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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

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Análise Literária: Orhan Pamuk

Estudo apresenta a trajetória pessoal, os feitos profissionais, os detalhes dos livros e as características do estilo narrativo de Pamuk, o principal escritor turco da atualidade.

Análise Literária de Orhan Pamuk

Em abril e maio, o Desafio Literário dedicou-se ao estudo da literatura de Orhan Pamuk, o principal escritor turco da atualidade e um dos mais importantes autores do romance contemporâneo. Para provar que não estou exagerando nas palavras iniciais do post de hoje, basta dizer que Pamuk conquistou o Prêmio Nobel de Literatura de 2006. E ele foi o segundo mais jovem a receber a maior honraria literária – foi premiado aos 54 anos; só não foi mais precoce do que o britânico Ruyard Kipling, coroado em 1907, aos 41 anos.


Sem dúvida, a cerimônia na Academia Sueca de Letras representou o auge da carreira de Orhan Pamuk. Porém, esse não foi o único de seus feitos na literatura ficcional. Ele encarna o tipo de artista que une o reconhecimento entre os críticos literários e o sucesso comercial junto ao público leitor. Seus livros foram traduzidos para mais de seis dezenas de idiomas e são extremamente populares na Turquia. Em sua terra natal, Pamuk é o autor mais vendido da história. Nas livrarias internacionais, ele é um nome que não pode faltar na seção dos best-sellers.


Contudo, antes de entrarmos efetivamente nessa análise, preciso fazer uma rápida explicação técnica. Quem acompanha há mais tempo o Bonas Histórias deve ter percebido que o Desafio Literário de Orhan Pamuk foi o primeiro a ser realizado bimestralmente. Até então, investigávamos mensalmente os principais autores da literatura brasileira e mundial na coluna Desafio Literário. Isso ocorreu de 2015 a 2020. A partir de 2021, alteramos essa dinâmica (essa mudança será permanente!). Com mais tempo disponível (dois meses ao invés de apenas um), podemos avaliar mais obras de cada escritor selecionado. Se antes estudávamos no máximo seis títulos, agora podemos analisar no mínimo oito livros de cada autor. Essa foi a grande vantagem da modificação promovida no blog nesse ano. O Desafio Literário fica, assim, mais completo, abrangente e aprofundado. E quem ganha com isso é, obviamente, o leitor do Bonas Histórias.


Esses benefícios já são perceptíveis nesse estudo sobre Pamuk. Nas últimas sete semanas, comentamos no Bonas Histórias oito obras do romancista turco: “A Casa do Silêncio” (Companhia das Letras), romance de 1983, “O Castelo Branco” (Companhia das Letras), romance de 1985, “A Vida Nova” (Editorial Presença), romance de 1994, “Meu Nome é Vermelho” (Companhia das Letras), romance de 1998, “Neve” (Companhia das Letras), romance de 2002, “Istambul - Memória e Cidade” (Companhia das Letras), título autobiográfico de 2003, “O Romancista Ingênuo e o Sentimental” (Companhia das Letras), ensaio literário de 2010, e “Uma Sensação Estranha” (Companhia das Letras), romance de 2014. É ou não é um portfólio literário de respeito, hein?!

Principais livros de Orhan Pamuk

A partir dessas avaliações individuais (título a título), conseguimos agora apresentar um panorama completo da literatura pamukiana. Além de comentarmos as trajetórias pessoal e profissional do autor, vamos discutir hoje as características de seus principais livros e esmiuçar seu estilo narrativo. Afinal de contas, o que marca o trabalho ficcional de Orhan Pamuk para ele ter se tornado um dos principais escritores de sua geração? A resposta dessa questão é o norte desse post do Desafio Literário.


Para começo de conversa, o portfólio literário de Pamuk tem vinte livros. Desses títulos, dez são romances: “Cevdet Bey ve Oğullar” (sem tradução para o português), “A Casa do Silêncio”, “O Castelo Branco”, “O Livro Negro” (Companhia das Letras) – em Portugal, esse título foi lançado com o nome de “Os Jardins da Memória” (Editorial Presença) –, “A Vida Nova”, “Meu Nome é Vermelho”, “Neve”, “O Museu da Inocência” (Companhia das Letras), “Uma Sensação Estranha” e “Kırmızı Saçlı Kadın” (ainda não publicado em português). Na Turquia, seu maior sucesso editorial foi “A Vida Nova”, que se tornou a ficção de venda mais rápida da história. No cenário internacional, o principal destaque vai para “Meu Nome é Vermelho”, considerado um clássico da literatura contemporânea e um best-seller nos quatro cantos do planeta.


Por sua vez, as obras não ficcionais de Orhan Pamuk contemplam dez títulos: “Outras Cores” (Companhia das Letras), coletânea de crônicas, entrevistas e discursos (além do acréscimo de um conto), “Istambul – Memória e Cidade”, “A Maleta do Meu Pai” (Companhia das Letras), discursos do autor em cerimônias de premiação, “Manzaradan Parçalar: Hayat, Sokaklar, Edebiyat” (não traduzido para o nosso idioma), coletânea de crônicas sobre Istambul, passagens autobiográficas do escritor e ensaios sobre a literatura, “O Romancista Ingênuo e o Sentimental”, “Şeylerin Masumiyeti” (ainda sem edição em português), coletânea de crônicas, ensaios fotográficos e catálogo dos objetos colecionados pelo autor, “Resimli İstanbul” (não publicado em nosso idioma), livro de memórias, “Hatıraların Masumiyeti” (sem tradução para o português), rascunho e ensaios literários, “Balkon” (não publicado por aqui), ensaio fotográfico, e “Orange” (sem tradução para o português), outro ensaio fotográfico.


De modo geral, até a conquista do Prêmio Nobel, Orhan Pamuk priorizava a produção ficcional (sete romances contra apenas duas obras não ficcionais). Após 2006, tivemos uma inversão no tipo de lançamento promovido pelo autor turco. Com o crescimento do interesse do público pela vida e pela carreira de Pamuk, por sua visão sobre a literatura, por sua relação com a cidade natal, Istambul, e pelas particularidades da história e da identidade cultural da Turquia, as publicações não ficcionais prosperaram (oito livros de memórias, crônicas e ensaios versus três romances). Além da produção literária, é legal contar que Pamuk escreveu algumas peças teatrais, principalmente nas décadas de 1970 e 1980, e roteiros cinematográficos, principalmente nos anos 1990.

