O Desafio Literário apresenta o estudo dos livros, do estilo narrativo e dos mistérios de Elena Ferrante, a principal romancista italiana da atualidade.
Nos últimos dois meses, o Bonas Histórias investigou o trabalho ficcional de Elena Ferrante, a principal representante da moderna literatura italiana e autora best-seller mundial. Ferrante é a segunda figura analisada, em 2021, no Desafio Literário, coluna do blog dedicada ao estudo estilístico dos mais renomados escritores nacionais e internacionais de ontem e de hoje. Quem acompanha com frequência nossos estudos se lembrará que, em abril e maio desse ano, comentamos em detalhes a literatura de Orhan Pamuk, o mais notável autor turco da atualidade e vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2006. E essa sétima temporada do Desafio Literário ainda reserva para outubro e novembro um mergulho nas obras de Julio Cortázar, um dos principais representantes da ficção argentina de todos os tempos, da literatura em língua espanhola no século XX e do gênero das narrativas curtas em nível global.
Elena Ferrante se tornou mundialmente conhecida com a Série Napolitana, saga literária que narra os dramas de duas amigas nascidas e criadas em Nápoles. A trama vai da infância à velhice das protagonistas. Ao longo dos quatro romances da coleção de Ferrante, os leitores acompanham a relação antagônica da dupla de personagens: ao mesmo tempo em que se admiram, se gostam e se ajudam mutuamente, as amigas napolitanas não escondem a forte inveja que possuem uma da outra. Nasceu, assim, uma das maiores rivalidades femininas da literatura contemporânea. Um dos maiores sucessos recentes do mercado editorial internacional, os livros da Tetralogia Napolitana venderam mais de 16 milhões de exemplares nos quatro cantos do planeta. Não à toa, sua autora se transformou em uma espécie de pop star das letras, por mais que refute (e fuja desesperadamente) (d)esse status.
Curiosamente, não sabemos ao certo a identidade verdadeira da romancista italiana. Elena Ferrante é um pseudônimo. Em meio às incertezas sobre quem estaria por trás do nome mais badalado da literatura mundial da atualidade, multiplicam-se apostas e hipóteses. Mais à frente vamos tratar dessa questão com mais profundidade – confesso adorar o mistério que envolve a real personalidade de Ferrante, assunto que nos últimos anos ganhou pitadas de romance policial e thriller investigativo. Por ora, é preciso dizer que a decisão de se manter sob total anonimato surgiu há quase trinta anos, quando a escritora lançou seu primeiro livro. Vale a pena dizer que ela jamais apareceu em público e só concede entrevistas por escrito. Isso é, quando aceita interagir com o público, com a imprensa e com os profissionais do setor editorial, o que é algo bem raro. Portanto, se você achava que J. D. Salinger, autor de “O Apanhador no Campo de Centeio” (Editora do Autor), e Rubem Fonseca, autor de “Lúcia McCartney” (Agir), “Feliz Ano Novo” (Nova Fronteira) e “Agosto” (Companhia das Letras), eram figuras reclusas, Ferrante criou uma modalidade ainda mais elevada de sumiço da cena pública.
Como é possível uma artista de fama internacional ficar oculta por tanto tempo? No início da carreira, Elena Ferrante usava cartas para se comunicar. Agora ela utiliza o e-mail. Quem intermedeia a interação de Ferrante com jornalistas, cineastas e críticos literários é Sandra Ozzola e Sandro Ferri, a dupla de editores da Edizioni e/o, editora italiana que publica os livros da misteriosa escritora. Sandra, Sandro e Eva, a filha do casal (Sandra e Sandro são casados), são os únicos que sabem a verdadeira identidade da romancista napolitana. E até agora, o trio tem mantido a promessa de não revelar o que sabem.
É inegável que a incógnita sobre quem seria Elena Ferrante (seria uma mulher, um homem, um casal de escritores ou um time entrosado de autores?!) tem ajudado a movimentar o interesse do público e da imprensa. Páginas e páginas têm sido escritas em jornais, revistas, blogs e portais de notícias debatendo o tema. Ao justificar suas decisões, Ferrante alega que ao não aparecer em eventos, ela consegue focar no trabalho que mais gosta: a produção literária. Além disso, ela afirma que o anonimato permite escrever com mais liberdade, se apropriando de passagens autobiográficas, de cenários familiares e de pessoas de seu entorno. O que a escritora não devia ter imaginado é que sua reclusão/sumiço alimentasse tanto a curiosidade dos leitores e da mídia e potencializasse o apelo por sua literatura. Querendo ou não, o mistério é uma ferramenta de Marketing, uma espécie de Marketing às avessas ou anti-marketing – não querer aparecer gera tanto burburinho quanto aparições ocasionais.
A excelência da prosa de Elena Ferrante não fica restrita aos títulos da Série Napolitana e muito menos ao segredo sobre sua real identidade. A escritora italiana tem um portfólio literário extremamente original e contundente, de enorme qualidade narrativa. Seus romances (ao todo, ela já publicou 11 livros: oito narrativas longas, uma obra infantojuvenil e duas coletâneas não ficcionais) possuem marcas estilísticas e temáticas bem acentuadas, o que confere charme e beleza aos seus textos ficcionais. Não é errado enxergarmos Ferrante como uma das melhores e mais criativas romancistas da atualidade.
A maior evidência da força dramática das histórias de Elena Ferrante está no recente interesse de cineastas e de produtores televisivos. Eles querem adaptar as páginas dos livros da italiana para as telas. Ferrante se tornou, nos últimos anos, a autora queridinha da HBO e da Netflix. Os dois gigantes do streaming compraram os direitos para transformar os principais títulos da romancista em séries de televisão. “My Brilliant Friend”, a série da HBO baseada nos livros da Tetralogia Napolitana, já é um sucesso mundial e está em sua terceira temporada. E rotineiramente ouvem-se boatos envolvendo o interesse dos estúdios hollywoodianos em levar as narrativas napolitanas para o cinema. Não será surpresa nenhuma se logo mais tivermos um longa-metragem norte-americano encenando as tramas da autora best-seller.
Provando viver uma ótima fase na carreira, Elena Ferrante é apontada frequentemente como uma das artistas mais destacadas do planeta. Em 2016, a revista Time a classificou como uma das cem personalidades mais influentes do mundo. Logo depois, a revista Foreign Policy, também dos Estados Unidos, foi pelo mesmo caminho em sua tradicional lista dos influenciadores internacionais. Para os italianos, Ferrante é a melhor autora nacional de sua geração. Para os estrangeiros, ela é a escritora de língua italiana que mais se destacou desde Umberto Eco e Italo Calvino.
Para construir o panorama completo da literatura de Elena Ferrante (nosso objetivo do post de hoje do Bonas Histórias e a grande meta do Desafio Literário nesse bimestre), analisamos prévia e individualmente, ao longo de julho e agosto, oito livros da romancista : “Um Amor Incômodo” (Intrínseca), publicação de estreia de 1992, “Dias de Abandono” (Biblioteca Azul), romance de 2002, “Frantumaglia – Os Caminhos de Uma Escritora” (Intrínseca), coletânea de entrevistas, cartas, depoimentos e ensaios lançada originalmente em 2003, “A Amiga Genial” (Biblioteca Azul), obra de 2011 que inaugurou a Série Napolitana, “História do Novo Sobrenome” (Biblioteca Azul), romance de 2012 que dá sequência a famosa saga literária da autora italiana, “História de Quem Foge e de Quem Fica” (Biblioteca Azul), publicação de 2013 e terceiro volume da Tetralogia Napolitana, “História da Menina Perdida” (Biblioteca Azul), narrativa longa de 2014 que fecha a Série Napolitana, e (ufa!) “A Vida Mentirosa dos Adultos” (Intrínseca), o mais recente romance de Ferrante que foi publicado em 2019.
Vale a pena salientar que em agosto do ano passado já havíamos comentado, na coluna Livros – Crítica Literária, “A Filha Perdida” (Intrínseca), a terceira ficção de Elena Ferrante. Essa obra foi lançada em 2006. Ou seja, em nosso estudo sobre a best-seller italiana, contemplamos nove dos dez livros de Ferrante que foram publicados em português no Brasil. A única obra que ficou de fora do nosso radar analítico foi “Uma Noite na Praia” (Intrínseca), primeira publicação infantojuvenil de Ferrante. Esse título foi lançado em 2007. Para quem ficou incomodado(a) com essa exclusão, prometemos analisar essa obra nos próximos meses no Bonas Histórias. Só não incluímos “Uma Noite na Praia” no Desafio Literário de Elena Ferrante por uma questão meramente formal – nossa análise permite apenas oito livros de cada autor(a) estudado(a), além dos que já tinham sido comentados anteriormente.
Apesar de não sabermos a verdadeira identidade da romancista analisada, é possível afirmar algumas coisas a respeito de sua biografia. As fontes para essas afirmações são as entrevistas que ela concedeu nas últimas três décadas e o conteúdo de suas obras não ficcionais, raros momentos em que a escritora comenta episódios pessoais.
Elena Ferrante nasceu em Nápoles, onde passou a infância, a adolescência e parte da juventude. Já adulta e casada, deixou as terras napolitanas e foi viver no exterior. Morou também em cidades do Norte da Itália. Atualmente, ela só retorna para Nápoles de férias ou quando busca inspiração para novas tramas, sempre ambientadas ali. Filha mais velha de uma costureira, Ferrante tem duas irmãs. Ela começou a escrever na adolescência e se graduou em Letras Clássicas. Além de romancista, Elena trabalha/trabalhou como tradutora, professora e pesquisadora acadêmica. Segundo suas afirmações, ela escreve muito mais do que publica – só aceita lançar um livro quando tem certeza da relevância e da qualidade do texto produzido. Não sabemos se a autora é ainda casada, mas ela diz ter sido mãe.
