborar com a minha versão dos fatos.


Algo parecido (ou seria totalmente diferente?! – agora não sei) ocorreu quando fui assistir à peça "Made in Lanús", na Avenida Corrientes, numa sexta-feira à noite. Bem antes da sessão de teatro começar, fui caminhar pela Calle Lavalle, na parte exclusiva para pedestres, a procura de um café. Quando ia entrar em um estabelecimento com uma carinha boa, vi um homem correndo pela rua com uma bolsa pequena do tipo pochete em mãos. Juro que não pensei na possibilidade de assalto. A primeira coisa que imaginei foi: “ele está mesmo atrasado!”.


Quem cogitou que fosse ladrão foi um grupo de brasileiros (provavelmente turistas) que, vendo a correria, gritou: “Pega, pega! Pega ladrão!!!”. No mesmo instante, uma dupla de policiais, que vinha no sentido contrário, intercedeu. Como o rapaz suspeito já estava bem longe (ele estava mesmo com muita pressa e sumiu das nossas vistas!), ouvi os policiais perguntando para os meus conterrâneos se eles tinham sido assaltados. Os brazucas falaram que não, que só gritaram porque um homem correndo no meio da rua com algo em mãos é muito suspeito. Quase sempre, garantiram, é alguém fugindo depois de ter praticado um assalto. A dupla de policiais riu da suposição dos turistas.


Juro que não sei se presenciei a fuga de um assalto na Calle Lavalle naquele fim de tarde de sexta-feira. Até pode ter sido mesmo um roubo. Contudo, a reação inicial de quem mora aqui nunca é de achar que estamos diante de um crime. É algo totalmente distinto ao que se passava comigo quando vivia na cidade de São Paulo. Lá, a primeira (segunda, terceira, quarta e quinta...) opção que brotava na minha cabeça nessas situações era: “é roubo ou golpe”.


A sensação de segurança de se caminhar pelas ruas de Buenos Aires é o tema de Distopia Paulistana (ou Carioca), a primeira crônica de Tempos Portenhos, a nova série narrativa da coluna Contos & Crônicas

Se você não conhece Buenos Aires a fundo (ou só receba as notícias banhadas de ideologias políticas mais extremistas de ambos os lados nas redes sociais) talvez não esteja acreditando no que estou relatando. Mas juro que é verdade verdadeira (termo que usava na minha infância e que me parece apropriado para essa realidade distópica). Quem pode comprovar o que estou dizendo são meus familiares e amigos que vem sempre me visitar aqui. Invariavelmente, eles ficam surpresos com a liberdade de poder sair à noite e de madrugada e de zanzar por ruas e parques com telefones celulares em mãos. O único que fez uma crônica sobre a experiência turística na capital argentina foi Paulo (vulgo Pablito, o Caníbal), em “CABA que não ACABA”. Entretanto, meu amigo desprezou totalmente a questão da segurança pública em seu texto. Talvez, ele estivesse mais preocupado com os encantos gastronômicos e etílicos da cidade. Fazer o quê?!


Repare que não estou descrevendo a rotina em uma cidade canadense, suíça, japonesa, australiana ou norueguesa. Estamos falando da Argentina, papá! Um país que vive em eterna crise econômica e com uma pobreza que se multiplica anualmente, mamá. Mesmo assim, suas ruas não são lugares tão perigosos. Quando reflito sobre isso, sempre me pergunto: como deixamos as coisas chegarem aonde estão no Brasil, hein? A explicação que temos que fazer não é como os portenhos conseguiram esse nível de segurança e sim como paulistanos e cariocas aceitam viver com o padrão brasileiro de criminalidade e de insegurança pública. Juro que não sei!


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Nona série narrativa da coluna Contos & Crônicas, “Tempos Portenhos” é a coletânea de textos pessoais de um brasileiro que escolheu viver em Buenos Aires. Neste conjunto de memórias, Ricardo Bonacorci revela os detalhes da capital argentina, o dia a dia dos moradores locais e estrangeiros, a cultura da cidade, a história do país e os hábitos portenhos. Cada narrativa abordará um tema específico: o passeio habitual pelos parques; o amor incondicional aos cachorros; a paixão pela carne; a devoção pelo futebol; as particularidades da língua espanhola dos habitantes das margens do Rio da Prata; a segurança e a qualidade de vida na capital argentina se comparadas às das cidades brasileiras; a contradição da crise econômica e da metrópole fervilhante; o custo de vida mais baixo etc. O objetivo aqui é fazer, ao longo de 2024 e 2025, um raio-X da alma portenha.


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