Orhan Pamuk

Orhan Pamuk nasceu na noite de 7 de junho de 1952 em um pequeno hospital particular de Moda, bairro no lado asiático de Istambul. Os pais do futuro escritor eram Gündüz Pamuk e Seküre Pamuk, jovem casal integrante de uma das famílias mais ricas da Turquia. Os Pamuk não eram religiosos e possuíam hábitos ocidentalizados. Quando Orhan veio ao mundo, seus pais já tinham um menino, Sevket.


A parte inicial da infância de Orhan Pamuk foi passada no Edifício Pamuk, palacete de cinco andares na Av. Tesvikiye, no bairro de Nişantaşı, em Istambul. Ali morava toda a família do garoto: os pais, o irmão, a avó, os tios e os primos. Ao melhor estilo otomano, cada andar do prédio era a residência de um ramo do clã. Na cobertura, por exemplo, vivia a avó paterna de Orhan, a matriarca dos Pamuk (a mãe de Gündüz). O quarto andar era a morada de Gündüz, Seküre e seus dois filhos. No terceiro andar, residiam o irmão de Gündüz (tio de Orhan), sua esposa e seus filhos. Nos andares abaixo, viviam os demais tios, primos e sobrinhos de Gündüz Pamuk.


A riqueza dos Pamuk foi construída nas décadas de 1920 e 1930, nos primeiros anos da República da Turquia (antes de 1923, o país euroasiático era um sultanato). Advindo do interior, o avô paterno de Orhan Pamuk foi morar em Istambul ao lado da jovem esposa e se lançou em vários empreendimentos industriais na maior cidade da nação (que deixara de ser a capital turca, posto conferido à Ancara após a Proclamação da República). Com excelente tino comercial, ele conseguiu conquistar uma fortuna incalculável que se propagava por várias grandes empresas e por dezenas e dezenas de imóveis em Istambul.


A trajetória de sucesso da família sofreu um sério abalo quando o avô de Orhan morreu precocemente aos cinquenta anos. Sua herança foi repartida com a viúva e com os dois filhos. Se o comando familiar e doméstico do clã ficou nas mãos da avó de Orhan (que liderava a dinâmica no Edifício Pamuk como se fosse uma rainha), a administração dos negócios ficou sob a supervisão do pai e do tio de Orhan, então jovens mauricinhos. A partir daí, começou a derrotada financeira dos Pamuk (alguém aí pensou na expressão “pai rico, filho pobre”?!).


Gündüz Pamuk e seu irmão provaram-se péssimos empresários. Acho que o uso da palavra péssimo (e empresários), nesse caso, seria um elogio para a atuação da dupla. Eles conseguiram torrar quase toda a fortuna deixada pelo pai em menos de vinte anos. Cada iniciativa dos irmãos tinha como resultado um prejuízo enorme. Assim, quando Orhan Pamuk nasceu, sua família ainda tinha um elevado padrão de vida (o avô do futuro romancista tinha morrido há pouco tempo). Se o clã não estava mais entre os mais ricos da Turquia (Gündüz e seu irmão foram mesmo rápidos em dilapidar o patrimônio paterno), pelo menos seus integrantes tinham dinheiro e propriedades para esbanjar. Porém, quando o menino chegou aos dez anos de idade, os Pamuk já podiam ser vistos como pertencentes à classe média de Istambul. E ao chegar à maioridade, Orhan viu seus pais passarem por graves necessidades financeiras.

Literatura de Orhan Pamuk

Os problemas financeiros não foram as únicas complicações que Orhan Pamuk vivenciou dentro de casa. O casamento de Gündüz e Seküre nunca foi harmonioso. Além de gastar irresponsavelmente a herança paterna, Gündüz Pamuk era um pai extremamente ausente e um marido pouco confiável. Charmoso e bon vivant, ele sumia de casa por vários meses, vivia na balada e sempre estava acompanhado por uma amante diferente à tira colo. Não por acaso, Seküre vivia em pé de guerra com o esposo. No meio do conflito conjugal dos pais, Orhan e Sevket tentavam sobreviver como podiam. Ao invés de unir os dois irmãos, o clima bélico em casa os tornou rivais. Eles disputavam o amor materno e a atenção do pai (quando esse, obviamente, lembrava de retornar para o lar).


A segunda parte da infância de Orhan Pamuk (após os nove anos) e sua juventude foi marcada por várias mudanças de residência. Expulsos do Edifício Pamuk pela avó que já não aguentava as irresponsabilidades do filho, Gündüz, Seküre e os meninos tiveram que achar outro lugar para viver. Depois de alguma perambulação por Cihangir, eles fixaram residência em Besiktas (Cihangir e Besiktas são bairros populares de Istambul). Para Orhan, esse período foi traumático porque ele chegou a viver por alguns meses na casa dos tios, em Cihangir. O garoto nunca entendeu o motivo de ter vivido longe dos pais e do irmão. Em sua visão, ele fora inexplicavelmente expulso de casa e renegado pelos pais.


Desde os sete anos, Orhan Pamuk mostrou-se apaixonado pelos desenhos e pela pintura. O passatempo preferido do menino tímido e introspectivo era desenhar e colorir. Ele fazia retratos de pessoas conhecidas e reconstruía os cenários de sua cidade natal nas telas. Esse amor pela arte pictórica foi crescendo, crescendo e crescendo ao ponto de todos os familiares e amigos acreditarem que Orhan seria um pintor profissional quando se torna-se adulto. Na adolescência e juventude, ele usou por vários anos um imóvel abandonado em Cihangir como seu ateliê.


Entretanto, aos 22 anos, Orhan Pamuk surpreendeu a todos ao decidir mudar radicalmente de vida. Em 1974, ele abandonou a faculdade de Arquitetura, que já estava quase concluindo, e largou definitivamente os trabalhos no ateliê. Uma frustração amorosa foi a responsável por levar o jovem a questionar sua rotina e suas pretensões profissionais. A partir dali ele não queria mais ser pintor e optou inexplicavelmente por ser escritor. Até então, o rapaz jamais escrevera algo mais sério e estava muito longe de ser um leitor assíduo (daí a surpresa dos amigos e familiares mais próximos com sua decisão).