Em relação à data de nascimento de Elena Ferrante, não há um consenso. Dependendo da crença sobre quem seria realmente a autora, afirma-se algo diferente – pega-se o ano de nascimento do(a) possível escritor(a) por trás do pseudônimo e atribuísse à Ferrante. A única certeza é que ela é de Nápoles ou de um pequeno povoado muito próximo. Quem acredita que Ferrante seja Anita Raja, tradutora que trabalha para a Edizioni e/o, diz que a best-seller nasceu em 1953. Já os adeptos da teoria de que Elena Ferrante seja Domenico Starnone, um romancista conceituado na Itália (e marido de Anita Raja), dizem que a autora da Série Napolitana é de 1943. Por sua vez, os adeptos da suposição de que a personalidade concreta por trás da famosa escritora seja Goffredo Fofi, um importante crítico literário italiano, apontam 1937 como a data de nascimento de Ferrante. Diante de tantas incertezas, o que podemos garantir efetivamente é que estamos falando de um(a) autor(a) que tem atualmente entre 68 e 84 anos.
Já que entramos na especulação sobre a verdadeira identidade de Elena Ferrante (impossível não tratar desse tema quando falamos de sua literatura), façamos de uma vez por todas uma breve retrospectiva da polêmica questão. Afinal, quem seria Ferrante?!
Na primeira metade da década de 2000, período em que os livros iniciais da autora napolitana despontavam principalmente na Itália e em alguns países europeus, acreditava-se que Elena Ferrante fosse Goffredo Fofi ou Fabrizia Ramondino. No caso das suspeitas envolvendo Fofi, conceituado crítico literário umbro, o que despertava as desconfianças do público era que ele conseguia fazer várias entrevistas com a best-seller. Lembremos que Ferrante raramente dava abertura para jornalistas, críticos, acadêmicos e leitores. Ou seja, havia algo de muito estranho na intensa comunicação dos dois. Porém, Goffredo Fofi sempre negou ser a romancista. Em suas alegações, ele diz que a abertura que a escritora lhe dava devia-se única e exclusivamente ao destacado papel que ele tinha como acadêmico e estudioso da literatura. Acredito em Fofi. Para mim, a chance de ele ser Elena Ferrante é zero.
Já as desconfianças envolvendo Ramondino, uma das principais escritoras italianas de sua geração, estavam relacionadas ao fato de ela ser natural de Nápoles e ter trilhado uma bem-sucedida trajetória na literatura comercial, com trabalhos de destaque em vários gêneros textuais. Assim, seria natural que por trás da qualidade absurda da escrita ficcional de Elena Ferrante estivesse a mais gabaritada escritora napolitana conhecida do grande público. Contudo, essa suspeita terminou com a morte, em 2008, de Fabrizia Ramondino. Ela não pode ser Ferrante ou possui habilidades de comunicação entre os planos espirituais.
Para esclarecer de uma vez por todas o mistério que crescia à medida que os romances de Elena Ferrante eram publicados e faziam sucesso na Itália, utilizou-se até um software de identificação de estilo narrativo. A ferramenta computacional já tinha sido usada na Holanda com êxito – ela revelou, a partir de comparações textuais, que o misterioso Marek van der Jagt era na verdade o pseudônimo do escritor Arnon Grunberg. Com base no sucesso recente do software, os italianos realizaram em 2005 o mesmo expediente investigativo. E o resultado apontou que Ferrante seria Domenico Starnone, escritor, jornalista e roteirista nascido em Saviano, um pequeno povoado perto de Nápoles. Como Starnone não admitiu nem negou as suspeitas de que seria ele o autor por trás do famoso pseudônimo feminino, vigorou por uma década a impressão de que seria ele o responsável pela produção literária de Elena Ferrante.
A partir daí, a maior novidade envolvendo a busca pela identidade de Ferrante aconteceu em outubro de 2016. Em um artigo bombástico escrito na New York Review of Books e reproduzido em seguida na imprensa europeia, o jornalista italiano Claudio Gatti afirmou ter descoberto o maior segredo da literatura italiana do século XXI. Inconformado que ninguém sabia quem era Elena Ferrante, naquele momento um sucesso mundial com a publicação da Série Napolitana, Gatti fez uma investigação particular digna dos melhores romances policiais ou dos mais eletrizantes filmes de detetive de Hollywood.
O resultado de seu trabalho indicou que a best-seller italiana era (rufam os tambores!!!) Anita Raja, uma tradutora napolitana de 63 anos. Filha de um napolitano e de uma alemã, Anita morou até a juventude em sua cidade natal e depois deixou Nápoles definitivamente. Para corroborar com a tese de Gatti, o sobrenome Raja tem origem grega. E, voilà, a narradora-protagonista da Série Napolitana se chamava Elena Greco. Bingo! O mais incrível dessa história é que a tradutora é esposa de Domenico Starnone (sim, aquele mesmo escritor que o software que brinca de detetive literário indicou ser Ferrante em 2005). Eita mundo pequeno esse, meu Deus!
Como Claudio Gatti chegou a essa conclusão? Ele pegou (não pergunte como, por favor!) os balanços financeiros da Edizioni e/o, a editora italiana que publica as obras de Elena Ferrante, e analisou os pagamentos que ela estava fazendo. Vale a menção que Edizioni e/o não é uma grande editora italiana. Seus maiores sucessos (e talvez seus únicos best-sellers em 2016) eram os romances de Ferrante. E para a surpresa do jornalista, as informações financeiras da companhia indicavam que as maiores movimentações bancárias na época, exatamente o período em que a Itália vivia a febre da Tetralogia Napolitana, eram direcionadas para a conta de Anita Raja. Até então, Raja era vista como uma simples tradutora da editora. Porém, o que ela estava recebendo (uma pequena fortuna) não era compatível com a remuneração de alguém que fazia apenas serviços de tradução. Aquele ordenado era compatível mais ao pagamento dos direitos autorais de Elena Ferrante (bingo!) do que ao pagamento de uma simples funcionária administrativa.
A notícia se espalhou rapidamente pelos Estados Unidos e pela Itália e rodou o mundo. Paradoxalmente, ao invés do público e da imprensa elogiarem a atuação investigativa de Gatti, o jornalista, que mora em Nova York onde é correspondente da Il Sole 24 Ore e escreve para o The New York Times, foi alvo de intensas críticas. Afinal, quem ele pensa que é para pegar e divulgar na mídia dados financeiros de empresas privadas e de pessoas comuns. De certa forma, Ferrante e a Edizioni e/o foram tratados como se fossem criminosos ou estivessem realizando atividades ilícitas? Além disso, se Elena Ferrante queria se manter em total anonimato, com qual direito Claudio Gatti, como jornalista, podia expô-la sem piedade como fez, hein?
Por mais precisos que tenham sido os apontamentos de Gatti, seu artigo na New York Review of Books não decretou, acredite se quiser, a solução definitiva para a questão que ronda a imaginação do público leitor. Afinal, Anita Raja não negou nem confirmou a teoria do correspondente italiano nos Estados Unidos. Ela simplesmente continuou levando sua vida normalmente, sem nenhuma exposição e sem alterar sua rotina, que é para lá de convencional. Para completar, a reportagem de Claudio Gatti acabou confirmando a impressão daqueles que apontavam Domenico Starnone como sendo o verdadeiro escritor por trás da literatura de Elena Ferrante. Segundo os que acreditam nessa versão, a editora efetuava o pagamento na conta de Raja visando a remuneração do marido dela.
Então, quem seria Ferrante: Anita Raja ou Domenico Starnone?! Nos últimos anos, cresceu a hipótese de que a best-seller napolitana seria na verdade o pseudônimo do casal. Nessa nova frente de especulação, Raja e Starnone trabalhariam juntos e estampariam na capa de seus livros o nome Elena Ferrante. Para temperar ainda mais o clima de mistério e de mistura entre realidade e ficção, o casal de literatos forneceria informações sobre Ferrante como se a escritora fosse uma personagem ficcional deles. Incrível essa nova versão. Minha sensação é que quanto mais se investiga, menos respostas temos para o que é hoje considerado o santo graal da literatura contemporânea – o enigma envolvendo a identidade de Elena Ferrante.
O fato é que, por mais que se especule, ainda não sabemos efetivamente quem é o(a) responsável pelos textos de Ferrante. Cada leitor parece ter sua própria opinião. Eu mesmo achava, no comecinho do mistério, que Ferrante fosse (não ria, por favor) Sandra Ozzola, a editora da Edizioni e/o. Depois, acreditei nos indicativos que apontavam para Anita Raja. Atualmente, eu cogito a participação de Domenico Starnone nos textos da esposa. Como falei, são todas suposições. Enquanto o(a/os) autor(a/es) verdadeiro(a/s) não vier(em) à público e decretar(em) que é(são) ele(a/s) o(a/s) autor(a/es) do pseudônimo de Elena Ferrante, não teremos certeza nenhuma.
Esclarecido (ou não!) o mistério sobre a identidade da principal escritora italiana da atualidade, entremos no que verdadeiramente interessa para um blog literário: a produção ficcional de Ferrante propriamente dita. Em suma, esse post se prontificou a fazer uma análise estilística do trabalho da autora e até agora só ficou debatendo as fofocas dos bastidores do mercado editorial. Prometo elevar o nível desse texto daqui para frente.
A obra de estreia de Elena Ferrante é “Um Amor Incômodo” (Intrínseca). Nesse thriller psicológico com ambientação noir, acompanhamos o relato perturbador de uma jovem napolitana. Delia, a narradora da trama, vive sozinha em Roma e trabalha como ilustradora de histórias em quadrinhos. Ela possui graves problemas de relacionamento com a família. Para se ter uma ideia do que isso representa, a personagem principal odeia a mãe e o pai e quer distância total das irmãs. Em poucas linhas de leitura é possível sacar que a moça tem sérios distúrbios emocionais. Como consequência, Delia precisou abandonar a terra natal e cortar relações com a maioria dos parentes. Só assim ela consegue viver minimamente tranquila na capital italiana.
O passado complicado de Delia retorna como uma assombração quando Amalia, sua mãe de 63 anos, morre afogada em uma praia de Spaccavento. A notícia da tragédia é recebida pela filha com uma mistura de alívio e de indiferença. Precisando cuidar do velório, do enterro e dos tramites burocráticos da herança, a narradora-protagonista retorna por alguns dias a Nápoles. Aí Delia terá que encarar os pesadelos da infância e da juventude que tanto a atormentam até hoje. Nessa viagem, ela mergulhará em segredos íntimos e nas desavenças da família. De certa forma, Delia desnuda o passado misterioso de Amalia e o seu próprio.
Publicado na Itália em 1992, “Um Amor Incômodo” agradou ao público e à crítica e teve uma boa trajetória comercial nas livrarias do país, principalmente se considerarmos que sua autora era uma debutante e uma figura até então desconhecida. O romance conquistou o Prêmio Procida-Isola di Arturo-Elsa Morante e o Prêmio Oplonti d'Argento e foi finalista do Prêmio Strega e do Prêmio Artemisia. Em 1995, essa primeira obra ficcional de Ferrante foi adaptada para as telonas pelo diretor Mario Martone. A produção cinematográfica de “Um Amor Incômodo” (L´amore Molesto: 1995) foi estrelada por Anna Bonaiuto, Angela Luce, Gianni Cajafa, Peppe Lanzetta e Giovanni Viglietti e exibida no circuito comercial italiano e em festivais de cinema da Europa. O longa-metragem ajudou a popularizar o livro e o nome de Elena Ferrante na Itália.
É interessante notar que desde a primeira publicação, Ferrante já demonstrava um estilo marcante e apresentava as características narrativas e temáticas que a consagrariam mais tarde com a Série Napolitana. Afinal, temos em “Um Amor Incômodo”: suspense psicológico envolvendo dramas familiares; narradora feminina pouco confiável; protagonista exercendo o papel de anti-heroína; trama encenada em Nápoles (a cidade é quase uma personagem da narrativa); ambientação noir; cenário marcado por muita violência, pobreza, escuridão, barulho, perigo, calor, superlotação, mentiras e mal cheiro; a violência, no caso, é de todo tipo: psicológica, sexual, sexista, física, moral e social; famílias desestruturadas; personagem principal com péssimo relacionamento com os parentes (principalmente com pais e irmãos); sexo como uma obrigação feminina e uma concessão da mulher ao homem; romance com excelentes páginas iniciais e um desfecho espetacular; figuras do tipo redonda e que geram uma sensação de desconforto e incômodo nos leitores mais sensíveis; e acúmulo de pessoas que flertam com a vilania.
“Um Amor Incômodo” é um livro curtinho. Ele tem apenas 176 páginas. No início de carreira, Elena Ferrante desenvolvia romances com jeitão de novelas – tramas com uma única linha narrativa, poucas personagens em cena, conflitos simples e obras com pouco mais de uma centena de páginas. Essas características são encontradas em seus três primeiros romances (“Um Amor Incômodo”, “Dias de Abandono” e “A Filha Perdida”) e em seu título infantojuvenil (“Uma Noite na Praia”). Em termos práticos, podemos ver essa fase como a primeira da literatura de Ferrante. Esse período abrange 15 anos e vai de 1992 a 2007. Nesse estágio, a escritora napolitana produziu quatro livros ficcionais.
O que torna a leitura de “Um Amor Incômodo” tão interessante é a pegada sombria dos relatos de Delia. O universo psicológico perturbador, o passado nebuloso, as relações familiares deterioradas e aridez sentimental da narradora são elementos espinhosos e profundamente chocantes. Delia é a versão italiana, contemporânea e feminina dos protagonistas de "Memórias do Subsolo" (Editora 34), novela de Fiódor Dostoiévski que inaugurou o Existencialismo na literatura russa, e de "Primeiro Amor" (Nova Fronteira), livro de Samuel Beckett que sintetiza o espírito atormentado e pessimista do autor irlandês. Definitivamente, ler Elena Ferrante não é para os leitores mais sensíveis.
É legal notar que a decisão de Ferrante em se manter anônima foi tomada quando “Um Amor Incômodo” conquistou o Prêmio Procida-Isola di Arturo-Elsa Morante de 1992 como melhor romance de estreia. Ao ser convidada para a cerimônia de premiação, a escritora napolitana não quis comparecer ao evento. Ela enviou uma carta para Edizioni e/o reafirmando sua posição de não revelar sua identidade. Sandra Ozzola e Sandro Ferri concordaram. E, assim, ao invés dos organizadores do Prêmio Procida-Isola di Arturo-Elsa Morante ouvirem o discurso da romancista vencedora, eles precisaram ler a carta de agradecimento que Ferrante lhes enviou. Iniciava-se, assim, a tradição de comunicação por escrito da misteriosa autora italiana com o mercado editorial.
O segundo romance de Elena Ferrante só foi publicado dez anos depois de “Um Amor Incômodo”. “Dias de Abandono” (Biblioteca Azul), drama psicológico sobre uma napolitana que surta ao ver o marido sair de casa depois de 15 anos de um casamento harmônico, chegou às livrarias italianas em 2002. A obra encerrou o jejum de uma década sem novidades da escritora. Ferrante se justificou dizendo que durante esse período sem lançamentos havia escrito bastante, mas nada que merecesse ser publicado. Isso até “Dias de Abandono”, claro. Se pensarmos que ele/ela pode ser um(a) autor(a) que também publica com o nome verdadeiro, o mais factual é que tenha deixado os trabalhos de seu pseudônimo de lado ao longo desses anos.
O que sabemos é que “Dias de Abandono” agradou em cheio aos leitores e à crítica literária. Mais uma vez, o trabalho ficcional de Elena Ferrante mostrava grande consistência e enorme qualidade narrativa. A nova obra foi finalista do Prêmio Viareggio, um dos mais tradicionais da Itália, e ganhou edições no exterior, mais precisamente na Europa e nos Estados Unidos. Nesse momento da carreira, a escritora napolitana alcançava o público internacional pela primeira vez. É verdade que Ferrante não era ainda uma artista best-seller, mas já apresentava boas vendas fora do seu país. Até o lançamento de “A Amiga Genial”, esse sim um fenômeno editorial mundial, “Dias de Abandono” foi o título de maior vendagem de Ferrante no exterior.
Assim como aconteceu com “Um Amor Incômodo”, o segundo romance da autora foi adaptado para o cinema três anos depois de seu lançamento nas livrarias. Dessa vez, o diretor do longa-metragem foi Roberto Faenza. Estrelaram a produção cinematográfica de “Dias de Abandono” (Giorni Dell’abbandono: 2005) Margherita Buy, Luca Zingaretti, Goran Bregovic, Alessia Goria, Gea Lionello e Gaia Bermani Amaral. O filme foi exibido no circuito comercial italiano e teve apresentações pontuais em festivais de cinema na Europa.
O enredo da versão literária de “Dias de Abandono” se passa em Turim e é narrado por Olga, uma pacata dona-de-casa napolitana de classe média. Ela está casada há 15 anos com Mario, um bem-sucedido engenheiro, e tem dois filhos pequenos, Gianni e Ilaria. A família é complementada por Otto, um simpático pastor alemão. Ou seja, temos, à princípio, um cenário que lembra muito uma propaganda de margarina – todo mundo feliz, rotinas tranquilas e relacionamentos harmônicos.
A felicidade de Olga e a paz doméstica terminam subitamente em uma tarde de abril, quando Mario, sem jamais ter demonstrado qualquer insatisfação com o matrimônio, comunica que irá abandonar a casa. Ele quer a separação. No início, a notícia não é levada à sério pela esposa. Ela acha que Mario voltará logo. Entretanto, ao notar que aquela é a posição definitiva dele, Olga surta. A loucura dela irá colocar todos à sua volta em risco. Começa, assim, a fase mais aterrorizante das vidas de Gianni, Ilaria e Otto. O trio precisará conviver com uma mulher fora de controle. Olga se torna refém de seu ciúme e da sede doentia de vingança.
Com 184 páginas, “Dias de Abandono” é um livro fininho. O que ele tem em concisão, ele possui em profundidade. Trata-se de um drama genuíno e emocionante, com forte pegada catártica. Acompanhar o surto psicológico-emocional de Olga é uma experiência rica e reveladora. Não à toa, essa história é uma das minhas preferidas de Elena Ferrante.
É verdade que esse romance não é tão original nem tão instigante quanto “Um Amor Incômodo”, apesar de Ferrante ter se utilizado de boa parte do receituário narrativo da obra anterior. Mesmo gostando mais de “Dias de Abandono”, sei reconhecer que o título de estreia de Ferrante tinha elementos ficcionais mais impactantes. Cito, desde já, dois desses aspectos: a narradora-protagonista é mais polêmica (uma legítima anti-heroína) e a ambientação é mais soturna (digna de um romance policial noir) em “Um Amor Incômodo”.
Se Olga é uma mulher normal que acaba enlouquecendo após um trauma conjugal, algo que pode acontecer com qualquer um de nós, Delia é uma psicopata da pior espécie – ela mente, é egoísta e parece não ter sentimentos positivos por nada nem ninguém. É impossível se solidarizar com ela. Por isso mesmo, é uma personagem mais forte e contundente. O que seria da literatura sem os grandes anti-heróis, hein?! Além disso, Nápoles de “Um Amor Incômodo” é um lugar insano e profundamente perigoso, o que combina com o caráter pouco confiável da personagem principal do romance. Já em “Dias de Abandono”, Nápoles aparece pontualmente, apenas nas lembranças de Olga. Ou seja, a cidade do Sul da Itália não é agora um elemento tão importante para o enredo.
O que me fez gostar mais de “Dias de Abandono” foi o fato dessa narrativa ter uma trama mais linear (Olga está à procura de um novo chão para sua vida depois da rejeição de Mario), personagens mais verossímeis (esposa vingativa, marido infiel e filhos perdidos em meio à separação dos pais), um conflito mais carismático (impossível não se indignar com o que acontece na casa da família de protagonistas), uma forte sensação de história de terror (o que se vive naquela residência de Turim causa medo em qualquer um) e uma trama recheada de reviravoltas (e põe reviravoltas nisso!).
Esse segundo romance consolidou o trabalho ficcional de Elena Ferrante. Com o sucesso alcançado tanto na Itália quanto no exterior, a escritora viu que estava no caminho certo. Desde então, ela tem produzido novas narrativas com essa pegada sombria envolvendo personagens femininas polêmicas e com jeitão de anti-heroínas. Repare que nunca mais a autora ficou tanto tempo sem publicar algo novo. Podemos dizer que “Dias de Abandono” serviu como um marco para Ferrante. Foi nesse momento em que ela viu a força de suas tramas e compreendeu que o pseudônimo criado dez anos atrás teria sim uma promissora trajetória literária.