Orhan Pamuk

Para recuperar o tempo perdido, Orhan passou a ler vorazmente os principais títulos da literatura turca e da literatura do ocidente. Para melhorar suas habilidades na escrita, também ingressou no curso de Jornalismo. Para desespero da mãe que queria ver o filho empregado e ajudando nas despesas da casa, Orhan Pamuk passava os dias lendo e escrevendo sem qualquer preocupação financeira. Arranjar trabalho não fazia parte de seus planos. O mergulho nos livros (leitura e produção) foi sua rotina dos 22 aos 28 anos. Mesmo depois de formado em Jornalismo pela Universidade Técnica de Istambul, ele nunca trabalhou na área. Na verdade, Orhan Pamuk nunca teve outro emprego a não ser escritor.


O primeiro romance do autor, “Cevdet Bey ve Oğullar”, foi produzido nessa época, entre 1974 e 1980. A narrativa histórica tinha uma pegada naturalista e flertava com algumas passagens biográficas da família Pamuk. Uma vez finalizada sua obra de estreia, Orhan começou a procurar uma editora para publicá-la. Sem confiar no material do jovem escritor, as editoras recusaram insistentemente os originais do livro por dois anos. Apenas em 1982, quando Orhan Pamuk já era um trintão e estava casado com Aylin Turegen, “Cevdet Bey ve Oğullar” chegou às livrarias turcas. A repercussão da crítica foi excelente, apesar das vendas nas livrarias terem sido tímidas. A obra conquistou o Prêmio de Romance Orhan Kemal de 1983, um dos mais tradicionais da literatura turca.


“Cevdet Bey ve Oğullar” é um romance histórico ambientado na transição do fim do Império Turco-otomano e o início da República da Turquia (não por acaso, a época de progresso do avô paterno do escritor). O enredo do livro começa nas primeiras décadas do século XX e tem como foco uma rica família de Nişantaşı, bairro de Istambul. Através dos dramas das três gerações dos Cevdet, os leitores acompanham as transformações sociais, econômicas e políticas da maior cidade turca e do país de modo geral. Fica evidente os elementos biográficos (ou seriam autobiográficos?!) dessa história – a família Cevdet tem muito dos Pamuk.

Livro A Casa do Silêncio de Orhan Pamuk

Empolgado com a repercussão crítica do livro inicial, Orhan Pamuk continuou desenvolvendo tramas ficcionais nos anos seguintes. Dominando um pouco mais o ofício da escrita criativa e conhecendo melhor a dinâmica do mercado editorial, o escritor conseguiu lançar o segundo romance já no ano seguinte. Escrito entre 1980 e 1983, “A Casa do Silêncio” é um romance histórico narrado por cinco personagens. Essa obra possui uma ambientação noir e uma pegada alegórica, ainda com fortes influências naturalistas. Diferentemente do título anterior, “A Casa do Silêncio”, além de rapidamente ganhar os elogios da crítica turca, caiu no gosto dos leitores locais. Esse livro mostra os dramas de três gerações dos Darvinoglu, uma família turca que precisa se equilibrar entre as tradições de seu povo e a modernidade trazida pela internacionalização do país (hábitos, valores e religião tradicional, islã, versus hábitos, valores e secularismo, estilo de vida ocidental).


Enquanto narra os problemas familiares, os dissabores financeiros, as agonias amorosas e os sonhos pessoais de suas personagens, Orhan Pamuk apresenta simultaneamente em “A Casa do Silêncio” o cenário político-social de seu país (as brigas políticas, os golpes militares, as guerras internas e externas e as perseguições político-ideológicas). No cerne do conflito está a promulgação de um regime de governo laico (algo que a população islamita não aceita tranquilamente).


Vale a pena lembrar que a Turquia é uma exceção entre as nações mulçumanas. Ao invés de ser um estado religioso, o país é uma democracia secular (a única entre os países majoritariamente muçulmanos). Essa característica expõe uma fratura da sociedade local: há quem defenda os hábitos, a cultura, o estilo de vida e as leis islâmicas (conforme as tradições do Império Otomano) e há quem opte pelos hábitos, a cultura, o estilo de vida e os valores ocidentais (conforme pregado pela República Turca e inspirado pelos países do Ocidente). Não por acaso, essa contradição insolúvel é o que causa as brigas e as confusões entre os Darvinoglu.


As principais características de “A Casa do Silêncio” são: a polifonia de vozes narrativas (são cinco narradores distintos); a falta de um conflito único e mais evidente (cada protagonista está mergulhado em problemas particulares); a forte crítica social (a Turquia é um país degenerado); a preocupação do autor em reconstruir a trajetória histórica, política, social e religiosa de sua nação (os elementos da trama macro afetam diretamente os elementos do enredo micro); a forte intertextualidade cultural (literária, cinematográfica, musical, filosófica e científica); o intenso diálogo com a metalinguagem literária (as questões da produção textual estão inseridas no interior dessa narrativa ficcional); a ambientação sombria e pesada de influência naturalista (a violência latente, os preconceitos de vários tipos, as desigualdades sociais, as intrigas políticas, a iminência de golpes militares, as questões religiosas mal resolvidas e os conflitos familiares); e o confronto entre a visão de mundo moderna (sociedade secular e ocidentalizada) e a visão de mundo tradicional (sociedade religiosa/islamita e asiática).


“A Casa do Silêncio” conquistou alguns prêmios em âmbito nacional. O principal deles foi o Prêmio Madarali de Romance de 1984. Na década de 1990, quando foi traduzido para outros idiomas, essa segunda publicação de Pamuk também angariou prêmios na Europa. Se “Cevdet Bey ve Oğullar” mostrou aos turcos que Orhan Pamuk era um bom escritor, “A Casa do Silêncio” indicou que ele também conseguiria agradar aos leitores e obter boas vendagens nas livrarias.

Livro O Castelo Branco de Orhan Pamuk

“O Castelo Branco”, seu terceiro romance (outra narrativa histórica!), foi o responsável por iniciar a carreira internacional de Pamuk. Publicada em 1985, essa obra se tornou um grande sucesso no exterior à medida que foi sendo traduzida para outros idiomas. A versão francesa é, por exemplo, do final dos anos 1980 e a inglesa é do início dos anos 1990. Com “O Castelo Branco”, Orhan Pamuk ganhou seus primeiros prêmios internacionais. O principal deles foi o Prêmio Independent de Ficção Estrangeira de 1990, conquistado na Inglaterra. De certa maneira, esse título abriu as portas do mercado editorial mundial para a literatura de Pamuk.


O que ajudou a “O Castelo Branco” angariar muitos elogios das críticas europeia e norte-americana foi a mudança de estilo narrativo do autor. Em contraponto à pegada naturalista de “Cevdet Bey ve Oğullar” e “A Casa do Silêncio”, Orhan Pamuk trouxe uma proposta mais moderna a “O Castelo Branco”. Se o conteúdo continuava flertando diretamente com a história da Turquia e os dramas religiosos da nação euroasiática, o estilo da narrativa do terceiro romance pamukiano estava mais próximo daquele praticado no exterior. A partir desse novo receituário (conteúdo local em formato universal), Pamuk construiu o caminho de uma trajetória ficcional sólida e bem-sucedida que traria maiores frutos nas décadas seguintes.


“O Castelo Branco” é narrado por duas personagens: Faruk Darvinoglu, um dos protagonistas do título anterior de Orhan Pamuk, é o responsável pelo relato da introdução da obra; e o navegante veneziano que foi preso pela esquadra turca e enviado como escravo para Istambul (ele não tem seu nome revelado em nenhum momento do livro) é quem narra os onze capítulos desse romance. A maior parte da trama se passa no século XVII e apresenta os dramas do tal veneziano, um homem erudito com grande conhecimento científico e astrológico. Por causa de suas competências intelectuais, ele se torna um escravo de luxo na capital do Império Turco-otomano, alvo da ambição de cientistas, paxás e até do sultão local.


As principais características de “O Castelo Branco” são: o mergulho mais intenso na intertextualidade e na metalinguagem literária (além da introdução ser assinada por uma personagem ficcional, a dedicatória do livro é feita para Nilgün Darvinoglu, uma das protagonistas do romance anterior de Pamuk); a narrativa tem muito humor (primeiro livro de Pamuk com esse componente); a estrutura narrativa é mais simples, com menos personagens, ambientes e situações (essa obra parece mais uma novela do que um romance); o uso de muitas passagens extraídas de outras obras literárias (intertextualidade que gerou as primeiras críticas ao trabalho de Pamuk – ele foi acusado de plagiar o texto de outros autores); o aparecimento de um grande conjunto de elementos inverossímeis nessa trama (que um leitor mais experiente dificilmente engole); um ritmo narrativo ainda muito lento (capaz de tirar a paciência dos leitores mais ansiosos); e a existência de vários trechos muito sumarizados (que poderiam ter sido transformados em cenas).


Ou seja, temos aqui um livro realmente mais interessante do ponto de vista formal. Porém, é possível notar, em “O Castelo Branco”, alguns problemas de natureza narrativa. Se por um lado Orhan Pamuk evoluiu muito como escritor desde o título de estreia, essa obra mostrava o quanto ele ainda precisava melhorar para chegar ao patamar dos melhores romancistas internacionais. O escritor turco sabia disso e os anos seguintes foram fundamentais para o seu desenvolvimento artístico e o alcance da maturidade profissional.


O que contribuiu diretamente para o enriquecimento da literatura de Pamuk foram os anos vividos no exterior. Em 1985, o escritor turco se mudou para Nova York para acompanhar a esposa. Aylin Turegen cursou a Universidade de Columbia até 1988. Nesse período, o casal morou nos Estados Unidos e Orhan Pamuk aproveitou para estudar a literatura norte-americana. Enquanto lia as principais obras da América do Norte, ele também escreveu seu quarto romance, “O Livro Negro”. Em Portugal, vale a menção, o título desse romance é outro: “Os Jardins da Memória” (Editorial Presença).


Publicado em 1990, quando o autor já havia retornado com a esposa para Istambul, “O Livro Negro” inaugurou a fase dourada da carreira de Pamuk. Essa obra é ambientada na Istambul do presente e se utiliza de episódios autobiográficos. O enredo de “O Livro Negro” aborda os dramas de Galip, um advogado que é abandonado subitamente pela mulher. Para descobrir para onde ela foi, o protagonista do romance embarca em um estudo sobre o crescimento e o progresso de sua cidade e em uma análise histórica sobre seu país.


Em uma trama com reviravoltas narrativas e com mais inovações estéticas, “O Livro Negro” iniciou a etapa pós-moderna da ficção pamukiana: além de questionar aspectos da identidade turca (entre eles a dicotomia entre os valores religiosos e o estilo de vida laico), Orhan Pamuk apresentou inflexões existencialistas (aí sim uma novidade em relação ao que vinha sendo praticado nos outros romances do autor). O sucesso desse título foi estrondoso. Na Turquia, esse best-seller transformou Pamuk em um escritor conhecido nacionalmente.


Juntamente com a fama, vieram novas polêmicas. As interpretações históricas de Orhan Pamuk começaram a gerar alguns descontentamentos entre os conterrâneos mais radicais do romancista. É bom lembrar que na Turquia, falar do genocídio dos armênios na época da Primeira Guerra Mundial e da perseguição aos curdos ao longo do século XX são assuntos explosivos.

Livro A Vida Nova de Orhan Pamuk

Em meio ao sucesso de “O Livro Negro”, nasceu, em 1991, Rüya Pamuk, a única filha do casal Orhan Pamuk e Aylin Turegen. Pelo visto, a chegada da filha trouxe muita sorte para o escritor. Seu romance seguinte, “A Vida Nova”, é considerado o livro com a comercialização mais rápida da história do mercado editorial turco. Publicado em 1994, esse título bateu todos os recordes de vendas e se tornou uma febre nas livrarias da Turquia. Paradoxalmente, o quinto romance de Pamuk foi execrado pela crítica literária em seu país (seria reflexo das polêmicas de “O Livro Negro”, hein?!). Se os leitores adoraram o thriller existencialistas de Orhan Pamuk, os críticos turcos o definiram como uma trama incompreensível. Para eles, este romance não possuía uma narrativa lógica nem palatável.