Não por acaso, a terceira publicação de Elena Ferrante foi lançada já no ano seguinte. Em junho de 2003, o público italiano recebia a primeira edição de “Frantumaglia – Os Caminhos de Uma Escritora” (Intrínseca). Esta obra é uma coletânea não ficcional de cartas, e-mails, entrevistas e ensaios de Ferrante. A proposta do livro era permitir que a romancista, que nunca apareceu pessoalmente em público e já começava a despertar grande atenção de leitores e da mídia italiana, pudesse se expor fora dos textos ficcionais. A ideia de publicar esse título partiu de Sandra Ozzola e Sandro Ferri, os editores da Edizioni e/o. Elena aceitou numa boa.
Assim, acompanhamos, em “Frantumaglia”, a correspondência de Ferrante com os editores italianos, a comunicação por escrito com os cineastas que adaptaram seus livros, as discussões literárias envolvendo suas obras, os comentários sobre os títulos e os autores que a influenciaram, as conversas de Elena com jornalistas e críticos literários e a repercussão dos sucessos de seus romances. Há também a apresentação do ponto de vista da napolitana sobre os mais diversos temas: política italiana, feminismo, papel das mulheres na literatura, especificidade da produção ficcional e problemas urbanos de Nápoles. Para completar, a autora ainda deixa escapar alguns fatos de sua biografia, para deleite dos leitores mais curiosos.
Realmente, trata-se de uma coleção textual bastante reveladora. Porém, minha impressão é que boa parte do conteúdo desse livro tem algo de fake. Não sei explicar exatamente minha sensação. Sabe quando há coisas que não se encaixam direito nas engrenagens da história contada? Pois foi esse o meu feeling. Por exemplo, a correspondência de cartas e de e-mails de Elena Ferrante com Sandra Ozzola e Sandro Ferri me soou meio falsa, um tanto inverossímil. E o que dizer, então, do material trocado entre a escritora e os cineastas, hein? Sinceramente, a divulgação desses textos não colou para mim.
Mais tarde, “Frantumaglia” ganhou mais duas edições, a primeira em 2007 e a segunda em 2016. A cada nova publicação, Sandra Ozzola e Sandro Ferri atualizavam o conteúdo do livro com materiais mais recentes de Ferrante – correspondências, entrevistas e ensaios da autora. Dessa forma, a versão mais atual da obra percorre a trajetória literária de Ferrante de 1991, quando “Um Amor Incômodo” estava sendo esboçado, até 2016, quando a Tetralogia Napolitana já havia se tornado um best-seller mundial.
Como resultado prático desse constante acréscimo de conteúdo, “Frantumaglia”, que em 2003 era um título de apenas 100 páginas e com 17 capítulos, tem agora 416 páginas e 43 capítulos. A nova versão do livro está dividida em três blocos: “Parte I: Papéis”, “Parte II: Tésseras” e “Parte III: Cartas”. Enquanto a parte I é relativa ao material original da coletânea não ficcional (textos de 1991 a 2003), a parte II (textos de 2003 a 2007) e a parte III (de 2011 a 2016) abrangem, respectivamente, o conteúdo da segunda e da terceira edições da obra. Vale a pena salientar que “Frantumaglia” só foi publicado no exterior após o sucesso da Série Napolitana. Ou seja, os leitores de fora da Itália (os brasileiros estão nesse grupo) já receberam a tradução da última versão do livro, aquele que saiu em italiano em 2016.
O mais legal de “Frantumaglia – Os Caminhos de Uma Escritora” é poder assistir às opiniões, compreender as visões de mundo e, principalmente, conhecer a trajetória pessoal e literária de Elena Ferrante, algo muitas vezes impossível diante da postura comedida da autora. Além disso, acompanhamos uma autoanálise de altíssimo nível sobre as características das personagens, as dinâmicas das tramas e o estilo narrativo de Ferrante. A romancista napolitana ainda comenta abertamente suas referências literárias e discute os aspectos práticos do fazer literário. Como era esperado, a escritora justifica a decisão de não querer aparecer em público.
Como falei, o principal problema dessa obra é a sensação de falsidade na correspondência de Elena Ferrante. Outra questão negativa é que “Frantumaglia” se torna repetitivo à medida que avançamos às partes II e III. A série de entrevistas concedidas por Ferrante aos jornalistas italianos e estrangeiros acaba girando sempre em torno das mesmas perguntas. E quando os questionamentos são parecidos, as respostas naturalmente tornam-se semelhantes. Em alguns momentos do livro, já sabemos o que a escritora dirá para os seus entrevistadores. Mesmo com esses escorregões, o resultado geral da coletânea ficcional é amplamente positivo.
“Frantumaglia” não é o único livro não ficcional de Ferrante. Em 2019, a romancista publicou em italiano e em inglês “A Invenção Ocasional” (Relógio D´Água), sua primeira coletânea de crônicas. Os textos desse livro foram extraídos da coluna semanal que Ferrante manteve no jornal inglês The Guardian por mais de um ano. “A Invenção Ocasional” possui pouco mais de cinco dezenas de crônicas. Nesses textos, Elena trata de vários temas contemporâneos com o olhar acurado de uma comentarista político-social. Portanto, temos aqui uma Elena Ferrante que assume mais o papel de jornalista do que de autora ficcional.
Se você nunca ouviu falar dessa obra, não se martirize, por favor. Há uma explicação lógica para os leitores brasileiros a desconhecerem. “A Invenção Ocasional” foi lançado apenas em Portugal pela editora lisboeta Relógio D´Água. No Brasil, esse título se mantém inédito. Exatamente por isso, “Frantumaglia – Os Caminhos de Uma Escritora” é a única publicação que o público brasileiro tem para conhecer os detalhes da vida e das obras de Elena Ferrante.
O terceiro romance de Ferrante (e seu quarto livro) é “A Filha Perdida” (Intrínseca). Publicado em 2006, esse thriller psicológico narra as férias de Verão de uma solitária professora de meia-idade. O período tranquilo e isolado no litoral italiano é interrompido pela chegada de uma família napolitana. Barulhentos, vulgares e um tanto esquisitos, os membros do clã sulino causam sensações contraditórias na narradora-protagonista. Ao mesmo tempo que parece odiá-los, a personagem principal se sente atraída por eles de alguma forma. Inicia-se, assim, uma conflituosa e paradoxal relação entre os turistas.
“A Filha Perdida” é apontado por muitos críticos literários como o melhor trabalho de Elena Ferrante até ali. Admito que compartilho dessa opinião. Com o sucesso desse livro, a escritora napolitana se tornou uma das melhores romancistas europeias da atualidade. Afinal, não é possível que um raio caia três vezes no mesmo lugar, né? A qualidade de “Um Amor Incômodo” até poderia ser acidental (já ouviu falar de sorte de principiante?!). A excelência de “Dias de Abandono”, dez anos mais tarde, poderia indicar, por sua vez, uma feliz coincidência (um caso notável de uma autora de sorte!). Agora, quando pela terceira vez Ferrante apresenta um romance notável, isso quer dizer que temos diante da gente uma artista verdadeiramente talentosa e ciente das técnicas literárias empregadas para emocionar os leitores.
O enredo de “A Filha Perdida” se passa durante as primeiras férias de Leda, uma professora universitária de 47 anos que mora em Florença, depois de muito tempo sem descanso. Narrada em primeira pessoa pela própria protagonista, essa trama tem como cenário uma praia turística no Sul da Itália. Leda alugou um apartamento à beira-mar e quer passar o período de férias sozinha. Depois de muitos anos precisando se preocupar diariamente com o marido e as filhas, ela já não tem mais esse tipo de problema. Após o divórcio, a professora viu as filhas já crescidas se mudarem para os Estados Unidos para viver com o pai delas. Sem ninguém por perto para aborrecê-la, Leda quer relaxar e montar o programa de aulas de seu curso na faculdade para o próximo ano letivo.
Entretanto, seus planos sofrem uma considerável mudança de rumo. A chegada de uma família napolitana à praia quebra a calma do lugar. Barulhentos, vulgares, espaçosos, feios e caóticos, os novos visitantes abalam a tranquilidade da professora e dos demais banhistas. Diante da balburdia que a praia se transformou, Leda fixa sua atenção em Nina, uma jovem bonita e elegante daquela família. Ela é a única que não é feia e tem alguma classe. Nina tem uma filha pequena, Elena. Pela beleza e refinamento da moça, nota-se que ela é alguém de fora de Nápoles e que acabou de um jeito ou de outro presa àquela gente vulgar.
Curiosa para saber mais sobre aquela mulher ao mesmo tempo charmosa e misteriosa e sobre sua filhinha, a protagonista inicia uma aproximação aos napolitanos. O que ninguém poderia prever é que aquela amizade fosse precipitar em revelações surpreendentes e inesperadas de lado a lado.
“A Filha Perdida” tem 176 páginas, a mesma extensão de “Um Amor Incômodo” e um pouquinho menos do que “Dias de Abandono”. O que mais gostei nesse romance é que Leda, a narradora-protagonista, é mais parecida a Delia, a personagem central de “Um Amor Incômodo”, do que a Olga, a personagem principal de “Dias de Abandono”. Estamos falando aqui, portanto, de uma anti-heroína clássica que causa repulsão nos leitores. Leda é uma pessoa com sérios distúrbios psicológicos, apresenta condutas questionáveis e possui frieza emocional. É ou não é uma descrição quase que idêntica ao perfil de Delia, hein?
Desde as primeiras páginas de “A Filha Perdida” é possível notar que estamos diante de uma narradora pouco confiável. Seus problemas psicológicos e comportamentais ora são mais sutis ora são mais explícitos. O que não é possível imaginar é que eles sejam tão profundos. Por mais que Leda tente nos convencer do contrário, é inegável que ela seja uma psicopata. Prova maior disso é que a professora de Florença tenta nos convencer do contrário com uma sólida argumentação e, sempre que pode, posando de vítima da situação. Como personagem literária, Leda é incrível, uma das mais polêmicas criações da moderna literatura italiana e, quiçá, da literatura contemporânea.