Com o êxito comercial de “A Vida Nova”, que é até hoje um dos títulos ficcionais mais comercializados na história da Turquia, Pamuk ganhou o status de personalidade pop e midiática em sua terra natal. Se antes ele era apenas um escritor popular (o que não era pouca coisa!), depois de “A Vida Nova” ele virou uma referência cultural em seu país, o tipo de personalidade conhecida nas ruas até mesmo pelas pessoas que não leram suas obras. No aspecto financeiro, essa publicação também mudou o patamar de vida do autor – em outras palavras, ele encheu o bolso de grana.


Esse romance é narrado por Osman, um jovem universitário de 22 anos. Após ler um livro com poderes mágicos (obra também chamada de “A Vida Nova” – olha a metalinguagem literária aí gente!), ele inicia uma longa e aleatória viagem pelas estradas da Turquia em busca de um sentido racional para sua vida. Nessa longa peregrinação, ele também procura por Janan, a moça por quem está apaixonado. Em um enredo com forte pegada filosófica e com ares de aventura policial, Osman mergulha em múltiplos planos existencialistas (pouca doideira é bobagem em se tratando dessa trama!).


Realmente, “A Vida Nova” não é das leituras mais fáceis. Porém, as inovações estéticas e as maluquices narrativas trazidas por Orhan Pamuk são capazes de empolgar os leitores mais exigentes e que não têm medo de enredos desafiantes e com múltiplas interpretações. Confesso que gostei muito desse livro (antes, aperte bem o cinto, tome uma dose de coragem e boa sorte na viagem!).


As principais características de “A Vida Nova” são: a trama dialoga com vários gêneros narrativos (romance policial, thriller fantástico, drama sentimental, aventura política e road story existencialista); a narrativa tem múltiplas interpretações (cada leitor poderá ter uma leitura distinta dessa publicação); o enredo caminha por vários planos diferentes (realidade versus ficção, plano concreto versus plano espiritual, cotidiano sob o islã versus dia a dia mais ocidental, capitalismo versus sistema econômico tradicional da Turquia/Império Otomano, existência atual versus múltiplas realidades possíveis e nova geração versus velha geração); há forte pegada filosófica nesse texto (debate existencialista sobre partida, missão de vida, paz, amor, morte, nascimento, tempo, peso na consciência etc.); intensa metalinguagem literária (livro dentro do livro); o ritmo narrativo varia bastante (a primeira metade do livro é mais lenta, descritiva enquanto a segunda metade é mais veloz, voltada para a ação); temos um mergulho profundo no fluxo de consciência do narrador (flerte inclusive com os sonhos do protagonista); a ambientação oscila entre a fantasia onírica e a brutalidade da vida nua e crua; o humor é do tipo negro; e há forte intertextualidade literária e cinematográfica.

Livro Meu Nome é Vermelho de Orhan Pamuk

Quatro anos depois de “A Vida Nova”, Orhan Pamuk publicou sua obra-prima, “Meu Nome é Vermelho”. Traduzido para mais de 60 idiomas, o sexto romance de Pamuk mistura narrativa histórica, aventura policial, thriller filosófico, drama sentimental e suspense fantástico. Lançado na Turquia em 1998, “Meu Nome é Vermelho” ganhou vários prêmios internacionais. As principais honrarias foram o Prêmio de Melhor Livro Estrangeiro de 2002 (de melhor romance traduzido para o francês), o Prêmio Grinzane Cavour de 2002 (melhor romance adaptado para o italiano) e o Prêmio Literário Internacional de Dublin de 2003 (melhor romance traduzido para o inglês).


O prestígio de Orhan Pamuk cresceu consideravelmente após o sucesso de crítica e de público de “Meu Nome é Vermelho”. Antes dessa publicação, Pamuk já era visto no exterior como um dos principais nomes da literatura turca contemporânea. Depois desse livro ter se tornado um best-seller mundial, ele se consolidou como uma das estrelas de primeira grandeza da literatura mundial. Não é errado pensar que esse romance foi decisivo para Pamuk ganhar, em 2006, o Prêmio Nobel de Literatura. Ele até poderia ter conquistado a principal honraria da literatura mundial sem “Meu Nome é Vermelho”, mas com certeza o prêmio teria demorado mais alguns anos para ser dado.


Ambientado na Istambul do Império Turco-otomano no final do século XVI, o enredo de “Meu Nome é Vermelho” gira em torno do assassinato de Elegante, um dos miniaturistas do ateliê do Tio Efêndi. Os principais suspeitos de ter praticado o crime são os três colegas do artista: Cegonha, Oliva e Borboleta. Sem saber a quem recorrer, Tio Efêndi escreve para Negro, o sobrinho que há doze anos não aparecia na capital do sultanato. Ele quer que o jovem descubra a identidade do assassino de seu funcionário. Atendendo ao pedido do Tio Efêndi, Negro retorna para Istambul e promove uma investigação. O problema do rapaz é que ele é apaixonado pela prima Shekure, a filha do Tio Efêndi. Enquanto precisa lidar com os perigos do trabalho investigativo (afinal, quem teria matado Elegante?), Negro se vê angustiado pelos velhos dilemas do coração.


“Meu Nome é Vermelho” é um romance histórico delicioso. Chamam nossa atenção nessa obra as seguintes questões: os múltiplos narradores da trama (são doze narradores diferentes que se revezam nesse relato – eu disse DOZE!!!); o alto grau de suspense (como romance policial, essa história é impecável); a presença de alguns componentes fantásticos (se até então a fantasia dos livros de Pamuk estavam mais na natureza onírica e existencialista, aqui temos um diálogo mais direto entre os dois planos espirituais: vida e morte); a mistura de gêneros narrativos distintos (mescla de romance policial, narrativa histórica, drama sentimental, coletânea de contos clássicos, thriller político, suspense noir e aventura fantástica); romance com duplo conflito (o assassinato de Elegante e a intriga amorosa de Negro e Shekure); a interligação da história principal às questões religiosas mal resolvidas; a forte intertextualidade literária e pictórica; a presença de metalinguagem artístico-literária (livro dentro do livro); a pegada filosófica está voltada mais para as questões de natureza artístico-cultural do que para as reflexões existencialistas; a inserção de várias pequenas histórias (contos) dentro da história maior (romance); o excelente contexto histórico, cultural e político da Turquia do século XVI; o ritmo narrativo é muito mais veloz (se comparado ao das obras anteriores de Pamuk); a ambientação tem o estilo noir; e o humor é leve e inteligente, mas com pitadas generosas de humor negro.


Sem dúvida nenhuma, “Meu Nome é Vermelho” é uma obra-prima da literatura turca e da literatura contemporânea. Esse título merece estar nas listas das melhores ficções do século XX. Ainda no final da década de 1990, Orhan Pamuk lançou seu primeiro título não ficcional: “Outras Cores”. Nessa coletânea de crônicas, ensaios, entrevistas e discursos publicada em 1999, o autor turco fala de seus métodos de trabalho, de sua visão sobre a literatura e de alguns aspectos de sua trajetória de vida.

Livro Neve de Orhan Pamuk

Em 2001, Orhan Pamuk se separou de Aylin Turegen. Era o fim do matrimônio de duas décadas. No ano seguinte, o escritor turco lançou seu sétimo romance, “Neve”. Esta narrativa é apontada pelo próprio autor como seu título mais político (e, consequentemente, mais polêmico também). No cerne da trama temos um retrato alegórico da instabilidade política e social da Turquia ao longo da segunda metade do século XX. Usando a interminável discussão sobre a adoção ou não do Islamismo como código de ética pela população turca, os militares realizaram vários golpes de estado. Assim, ao tomarem o poder, as Forças Armadas da Turquia evitaram a atuação mais forte dos fundamentalistas islâmicos. Esse é o pano de fundo do romance.


“Neve” escancara as divisões políticas e religiosas da Turquia. Orhan Pamuk aproveita e coloca o dedo nas feridas nacionais de um jeito que ainda não tinha realizado até então em suas tramas ficcionais. O resultado é um texto profundamente controverso. O livro apresenta episódios sensíveis da história turca, como o genocídio armênio e a perseguição aos curdos. Não à toa, o romancista foi novamente hostilizado em seu país. Escrito entre abril de 1999 e dezembro de 2001, esse livro ganhou vários prêmios internacionais. Os principais foram os franceses Prix Medicis de Literatura Estrangeira de 2005 e Prix Méditeranée de Literatura Estrangeira de 2006.


Ambientado em Kars, povoado montanhoso da Anatólia Oriental, em um rigoroso inverno, o enredo de “Neve” apresenta os dramas de Kerim Alakusoglu, um poeta turco de 42 anos que estava exilado na Alemanha. Depois de viver no exterior por doze anos, Ka, como o artista é mais conhecido, retornou para sua terra natal e foi enviado para Kars. A justificativa oficial é que ele viajou para Anatólia Oriental como jornalista. Por essa perspectiva, seu trabalho consiste em cobrir a eleição municipal e investigar uma série de suicídios femininos para um jornal de Istambul. Porém, o poeta foi para Kars por outro motivo: conquistar o coração de Ipek Hanim, uma ex-colega de faculdade. Na Alemanha, Ka descobriu que Ipek tinha se separado do marido e, portanto, estava solteira. Na visão dele, aquela é a sua chance de engatar um relacionamento com a moça.


O problema do protagonista é que a viagem coincide com um dos momentos mais conturbados de Kars. A cidade pobre e interiorana é um caldeirão multifacetado que está prestes a explodir. Ali convivem, de maneira nem um pouco harmônica, os fundamentalistas islâmicos, os nacionalistas curdos, os guerrilheiros comunistas, os militares de extrema-direita, os capitalistas com visão democrata e os indivíduos que querem governos seculares e um estilo de vida mais ocidental. Para cada uma dessas diferentes ramificações sociais, a presença de um artista de fama nacional é uma poderosa arma ideológica. Assim, sem querer, Ka acaba atirado ao cerne da instabilidade política da pequena localidade.


As principais características de “Neve” são: o narrador do livro é um romancista chamado Orhan, o que confere certa mistura entre realidade e ficção; a narrativa se parece a um documentário jornalístico pois mistura muitas passagens reais e personagens históricas da Turquia; a presença de um livro dentro de outro livro (metalinguagem literária); a mescla de vários gêneros narrativos (aventura policial, thriller político, saga histórica, drama sentimental, biografia artística, enredo com engajamento social, suspense de espionagem, ficção existencialista e narrativa fantástica); a presença de pequenas narrativas (contos) dentro do enredo principal (romance); a trama possui conotação de alegoria política (cada personagem representa algum estrato social da Turquia); o protagonista é um homem melancólico, solitário, confuso e com o coração partido; alguns elementos narrativos têm forte simbologia filosófico-existencialista; a ambientação é pesada, com muita violência e perigo iminente; e a história da Turquia não apenas serve de pano de fundo para a trama ficcional como é quase um protagonista do romance.


Como narrativa histórico-alegórica, “Neve” é uma obra impecável. Não é surpresa nenhuma encontrarmos leitores que prefiram esse romance aos anteriores de Orhan Pamuk. Se “A Vida Nova” e “Meu Nome é Vermelho” possuem enredos mais saborosos e personagens mais carismáticas, “Neve” consegue conversar mais intimamente com os desafios da identidade dos cidadãos turcos da atualidade. A força desse livro reside justamente desse elemento.

Livro Istambul – Memória e Cidade de Orhan Pamuk

Um ano depois do lançamento de “Neve”, Orhan Pamuk publicou sua principal obra de memórias. “Istambul – Memória e Cidade” é na verdade mais do que uma simples autobiografia. Esse título, o segundo não ficcional do autor, reúne uma coletânea de memórias, crônicas, ensaios e fotografias de Pamuk sobre sua trajetória de vida (do nascimento ao momento em que decidiu se tornar escritor), sua relação com Istambul, a história de seu país e passagens biográficas de escritores, pintores e jornalistas que o influenciaram e/ou que ajudaram a construir a visão atual de sua cidade natal.