“A Filha Perdida” tem ainda clima aterrorizante (é praticamente um thriller de terror psicológico), figuras contraditórias, relato passional e profundo em meio a banalidade do cotidiano, várias surpresas na segunda metade do romance, mergulho na mente atormentada da narradora, personagens napolitanas, dramas familiares intensos, texto elegante, sólida construção narrativa e mulheres de grande profundidade dramática. Não é possível um livro ter mais características estilísticas de Elena Ferrante do que esse, né?
Exatamente pelas semelhanças de estilo dessa obra com os dois romances anteriores de Ferrante, a crítica literária italiana começou a dizer que “Um Amor Incômodo”, “Dias de Abandono” e “A Filha Perdida” constituíam uma trilogia. Até um nome foi dado à coletânea: Trilogia do Desamor. Em “Frantumaglia”, Elena Ferrante garantiu que não gostava dessa nomenclatura. Em sua visão, Delia, Olga e Leda não são mulheres sem amor. De qualquer maneira, o título Trilogia do Desamor acabou não pegando no exterior. Internacionalmente, os três primeiros livros de Ferrante são vistos pelo público, pelos editores e pelos críticos como narrativas totalmente independentes uma das outras, apesar das inegáveis afinidades estilísticas.
Um ano depois da publicação de “A Filha Perdida”, Elena Ferrante lançou uma espécie de continuação da trama de Leda, Nina e Elena durante as férias de Verão no litoral italiano. A obra em questão é “Uma Noite na Praia” (Intrínseca). Para ser mais preciso em meu comentário, preciso fazer uma correção aqui. Está errado dizer que esse livro é uma continuação de “A Filha Perdida”. “Uma Noite na Praia” é, na verdade, a mesma trama do romance anterior (ou uma narrativa que se utiliza das mesmas personagens) só que apresentada por um novo ponto de vista (novo foco narrativo). A mudança de narrador faz praticamente surgir um novo drama. Ao invés de Leda, quem conta a história agora é, acredite, Celina. Não sabe quem é Celina? Ela é a boneca de Elena, a filha de Nina. Realmente, esse ponto de vista é mesmo inusitado e extremamente criativo. Ou você já tinha lido uma história contada por uma boneca, hein?
Nessa prosa poética com um texto extremamente elegante, Celina relata a angústia de ter sido abandonada por Elena, até então sua melhor e inseparável amiga. A filha de Nina esqueceu a boneca na areia da praia no dia em que ganhou um cachorrinho de presente. Diante dos atrativos de um bichinho de verdade, a boneca se tornou de repente sem graça para a menina. E a pobre Celina precisa passar a pior noite da sua vida na escuridão fantasmagórica da praia. É ou não é um enredo original?
Além do foco narrativo distinto, a outra diferença marcante em “Uma Noite na Praia” é que ele é um título infantojuvenil. Sim, você leu direito – eu disse infantojuvenil. Trata-se do primeiro e até aqui único livro de Elena Ferrante direcionado às crianças. Você consegue imaginar Ferrante escrevendo dramas familiares aterrorizantes, narrando thrillers psicológicos densos e descrevendo personagens abomináveis para a molecadinha?! Confesso que eu não consigo. Contudo, foi exatamente isso o que ela fez em 2007 com “Uma Noite na Praia”. Incrível essa iniciativa. Se muitos adultos não têm a estrutura emocional nem a maturidade literária para encarar os intrincados suspenses da italiana, será que eles dariam esse tipo de obra para seus filhos lerem? Tenho essa dúvida – apesar de achar que pais que têm crianças que leem Elena Ferrante são muito sortudos!
A primeira década do século XXI terminou com a escritora em alta. Se em 2002 ela ainda precisava provar que tinha fôlego para construir um portfólio literário abrangente e de respeito na Itália, a partir de 2007 Ferrante angariava um público leitor fiel no exterior e a admiração dos críticos literários internacionais. É bem verdade que ela estava ainda longe de ser uma autora best-seller mundial, mas já era uma ficcionista de renome e com um estilo narrativo marcante, além de ter livros premiados e publicados em vários países.
A subida para o degrau mais alto da carreira de romancista, aquele ocupado exclusivamente por escritores que arrastam multidões para as livrarias do mundo todo, só aconteceria na primeira metade dos anos 2010. E o responsável pela febre da literatura de Elena Ferrante atende pelo nome de Série Napolitana, também chamado de Tetralogia Napolitana. Os quatro romances da saga são “A Amiga Genial”, “História do Novo Sobrenome”, “História de Quem Foge e de Quem Fica” e “História da Menina Perdida”. Eles venderam mais de 16 milhões de exemplares nos cinco continentes. A história de Lenu e Lila, as duas amigas nascidas e criadas em Nápoles que se adoram e se invejam na mesma proporção, gerou a maior rivalidade feminina da literatura contemporânea. Os títulos da Série Napolitana foram traduzidos para dezenas de idiomas e ganharam uma bem-sucedida adaptação para a TV. “A Amiga Genial” (My Brilliant Friend), a série televisiva da HBO baseada na narrativa mais famosa de Ferrante, conquistou uma multidão de fãs na Itália e no exterior. O programa tornou a ficção da escritora napolitana ainda mais popular.
Por falar em “My Brilliant Friend”, a produção audiovisual que está atualmente na terceira temporada (a previsão é que tenha quatro) teve a direção de Saverio Costanzo (em 2018 e 2019, nas duas primeiras temporadas) e agora conta com o trabalho do diretor Daniele Luchetti (em 2021 e 2022, nas duas temporadas finais da série). A atração é estrelada por Margherita Mazzucco e Gaia Girace e está sendo filmada na Itália. Para quem possa ter estranhado a interrupção das gravações do seriado em 2020, justamente durante a fase de maior audiência, vale a pena lembrar que no meio do caminho tivemos uma pandemia, tivemos uma pandemia no meio do caminho.
Publicado em outubro de 2011, “A Amiga Genial” (Biblioteca Azul) – voltamos a falar do livro e não do seriado de TV – se tornou uma febre instantânea entre os leitores italianos. O apelo de público chamou a atenção das editoras internacionais e rapidamente o romance ganhou traduções para os principais idiomas. O lançamento de “A Amiga Genial” na Europa e na América do Norte repetiu o êxito tanto nas livrarias quanto entre os críticos literários. Essa obra foi finalista do Prêmio Literário Internacional IMPAC Dublin, um dos mais tradicionais da língua inglesa. Ela também foi indicada pelo jornal britânico The Guardian como o 11º melhor romance da primeira década do século XX. Por sua vez, a Série Napolitana foi apontada pela revista multicultural Vulture dos Estados Unidos como um dos clássicos contemporâneos do século XX.
Quando começou a escrever “A Amiga Genial”, Elena Ferrante imaginou que conseguiria contar a história de Elena Greco (a Lenu) e Rafaella Cerullo (a Lila) em apenas um livro. Essa obra seria volumosa, mas ainda sim seria uma única publicação, pensou a autora. Contudo, as páginas da trama foram se multiplicando, se multiplicando, se multiplicando... E o resultado foi o surgimento não de um romance, mas de uma saga com mais de 1.700 páginas. Diante da nova realidade, coube a Ferrante e a Edizioni e/o a opção de publicar aquela narrativa em quatro títulos. Cada volume da Série Napolitana abrange uma fase da vida de Lenu e Lila.
“A Amiga Genial”, o primeiro livro da Tetralogia Napolitana, apresenta a infância e a adolescência de Elena Greco e Rafaella Cerullo, duas napolitanas nascidas no fim da Segunda Guerra Mundial e que cresceram em meio ao caos político-social da Itália do Pós-Guerra. Essa obra possui também o prólogo da saga. O romance inicia-se justamente nessa parte introdutória.
Na Turim dos dias de hoje, Elena Greco, a narradora da saga, fica sabendo por telefone que sua melhor amiga, Rafaella Cerullo, fugiu de Nápoles sem avisar ninguém. Por mais que Lila sempre ameaçasse desaparecer de casa, Lenu nunca acreditou que a amiga de infância um dia colocasse tal plano em prática. Ainda mais agora, quando ela era uma senhora de idade. Porém, pelas evidências relatadas por Rino, o filho de Rafaella, ela fugiu mesmo. Para tentar explicar o que aquele gesto representava e qual era sua relação com a idosa fujona, Elena Greco se senta na frente do computador e começa a escrever a história de sua vida: da sua vida e da vida de Lila, pois ambas as existências estão umbilicalmente entrelaçadas.
O período da infância de Elena e Rafaella percorre os anos 1950 e se passa no subúrbio napolitano em que as meninas nasceram e cresceram. Nessa fase, as amigas disputam o posto de aluna mais brilhante da escola. Para revolta de Lenu, que se esforça bastante nos estudos, as melhores notas do colégio vão sempre para Lila, que parece não fazer qualquer esforço para se destacar. O empenho de Elena, além de sua bondade e meiguice, faz com que ela seja admirada por colegas, professores, familiares e amigos. Por outro lado, Rafaella é odiada por todo mundo. Apesar de seu brilhantismo, ela é desbocada, arrogante e agressiva, o que gera infinitas confusões por onde passa.
Curiosamente, as incontáveis diferenças entre as duas meninas irão aproximá-las. Se Elena Greco é afável, bondosa, carinhosa, tímida, covarde, inofensiva, responsável, dedicada, obediente, comportada e bonita, Rafaella é arredia, malvada, nervosa, extrovertida, corajosa, violenta, irresponsável, relapsa, desobediente, arruaceira e feia. Lenu e Lila se tornam uma dupla inseparável e sinérgica desde os 6 anos. Mesmo com toda a admiração mútua que sentem uma pela outra, as amigas também alimentam uma forte inveja e uma acirrada competição entre si. É a rivalidade desmedida entre as duas protagonistas o segredo do sucesso da Série Napolitana. Temos aqui um dos mais criativos, polêmicos e fortes relacionamentos femininos da literatura contemporânea.
As únicas semelhanças entre as duas personagens centrais de “A Amiga Genial” são a realidade atroz em que estão inseridas e a pobreza de suas famílias. O bairro no subúrbio de Nápoles em que elas vivem é violento, sujo, feio, barulhento, superpopuloso, machista, injusto, pobre e corrupto. A rotina dos moradores daquela localidade é pautada pelos mandos e desmandos da Camorra, a máfia napolitana que tem mais força e poder do que o governo local.
Ao mesmo tempo em que nasce uma forte amizade entre Lenu e Lila, surge também uma relação baseada na inveja e na competição. Desde muito cedo, Elena Greco não se conforma com o fato de a amiga ser a melhor aluna do colégio, status que ela tanto almeja. Além disso, a narradora-protagonista admira a coragem, a postura altiva, o jeitão desbocado e a liberdade que Rafaella tem, coisas totalmente distantes da personalidade e da realidade de Lenu. Por outro lado, Elena acredita que a amiga tenha inveja de sua beleza. Enquanto Lila é magra, baixinha e não possui nenhum atrativo estético, Lenu é alta, tem um corpo bem definido desde pequena e tem sua beleza admirada pelos garotos. Não é errado ver essa dupla de meninas como a união de figuras totalmente distintas.
A parte do livro relativa à adolescência de Lenu e Lila começa com a conclusão do ensino fundamental. Nessa nova fase das jovens, as protagonistas invertem os papéis completamente. Agora, Elena é quem é a aluna mais destacada de um colégio bacana fora do bairro, mas se torna gorda e feia, para seu desespero. Lila, por sua vez, começa a atrair as atenções masculinas. Após abandonar os estudos, ela passa a trabalhar na sapataria do pai, onde sonha em produzir seus próprios modelos de calçado. A nova condição provoca outras angústias na narradora do romance. Dessa vez, a inveja de Elena vai para a beleza de Lila e seu brilhantismo no trabalho junto ao pai. A sensação é que qualquer coisa que Rafaella Cerullo faça, Lenu irá cobiçar.
É interessante notar que “A Amiga Genial” possui boa parte das características estilísticas de “Um Amor Incômodo”, “Dias de Abandono” e “A Filha Perdida”, as três obras iniciais de Elena Ferrante. Afinal, temos aqui: romance de formação envolvendo uma mulher com problemas de relacionamento; narração em primeira pessoa; thriller psicológico intenso; dramas familiares fortes; narradora-protagonista com tons de anti-heroína e com comportamentos próximos a uma psicopata; personagens redondas; suspense intrigante desde as primeiras páginas; narrativa muito bem amarrada; e ambientação noir em Nápoles, uma cidade caótica, violenta e pobre.
As novidades narrativas de “A Amiga Genial” são: romance histórico (primeira narrativa histórica da autora); trama com maior fôlego (os livros anteriores se pareciam mais com novelas do que com romances); excesso de personagens (por isso, cada volume da série tem no início uma lista de personagens para ajudar o leitor); e ambientação atrelada aos problemas sócio-políticos da Itália da segunda metade do século XX (anteriormente, os dramas das obras de Ferrante eram exclusivamente de ordem pessoal).
Como consequência da união dessas características, Elena Ferrante conseguiu potencializar seu texto ficcional e atingir um patamar ainda mais elevado de excelência literária. Sem dúvida nenhuma, temos em “A Amiga Genial” (e com a Série Napolitana como um todo) uma das narrativas mais impactantes do século XXI. Se eu já era fã de Ferrante, a partir desse romance/saga admito que fiquei maluco maluquinho pelo trabalho da italiana, agora uma das minhas escritoras favoritas.
“A Amiga Genial” possui 336 páginas. Ao mesmo tempo em que é o livro mais extenso de Elena Ferrante até então (tem o dobro do tamanho de “Um Amor Incômodo”, “Dias de Abandono” e “A Filha Perdida”), ele também é a obra com menos páginas da Tetralogia Napolitana (“História do Novo Sobrenome”, “História de Quem Foge e de Quem Fica” e “História da Menina Perdida” tem, cada um, mais de 400 páginas).
Em 2012, a Tetralogia Napolitana ganhou seu segundo título, “História do Novo Sobrenome” (Biblioteca Azul). Nessa obra, Ferrante apresenta a juventude da sua dupla de protagonistas. A trama do novo romance vai de 1960, quando Elena Greco e Rafaella Cerullo têm 16 anos, até o final daquela década, quando as amigas possuem aproximadamente 25 anos e acabam trilhando caminhos totalmente distintos. O que marca a entrada na fase adulta de Lenu e Lila é, respectivamente, os estudos de Elena fora de Nápoles e o casamento de Rafaella com Stefano Carracci, filho de Dom Achille Carracci, o falecido agiota do bairro.
Como Lenu foi morar em Pisa e Lila fica vivendo em Nápoles com o marido, as moças acabam separadas pela primeira vez. Mesmo com a distância geográfica e a falta de uma comunicação frequente, Elena Greco não consegue tirar a amiga de infância da cabeça. A impressão é que a narradora não vê graça em sua vida: as ótimas notas, a admiração dos professores, as novas amizades e os primeiros namorados (Franco Mari e, depois, Pietro Airota) são coisas insignificantes perto do que Rafaella usufrui no bairro suburbano. Não por acaso, essa é a parte da saga em que os relatos se concentram mais na rotina de Lila do que na de Lenu.
Por mais paradoxal que pareça, Elena Greco continua invejando a vida e as conquistas de Rafaella Cerullo. Isso quer dizer, então, que Lila tem um vidão em Nápoles, certo? Não! O casamento de Rafaella desmorona já na Lua de Mel. Ela vive em eterno conflito conjugal com Stefano, o que levará a jovem esposa a ter um relacionamento amoroso fora do casamento. Simultaneamente, a moça sofre os efeitos do machismo napolitano, a pressão da família na hora de comandar os negócios e o assédio dos irmãos Solara, uma espécie de mafiosos locais. Saiba que a rotina de Lila não é nem um pouco maravilhosa em sua cidade natal.
Se Elena inveja tanto a amiga, mesmo com tantas dificuldades que Rafaella passa, isso quer dizer que a vida de Lenu em Pisa não deve ser lá grande coisa, né? Também não! Nessa altura do campeonato, o dia a dia de Elena Greco causa admiração nos amigos e familiares. Ela é invejada por todos pela independência, pela capacidade intelectual, pelo avanço nos estudos e pela liberdade que possui. Se tudo ocorre bem para Lenu e se as coisas vão de mal a pior para Lila, como Elena ainda sente inveja da melhor amiga, hein?! É meu(minha) amigo(a), a vida não é fácil para ninguém.
“História do Novo Sobrenome” possui 472 páginas. Essa obra é a segunda mais volumosa da Série Napolitana e da literatura de Elena Ferrante como um todo. A primeira posição entre os títulos mais extensos da romancista italiana é ocupada por “História da Menina Perdida”, o quarto e último título da saga, que tem 480 páginas.
Como uma boa continuação, “História do Novo Sobrenome” mantém as principais características narrativas de “A Amiga Genial”. Portanto, esse romance permanece com uma narradora pouquíssimo confiável; o centro da história é a inveja doentia que Elena Greco sente por Rafaella Cerullo; a ambientação é ao melhor estilo noir; a violência é intensa e variada; o sexo é retratado como uma prática nada romântica, incômoda para as mulheres e símbolo máximo da imposição masculina; os relacionamentos são normalmente tóxicos; as personagens são extremamente contraditórias (quase sempre figuras redondas); e assistimos ao mergulho nos dramas sócio-políticos da Itália e de Nápoles.
A grande novidade de “História do Novo Sobrenome” está em seu conteúdo. Nesse livro, a narradora-protagonista da saga foca quase que exclusivamente nos dramas da amiga. Assim, Elena Greco acaba quase que se anulando – Rafaella Cerullo se torna a grande protagonista dessa história. Além disso, aumenta a sensação de que Lenu é uma anti-heroína da série e não uma heroína literária clássica. Eu já tive essa impressão em “A Amiga Genial” e agora a ratifiquei. Em outras palavras, enquanto odeio Elena Greco (mesmo ela tentando posar de boazinha – não, ela não é boazinha coisa nenhuma!), sou apaixonado por Rafaella Cerullo (por mais que ela seja pintada como a vilã – não, ela não é má nem aqui nem na China!).
Esse debate sobre quem é a boazinha e quem é a mazinha da história é o elemento mais rico da Tetralogia Napolitana. A opinião do(a) leitor(a) irá variar dependendo do quanto a narrativa de Elena Greco consegui influenciá-lo(a). Como já disse, Lenu é uma narradora pouco confiável. Como uma boa psicopata, ela tentará posar de vítima da situação e irá manipular a opinião do leitor. Se você cair na armadilha dela, na certa verá Lila como uma pessoa repugnante, vulgar, maliciosa, invejosa e inconstante. Como não caí no joguinho cênico de Elena Greco, acabei enxergando Rafaella Cerullo como uma mulher extraordinária e altruísta, digna de admiração e de muitos elogios.
É verdade que Lila não é perfeita. Perfeitas mesmo só a Scarlett Johansson, a Isis Valverde, a Margot Robbie e Paola de Oliveira (brincadeirinha!). Como todo mundo (ou quase todo mundo se pensarmos em Scarlettizinha, na Isis, na Margot e na Paola), Rafaella Cerullo tem suas qualidades e seus defeitos. Porém, uma coisa está muito evidente para mim: ela não pode ser vista pelos leitores como a vilã dessa trama.
No caso de Elena Greco, minha opinião é totalmente oposta. Na minha visão, ela é uma víbora. Embaixo da carapuça de santa (santinha do pau oco!), esconde-se uma mocreia, capaz de destruir a vida de quem está ao seu redor e, principalmente, de prejudicar a melhor amiga, se assim ela tiver a oportunidade. O que alimenta a narradora-protagonista é o sentimento de inveja e a vontade de vingança. Pobre de Lila. Ela não merecia uma amiga como Lenu. Analisando a literatura de Elena Ferrante, Elena Greco é muito parecida, como personagem e narradora, a Delia, a protagonista de “Um Amor Incômodo”, e de Leda, a protagonista de “A Filha Perdida”. Só não a achei semelhante a Olga, de “Dias de Abandono”. Considero Olga mais uma mulher que enlouqueceu momentaneamente (vítima de um trauma emocional) do que uma má pessoa. Gosto da narradora-protagonista de “Dias de Abandono”, um sentimento que não consigo nutrir por Delia, Leda e (muito menos!) Lenu.