Dessa forma, temos praticamente dois personagens principais nesse livro: o jovem Orhan Pamuk (até os 22 anos) e a mítica cidade de Istambul (pelo olhar de quem nasceu, cresceu e vive ali). Percorrer as páginas de “Istambul – Memória e Cidade” é desvendar as relações pessoais e familiares do escritor turco e, simultaneamente, percorrer com atenção as ruas e a história de seu município natal. Assim, Pamuk e sua literatura são frutos das características e da identidade cultural da metrópole euroasiática. E Istambul, por sua vez, representa as mais relevantes contradições, angústias e decadência da República da Turquia.


Curiosamente, “Istambul – Memória e Cidade” foi a última publicação de Orhan Pamuk antes da conquista do Prêmio Nobel de Literatura. Antes de viver a maior alegria de sua carreira, o escritor turco estava à beira da depressão. É importante destacar que, nos primeiros anos do século XXI, Pamuk ainda estava abalado com o divórcio, com a morte recente do pai (Gündüz Pamuk faleceu em 2002) e com a intensificação da pressão pública por sua visão política (como já foi dito, “Neve” rendeu uma nova onda de críticas ao autor).


Nesse cenário, não é surpresa nenhuma notar que “Istambul – Memória e Cidade”, livro lançado em 2003, tenha o predomínio de relatos melancólicos e uma visão profundamente negativa dos familiares e da cidade natal do escritor. O texto dessa obra é reflexo direto do estado de espírito de Orhan Pamuk naquele momento. Não por acaso, o autor disse que produzir essa obra foi uma experiência catártica – rememorar sua trajetória e narrar o passado de sua cidade o ajudaram a superar a fase difícil que vivia.


“Istambul – Memória e Cidade” possui uma narrativa híbrida. Por suas páginas, conseguimos assistir, ao mesmo tempo, a quatro temas: a biografia de Orhan Pamuk; as características de Istambul e a atmosfera cultural de seus habitantes; a história turca e os reflexos da ocidentalização da nação islâmica; e os principais aspectos da produção ficcional pamukiana.

Livro O Romancista Ingênuo e o Sentimental de Orhan Pamuk

Após a conquista do Nobel de Literatura, Orhan Pamuk mudou um pouco sua linha de trabalho. Depois de 2006, ele lançou mais títulos não ficcionais do que romances. Essa alteração é até natural se pensarmos que o interesse do público internacional se voltou agora para as opiniões, as visões de mundo, o passado e a linha literária do escritor renomado. Nessa nova fase da carreira de Pamuk, suas principais obras não ficcionais são: “A Maleta do Meu Pai”, coletânea publicada em 2007 com os discursos mais célebres do autor nas cerimônias de premiação literária, e “O Romancista Ingênuo e o Sentimental”, ensaio literário lançado em 2010 em que o escritor turco apresenta sua concepção sobre a arte do romance (produção e consumo) e os aspectos mais relevantes de seu estilo narrativo.


Principal ensaio literário de Orhan Pamuk, “O Romancista Ingênuo e o Sentimental” reúne os textos das seis palestras ministradas pelo autor na Universidade de Harvard em 2009. Aos 57 anos, Pamuk foi o destaque daquela edição da Conferência Charles Eliot Norton, evento anual da prestigiosa instituição de ensino norte-americano que convida uma grande personalidade mundial para discorrer sobre um tema determinado. O turco ficou encarregado de comentar em suas palestras questões como o trabalho de autor ficcional, o papel do romance como gênero narrativo predominante no Ocidente e os desafios de um artista de um país periférico em conquistar o reconhecimento mundial.


Para construir sua explanação teórica, Orhan Pamuk utilizou-se dos ensaios clássicos de Friedrich Schiller (“Sobre a Poesia Ingênua e Sentimental” de 1795/1796), de E. M. Forster (“Aspectos do Romance” de 1927) e de György Lukács (“A Teoria do Romance” de 1914/1915). No momento de recorrer aos elementos práticos, o escritor turco citou algumas de suas obras ficcionais e vários títulos de outros autores: Liev Tolstói, Franz Kafka, Stendhal, Dante Alighieri, Thomas Mann, Goethe, Honoré de Balzac, Samuel Beckett, Miguel de Cervantes, Gustave Flaubert, Daniel Defoe, Herman Melville, Marcel Proust, Umberto Eco, Michel Foucault, Jean-Jacques Rousseau, Jorge Luis Borges, Jane Austen, Homero, William Shakespeare, Fiódor Dostoiévski, Charles Dickens, Jean-Paul Sartre, Vladimir Nabokov, Aristóteles, James Joyce, Horácio, Virginia Woolf, Émile Zola, Henry James, Victor Hugo, Gabriel García Márquez, Milan Kundera, J. M. Coetzee, Peter Handke, Italo Calvino, Philip K. Dick, Patricia Highsmith, John Le Carré, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa e mais um montão de renomados escritores.


De maneira sucinta, “O Romancista Ingênuo e o Sentimental” apresenta as diferenças do escritor mais espontâneo (ingênuo) – produz seus textos de forma intuitiva, quase sem pensar a respeito, usa as inspirações e as percepções da realidade e tem uma visão mais romântica da literatura – e o escritor mais reflexivo (sentimental) – desenvolve seus textos avaliando os efeitos dos métodos narrativos empregados, age de um jeito analítico, escreve preocupando-se mais com a recepção dos leitores e possuiu visão mais moderna da literatura.


Ao longo desse livro, Pamuk lista as nove operações que a mente executa durante a leitura dos romances e classifica os tipos de leitores (em ingênuos e sentimentais). Ele também aborda: a relação entre realidade e ficção (linha muitas vezes tênue); os três principais elementos da narrativa romanesca (personagens, trama e tempo narrativo); as particularidades de sua produção ficcional (pintura através de palavras); e o conceito do centro do romance (tema que o escritor aprofunda em seu texto e que os leitores precisam descobrir pois ele está oculto no meio da trama).


“O Romancista Ingênuo e o Sentimental” é um ensaio espetacular e uma leitura obrigatória para quem trabalha em qualquer ramo da literatura, principalmente com o fazer literário, a teoria literária e a crítica literária.