“História de Quem Foge e de Quem Fica” (Biblioteca Azul) é o terceiro romance da Série Napolitana. Publicado na Itália em 2013, esse novo título de Elena Ferrante retrata a fase adulta de Elena Greco e Rafaella Cerullo – período chamado no livro de intermédio (o que seria um intermédio, Santo Deus?!). Quem imaginou que as confusões e a relação conflituosa entre as amigas diminuiriam com o passar do tempo, preciso informar que “História de Quem Foge e de Quem Fica” reserva novas e variadas intrigas de tirar o fôlego. Para completar, temos interessantes reviravoltas ao longo da obra. Por falar nisso, em relação à tensão dramática, à ambientação aterrorizante e às surpresas do enredo, esse volume da tetralogia consegue ser ainda melhor do que os antecedentes.
Assim como “A Amiga Genial”, “História de Quem Foge e de Quem Fica” começa no presente. Em Turim, Elena Greco comenta um pouco mais a questão do sumiço de Rafaella Cerullo e debate as últimas vezes em que viu e conversou com a amiga de infância. Logo em seguida, o romance retorna para o ponto em que “História do Novo Sobrenome” terminou: o encontro de Lenu e Nino Sarratore, em Milão, durante o lançamento de um livro dela.
O surgimento repentino de Nino, depois de tantos anos ausente, mexe com Elena Greco. A narradora-protagonista da saga era apaixonada pelo rapaz na infância e na adolescência. Entretanto, ela sempre conseguiu esconder muito bem os sentimentos que nutria pelo filho de Donato Sarratore, o maior mulherengo de Nápoles. Dessa vez, Lenu já não tem certeza se continuará tendo êxito em guardar para si as imposições do coração. Nino se tornou um aclamado acadêmico e, para deleite da velha amiga, mostra-se muito interessado no trabalho literário de Elena e em suas qualidades intelectuais.
Para aplacar um pouco as aflições amorosas, Lenu aceita se casar com Pietro Airota, um jovem professor universitário advindo de uma família importante de Milão. Mesmo não amando o noivo, Elena Greco acha que essa união é o melhor para ela. Tão logo se casam, Elena e Pietro vão viver em Florença, onde ele arranja um bom emprego. A trajetória profissional da narradora segue ascendente após o matrimônio. Lenu se transformou não apenas em uma escritora ficcional famosa no país como seus textos não ficcionais são publicados nos principais jornais da Itália. Nesse momento, ela é uma importante personalidade aos olhos de seus conterrâneos de Nápoles, que acompanham atentamente os seus passos na literatura e no jornalismo.
Paradoxalmente, enquanto Lenu vive uma ótima fase (casamento tranquilo, independência financeira, constituição de um lar próprio e carreira promissora), Rafaella passa por maus bocados em Nápoles. Após se separar de Stefano Carracci, Lenu vai morar em San Giovanni a Teduccio com o amigo Enzo e com o filho Rino. Lá, ela sofre horrores como funcionária de uma fábrica de embutidos. Humilhada sistematicamente e alvo do assédio moral e sexual dos colegas e do patrão, Rafaella Cerullo se alinha aos comunistas que organizam o sindicato local de trabalhadores. Inicia-se, dessa forma, uma violenta disputa entre fascistas e esquerdistas.
Quando Elena Greco descobre que a amiga está passando por sérias dificuldades, ela decide interceder. Com a ajuda dos contatos da família Airota, a jovem escritora não mede esforços para tirar Lila da fábrica e da confusão envolvendo os sindicalistas napolitanos. Por ora, a rivalidade das duas amigas é deixada de lado e Lenu se mostra verdadeiramente interessada em ajudar Rafaella Cerullo. O que a narradora não poderia imaginar é que os ventos fossem mudar tão rapidamente. A saída de Lila do fundo do poço coincide com a derrocada pessoal e profissional de Lenu.
“História de Quem Foge e de Quem Fica” tem 416 páginas. Do ponto de vista da extensão do conteúdo, esse livro é o segundo mais enxuto da Tetralogia Napolitana (“A Amiga Genial” é o menor em tamanho). Além disso, essa terceira parte da saga é a que abrange o menor período temporal da série. Enquanto “A Amiga Genial” e “História do Novo Sobrenome” se passam basicamente ao longo de uma década cada um (o primeiro romance relata os acontecimentos dos anos 1950 e o segundo dos anos 1960), “História de Quem Foge e de Quem Fica” se estende por apenas sete anos (de 1969 a 1976). Caso você tenha ficado curioso(a), adianto que “História da Menina Perdida”, o quarto e último volume da coleção, se passa entre 1976 e 2010 (é o maior espaço temporal da tetralogia ao englobar 35 anos de narrativa).
A grande surpresa de “História de Quem Foge e de Quem Fica” é o predomínio da narrativa enfocando a parte de Elena Greco. Se em “A Amiga Genial” tivemos um equilíbrio no relato envolvendo as duas protagonistas e em “História do Novo Sobrenome” o pêndulo da trama voltou-se para Rafaella Cerullo, agora, pela primeira vez na série, Lenu torna-se verdadeiramente a protagonista. Por vários capítulos desse terceiro título da saga, Rafaella chega a desaparecer dos relatos da amiga. Para um leitor atento, essa mudança é significativa e mostra o quanto Lenu começa a olhar para a própria vida, deixando por ora a fixação em Lila em segundo plano.
Outras características de “História de Quem Foge e de Quem Fica” são: a interposição temporal (presente e passado misturados); o aumento da tensão político-social da Itália na virada dos anos 1960 para os anos 1970; a ambientação ainda mais violenta e degradada de Nápoles; o florescimento do Feminismo; a consolidação da vilania de Nino Sarratore e dos irmãos Solara; e o desfecho espetacular do romance (talvez a parte mais emblemática de toda a Série Napolitana).
Lançado em 2014, “História da Menina Perdida” (Biblioteca Azul), é o quarto e último romance da saga de Elena Greco e Rafaella Cerullo. Se você estava gostando da trama até aqui, preciso alertá-lo(a) que Elena Ferrante reservou a melhor parte para o encerramento da Série Napolitana. Para mim, esse é o melhor volume da coletânea. Esse livro chega a ser mais surpreendente, dramático, violento e angustiante do que “A Amiga Genial”, “História do Novo Sobrenome” e “História de Quem Foge e de Quem Fica”. Achei até que isso não fosse possível, mas Ferrante se superou mais uma vez – não há atualmente ninguém na literatura mundial como a escritora italiana na arte de produzir thrillers psicológicos envolvendo narradoras femininas complexadas e psicóticas.
O que me deixou de queixo caído em “História da Menina Perdida” foi a maneira sublime como Elena Ferrante conseguiu amarrar toda a narrativa (algo nada fácil em se tratando de um enredo com mais de 1.700 páginas). Essa obra ficcional é uma das mais incríveis que li em minha vida e a melhor que li nesse ano. Prova maior da qualidade literária desse livro é que “História da Menina Perdida” foi indicado ao Prêmio Strega, o mais tradicional e prestigiado da literatura italiana.
“História da Menina Perdida” está dividido em três partes: Maturidade, Velhice e Epílogo. Enquanto a primeira seção vai de 1976 a 1985, a segunda abrange o período de 1985 a 2010. Na parte final do romance, assistimos, enfim, ao relato de Elena Greco sobre o enigmático desaparecimento de Rafaella Cerullo (mistério apresentado nos capítulos iniciais de “A Amiga Genial”). Como falei anteriormente, esse título é o que percorre o maior espaço temporal (35 anos de história) e, como consequência, é também o mais volumoso da tetralogia (são 480 páginas).
O enredo de “História da Menina Perdida” inicia-se no exato ponto em que “História de Quem Foge e de Quem Fica” terminou. A cena de transição entre os livros ocorre em 1976 e narra a decisão de Elena Greco em abandonar o marido, Pietro Airota, e as filhas pequenas, Dede e Elsa. Ela sai de casa para viajar para a França com o amante, Nino Sarratore. Esse é, indiscutivelmente, um dos momentos mais fortes e delicados da Série Napolitana. Chega a ser impossível fechar o volume 3 da série e não abrir o volume 4 em seguida. Um leitor minimamente inteligente ou experiente irá colocar a mão na cabeça e pensar: Meu Deus, Lenu enlouqueceu! Ela não sabe a burrice que está fazendo. Admito que dá para ficar com o coração na mão ao longo dessas páginas.
Não é preciso ser um gênio para descobrir que a escapada de Elena com Nino, uma espécie de Lua de Mel antecipada dos pombinhos, decretou o fim do casamento dela com Pietro. Ao regressar de viagem, Lenu abandona definitivamente o lar em Florença e volta a viver em Nápoles. Em sua cidade natal, Elena Greco passa a morar com as filhas e com Nino, que também se separou da mulher. Essa é a fase mais feliz da narradora-protagonista. Pela primeira vez na vida, ela está com o homem que sempre amou. Aos seus olhos, Nino Sarratore é o companheiro perfeito – inteligente, amoroso, bonito e compreensivo.
Apesar da felicidade conjugal, as escolhas de Lenu não foram bem recebidas por familiares e amigos. A primeira a se opor àquela união com Nino foi Rafaella Cerullo, agora uma bem-sucedida empresária do ramo da computação (como esse mundo dá voltas, hein?!). Lila acha um disparate Elena largar um marido bom e confiável como Pietro para ficar com alguém tão inconsequente e falso como Nino Sarratore. A família inteira de Elena Greco compartilha da opinião de Rafaella.
Indiferente à opinião dos outros, Lenu mergulha de cabeça no novo relacionamento. Apesar de não serem casados no papel, Elena e Nino vivem juntos em Nápoles como se fossem marido e mulher. Dessa união, nasce Immacolata, a terceira menina de Elena Greco (a primeira com o novo companheiro). Poucas semanas mais tarde, Rafaella tem o segundo filho (a primeira menina), Tina. A criança é fruto do relacionamento de Lila com Enzo Scanno.
Novamente mães e enfrentando sérios problemas com a família Solara, Elena Greco e Rafaella Cerullo voltam a se unir como nos velhos tempos. As duas moram no mesmo edifício e compartilham a criação das filhas. A ascensão da empresa de computação de Lila mexe com a dinâmica de poder no bairro. Os irmãos Marcello e Michele Solara, tradicional família camorrista, não aceita o progresso da adversária e fará qualquer coisa para prejudicar Rafaella. A única chance de Lila para evitar os ataques dos irmãos mafiosos é o apoio incondicional de Lenu, uma figura pública de renome nacional. O que as amigas não poderiam imaginar é que ambas seriam vítimas, cada qual de uma forma, das fatalidades do destino.
O que chama a atenção na narrativa de “História da Menina Perdida” é a questão do ciúme de Elena Greco. Se até então ela era apenas invejosa, agora a personagem principal do romance se torna também uma mulher profundamente ciumenta (ciúmes de Nino). De certa maneira, a eclosão desse sentimento é até natural. Afinal, pela primeira vez Lenu está com alguém que ama.
A consequência disso é que Elena abandona a racionalidade e a polidez e se transforma em alguém passional e desequilibrada. Trata-se de uma mudança considerável. Mesmo ficando mais franca, emotiva e frágil (ou seja, mais humana), Lenu não se redime aos olhos dos leitores. Para mim, ela continua sendo a anti-heroína de sempre: egoísta, insensível, invejosa e, agora, ciumenta!
Outra mudança é que depois de muito tempo, Elena Greco e Rafaella Cerullo ficam profundamente próximas na fase de maturidade. A última vez que isso tinha acontecido fora na adolescência delas. Outra questão marcante de “História da Menina Perdida” é a potencialização do drama psicológico e da ambientação violenta. Acho que esse volume é o mais tenso e angustiante da saga. Há muitas cenas de crimes (típico das narrativas mafiosas) e passagens de cortar o coração (coitada de Lila!).
A violência nesse livro é de todo tipo (assassinatos, espancamentos, corrupção, sequestros, chantagem, manipulação, mentiras...) e de alta voltagem, capaz de afetar a todos indistintamente (inclusive as protagonistas e seus familiares e amigos mais próximos). É como se até essa obra a violência e os crimes da Série Napolitana ficassem ao redor de Lenu e Lila. E agora ela atingisse em cheio as duas personagens. Dessa forma, “História da Menina Perdida” ganha tons de trama de terror e de romance policial noir.
A parte mais espetacular dessa obra é o desfecho. De um jeito astuto e criativo, Elena Ferrante amarra a última cena do livro à primeira cena do primeiro volume da tetralogia. Incrível! Depois de mais de 1.700 páginas, a autora napolitana costura impecavelmente a narrativa dos quatro livros e das seis décadas de trama. Não se surpreenda se você ficar embasbacado(a) com as conclusões que Lenu chegar ao final da vida.
Adorei “História da Menina Perdida” e a Série Napolitana como um todo. Sem qualquer malícia da minha parte (sabe de nada, inocente!), achei que Elena Ferrante tivesse colocado a melhor parte da saga nos livros iniciais. Ledo engano! A romancista italiana reservou o melhor para o desenlace da série, em um grand finale espetacular. É maravilhoso quando somos surpreendidos positivamente por uma escritora que parece se superar a cada obra publicada. Como romance individual, “História da Menina Perdida” é até melhor do que “A Amiga Genial” e “História de Quem Foge e de Quem Fica”, até então as minhas partes favoritas da tetralogia.
Em 2019, cinco anos após a chegada às livrarias do último título da Série Napolitana, Ferrante publicou “A Vida Mentirosa dos Adultos” (Intrínseca), seu oitavo romance. Essa é a mais recente obra ficcional da autora italiana, a primeira desvinculada da coletânea de best-sellers que narra os dramas de Elena Greco e Rafaella Cerullo. Na época do seu lançamento, “A Vida Mentirosa dos Adultos” gerou uma enorme expectativa entre o público, a crítica literária e a imprensa. As grandes questões que rondavam a cabeça de todo mundo eram: o que Elena Ferrante traria de novo sem descaracterizar seu estilo literário?; e ela conseguiria continuar surpreendendo os leitores com o mesmo receituário narrativo que a consagrou? Os questionamentos eram válidos. Afinal, o grande desafio do(a) escritor(a) famoso(a) é, após a consagração, desenvolver o portfólio balanceando novidades e consistência temático-estilística. Há quem fique eternamente preso(a) ao modelo de sucesso que o(a) consagrou. E tem quem procure desesperadamente trilhas ficcionais alternativas para provar que ainda é criativo(a) e inusitado(a).
No caso de Ferrante, achei que ela foi perfeita em conciliar os dois elementos – a manutenção de suas características mais marcantes e a inserção de novos componentes narrativos. Em relação ao primeiro aspecto, “A Vida Mentirosa dos Adultos” é o típico romance ferrantiano: thriller psicológico envolvendo um narrador-protagonista feminino; drama ancorado em famílias desajustadas e com relacionamentos caóticos; trama passada em Nápoles; ambientação noir que explora a violência, as mentiras, a pobreza, a opressão feminina e a infidelidade conjugal; narrativa histórica (romance histórico); presença de inúmeras personagens redondas, normalmente com forte pegada de vilania; sexo como prática pouco romântica e algo visto como feio, sujo, errado e incômodo pelas mulheres, principalmente quando feito com os homens; e capítulos iniciais e finais impecáveis (eles são capazes de tirar o fôlego dos leitores).
Por sua vez, “A Vida Mentirosa dos Adultos” tem como principais novidades: uma protagonista que não tem nada de anti-heroína (esqueça, portanto, as psicopatias de Delia, Leda e Lenu!); Giovanna Trada, a narradora do novo livro, não sabe em quem confiar e o que fazer da vida (nesse sentido, ela é uma pessoa confusa e desnorteada, sendo mais parecida com Olga, a personagem principal de “Dias de Abandono”, do que com as demais protagonistas da literatura de Ferrante); eclosão da homossexualidade feminina para o centro do romance (algo que ficara até então submerso na ficção da autora napolitana); trama ainda mais enigmática, o que potencializa o suspense psicológico da obra.
O mais interessante de “A Vida Mentirosa dos Adultos” é que Elena Ferrante subverte a lógica maniqueísta da estrutura romanesca clássica. Ao acompanharmos os relatos de Giovanna, simplesmente não conseguimos saber em qual personagem acreditar e em qual versão da história confiar (mesmo drama vivenciado pela narradora-protagonista). A impressão que temos é que todo mundo tem algo a esconder e procura varrer a sujeira para debaixo do tapete. O resultado é uma grande tensão dramática. Afinal, quem seriam as pessoas boazinhas e quem seriam as pessoas mazinhas dessa trama?! Simplesmente não sabemos – cada leitor precisa tirar suas próprias conclusões.
O enredo de “A Vida Mentirosa dos Adultos” se passa no início da década de 1990. O livro é narrado por Giovanna Trada, uma adolescente napolitana devastada pela separação dos pais e pela influência contraditória de uma tia barraqueira que ela só viera a conhecer aos 12 anos de idade. Até sua realidade desmoronar por completo, a menina tinha uma rotina normal e tranquila. Giovanna era uma boa aluna, excelente filha e uma garota do “tipo certinha”. Ela vivia sossegadamente na bolha da classe média de Nápoles que exalava erudição e harmonia. Entretanto, um dia, ao ir mal na escola pela primeira vez, a menina ouve o pai comentando com a mãe que ela estava ficando feia e má como a Tia Vittoria.
O desespero da jovem narradora é imediato: ela estaria mesmo ficando feia e má como pai afirmara?! Quem seria essa tia que ela jamais ouvira qualquer menção em casa?! Inicia-se, assim, a fixação de Giovanna Trada pela imagem da Tia Vittoria, a irmã do seu pai. Segundo os pais da garota, Vittoria é uma pessoa invejosa, fofoqueira e indolente que sempre quis prejudicar o irmão. Ela vive no subúrbio de Nápoles e é muito pobre, não merecendo receber a atenção da garota. Mesmo com tantos comentários negativos, Giovanna bate o pé e quer conhecer a tia.
Depois de visitá-la em um domingo, Giovanna se torna muito próxima de Vittoria Trada, para desespero dos pais da adolescente. Se por um lado Tia Vittoria é mesmo vulgar, grosseira, simplória, mandona e escandalosa, por outro lado ela é calorosa, passional, amorosa, solidária e sincera. O curioso é que a tia começa a contar sua versão da desavença familiar. E de uma hora para outra Giovanna Trada começa a suspeitar que seus pais não são pessoas tão legais e corretas como sempre imaginou. Estaria ela vivendo em uma família falsa na qual a mentira é a base do relacionamento de todos?! À medida que começa a investigar os passos do pai e da mãe em casa, Giovanna caminha em direção ao precipício. Em pouco tempo, o lar feliz, harmônico e bem estruturado desaparece completamente. Juntamente com o colapso familiar, assistimos à desintegração da velha Giovanna. Aquela menina certinha, calma e segura dá lugar a uma garota que a cada dia se torna mais parecida ao perfil da tia e menos às características dos pais.
Com 432 páginas, “A Vida Mentirosa dos Adultos” não é, definitivamente, o melhor romance de Elena Ferrante. Na minha visão, a Série Napolitana e “A Filha Perdida” são superiores. Mesmo assim, essa obra reserva ótimas surpresas e oferece uma literatura da melhor qualidade. Para mim, esse novo título da escritora italiana não está atrás de “Um Amor Incômodo” e “Dias de Abandono”, por exemplo, em relação à excelência da narrativa. Em outras palavras, “A Vida Mentirosa dos Adultos” é um livro primoroso de Ferrante. Se não é o melhor da autora, ele também não pode ser visto como o pior. A trama do oitavo romance de Elena Ferrante é magnífica e marcante e faz jus ao nível do trabalho ficcional da autora.
Prova maior da qualidade desse romance é que “A Vida Mentirosa dos Adultos” já teve os direitos de adaptação para a televisão comprados pela Netflix. Mal o livro tinha chegado às livrarias italianas, a companhia norte-americana de streaming adquiriu a propriedade audiovisual dessa narrativa por alguns milhões de dólares. É aquela famosa história: um livro mais ou menos de Elena Ferrante é ainda sim muito, mas muito superior à maioria dos títulos lançados pelos demais autores contemporâneos.
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