De 2006 para cá, Orhan Pamuk publicou três romances: “O Museu da Inocência”, título de 2008, “Uma Sensação Estranha”, obra de 2014, e “Kırmızı Saçlı Kadın”, narrativa longa de 2016. Nota-se que esses livros são projetos editoriais mais ambiciosos (demandaram mais tempo de desenvolvimento) e parrudos (maior número de páginas). A primeira questão fica evidente em “O Museu da Inocência”, texto que levou dez anos de planejamento e outros quatro de execução. No caso de “Uma Sensação Estranha”, ele possui quase 600 páginas (é o título ficcional mais extenso de Pamuk).


Em “O Museu da Inocência”, assistimos aos dramas sentimentais de Kemal. Na Istambul da década de 1970, ele tem uma rotina aparentemente perfeita: integra uma das famílias mais ricas do país, está prestes a se casar com uma noiva tida como maravilhosa pela alta sociedade local e possui uma tranquila situação financeira. O que mais ele quer da vida, hein?! Os problemas de Kemal começam quando ele se envolve sexualmente com uma prima mais jovem. Apaixonado pela bela moça, o protagonista não quer mais largá-la. Ao mesmo tempo, ele não quer desistir do casamento. A partir das desilusões e dos traumas amorosos de Kemal, Pamuk apresenta os embates da Turquia moderna (vida tradicional e valores islamitas versus rotina moderna e valores ocidentais) e a tumultuada história de seu país. Para muitos críticos literários, esse seria o melhor livro de Orhan Pamuk.

Livro Uma Sensação Estranha de Orhan Pamuk

Para mim, sua melhor obra é “Uma Sensação Estranha”. O nono romance pamukiano foi escrito entre 2008 e 2014 e é efetivamente o primeiro trabalho ficcional produzido inteiramente depois da conquista do Nobel. O que notamos nessa narrativa é que Pamuk não mudou muita coisa em seu estilo nem em suas temáticas. Entretanto, ao invés de cair na mesmice (um risco que um autor que se repete sistematicamente corre!), o escritor turco potencializou ainda mais suas tramas. Com maiores reviravoltas no enredo, ritmos narrativos mais céleres, personagens mais complexas e histórias ainda mais ricas e impactantes, temos aqui uma literatura muito mais saborosa.


Se você leu “O Romancista Ingênuo e o Sentimental”, irá entender a minha associação. Nos últimos anos, Orhan Pamuk se tornou um escritor mais ingênuo (aquele que usa as técnicas intuitivamente e canaliza suas inspirações livremente) e menos sentimental (aquele que se preocupa com os métodos empregados e vive atento a como seus leitores irão receber suas obras). A beleza dessa segunda fase de sua literatura reside justamente desse despertar: temos aqui um artista mais livre, leve e solto, totalmente ciente da força de suas narrativas.


Romance de formação (e, simultaneamente, romance histórico), “Uma Sensação Estranha” expõe os dramas sentimentais, familiares, financeiros e profissionais de Mevlut Karatas, um pobre vendedor de boza – um tipo de bebida alcóolica tradicional da Turquia que remonta a época do Império Otomano. Acompanhamos a vida do protagonista dos 12 anos (quando ele se muda do pequeno povoado natal da Anatólia Oriental para Istambul) até os 55 anos (fase de maturidade, quando enfim compreende alguns episódios fatídicos de sua jornada). Ou seja, o enredo dessa obra vai de setembro de 1968 até outubro de 2012.


O evento que marcou a trajetória de Mevlut foi uma confusão ocorrida em junho de 1982. Aos 25 anos de idade, o herói da narrativa organizou o rapto da moça pela qual estava apaixonado. Contudo, no meio da escuridão da noite, ele cometeu um “pequeno” deslize: retirou da casa do sogro a mulher errada. Ao invés de fugir ao lado da irmã mais jovem e bonita, ele apanhou a irmã mais velha e feia. Esse equívoco nada sutil afetou sua vida dali para frente.


Enquanto acompanhamos as aventuras (ou seriam desventuras?!) de Mevlut Karatas, também podemos verificar, ao longo das páginas de “Uma Sensação Estranha”, as transformações urbanas de Istambul e o desenrolar de eventos históricos nacionais e internacionais ao longo do século XX e durante a primeira década do século XXI. No cerne do conflito, temos a disputa entre a população mais moderna, europeia e secular e a população tradicional, asiática e islâmica da Turquia.


As características de “Uma Sensação Estranha” são: o caráter duplo da trama – particular (os dramas de Mevlut, um pobre coitado que só se dá mal!) e coletivo (a trajetória dos principais familiares de Mevlut, o crescimento de Istambul e os acontecimentos históricos da Turquia); a presença de elementos com forte carga simbólica (a boza, o gecekondu, a Escola Secundária Masculina de Atatürk e os cães, por exemplo); as múltiplas vozes narrativas (são 16 narradores diferentes); o começo espetacular (os dois primeiros capítulos/partes desse livro são simplesmente esplendidos!); a ambientação é extremamente sombria (pobreza, violência, injustiças, golpes, avareza, brigas, opressão, instabilidade política, intolerância religiosa, extermínio étnico e preconceitos); o ritmo narrativo é muito veloz (se comparado ao histórico dos romances de Pamuk); a trama é recheada de reviravoltas; e o desfecho é maravilhoso (um dos melhores que já li).


É muito legal notar que Orhan Pamuk não se acomodou após a consagração advinda do recebimento do Nobel. Pelo contrário: seus romances parecem ainda melhores. E não custa nada lembrar que o escritor turco tem apenas 68 anos (idade baixa para um autor com tal envergadura). Ou seja, ele tem, na teoria, no mínimo mais 15 anos de muita literatura pela frente. Confesso que estou ansioso para conhecer seus novos trabalhos ficcionais.


Além dos prêmios literários, Pamuk conquistou o reconhecimento do público e da mídia. Em 2005, ele foi considerado um dos cem intelectuais mais relevantes do mundo pela revista Prospect. Em 2006, foi eleito pela revista Time como uma das cem personalidades mais influentes do mundo. Atualmente, Orhan Pamuk é integrante honorário da Academia Americana de Artes e Letras e da Academia Chiese de Ciências Sociais. Nada mal para alguém que nunca trabalhou em outra profissão que não fosse a de escritor e que até os 32 anos não tinha publicado nenhum título.


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