Um erro comum do analista literário é acreditar que concluídas a Análise Horizontal (Fase III do MAER) e a Análise Vertical (Fase IV do MAER) de um determinado portfólio, já é possível esmiuçar as características estilísticas do autor investigado. Esse equívoco é até justificável. Afinal, uma vez encontradas características predominantes nos materiais analisados, é de supor que esses elementos pertençam obrigatoriamente às marcas textuais daquele escritor. Entretanto, não é tão simples assim fazer tal dedução. Muitos componentes da narrativa podem ser marcas gerais, de determinado grupo de escritores, de uma escola literária específica ou mesmo de um gênero narrativo em particular.
Ou seja, apesar de aparecerem frequentemente em um conjunto de obras, essas características não necessariamente representam aspectos individuais do estilo do artista. Para excluir tudo aquilo que não é particular das obras de um autor, usamos a Análise Transversal. Essa é a quinta e penúltima fase do Modelo de Análise Estilística de Romances (MAER), o tema dessa temporada da coluna Teoria Literária. Se você chegou agora ao Bonas Histórias, saiba que a Matriz Analítica Completa do MAER foi apresentada no post de junho. Ela resume bem o que estamos tratando aqui. Hoje, vamos falar apenas da Análise Transversal, uma das fases mais delicadas e importantes do Modelo de Análise Estilística de Romances.
A Análise Transversal é a etapa do trabalho do analista literário de relacionar tudo o que encontrou até aquele momento da pesquisa (leia-se Análise Horizontal e Análise Vertical) com o que está/estava sendo feito na literatura de maneira geral no período do autor investigado. Em outras palavras, o analista precisa relacionar a produção literária estudada com as demais. Essa é, talvez, a parte mais difícil do MAER porque exige do pesquisador certa habilidade intertextual. Afinal, é preciso repertório e um conhecimento mais amplo de literatura para descobrir o que são elementos particulares e o que são elementos genéricos em um conjunto de narrativas.
Vejamos um exemplo dessa prática. A Análise Horizontal e a Análise Vertical de um estudo sobre os romances de Rubem Fonseca indicaram algumas características recorrentes no trabalho do principal escritor policial brasileiro. Então, podemos considerar essas descobertas como marcas estilísticas do autor mineiro? Não. Ainda não! É preciso, antes, fazer a Análise Vertical. Dessa maneira, o analista literário precisa comparar os romances fonsequianos aos romances de outros autores policiais (brasileiros, estrangeiros, contemporâneos de Fonseca e mais antigos). É obrigatório relacionar o trabalho de Rubem Fonseca à literatura de João Antônio, Dalton Trevisan, Wander Piroli, Sérgio Sant’Anna, Ignácio de Loyola Brandão, Fernando Bonassi, Marçal Aquino e Patrícia Melo. E é essencial relacioná-lo à literatura de Agatha Christie, Arthur Conan Doyle, Edgar Allan Poe, Dashiell Shammett, Raymond Chandler, Patricia Cornwell, Patricia Highsmith e Harlan Coben. Só assim, conseguiremos saber o que são marcas gerais do gênero policial e o que são marcas pessoais das narrativas de Fonseca.
No caso, seria equivocado um analista apontar: as tramas dos romances de Rubem Fonseca giram sempre em torno de investigações criminais – 87,5% de incidência – a única exceção é “O Selvagem da Ópera” (Companhia das Letras). Por mais que a Análise Horizontal e, principalmente, a Análise Vertical façam esse apontamento (ele é factual), a Análise Transversal vem para retificar tal informação (apesar de ser um dado concreto, esse é um dado vazio). O motivo: todo romance policial gira em torno de uma investigação criminal. Ou seja, essa não é uma marca estilística de Fonseca e sim do gênero narrativo por ele utilizado.
Outro tropeço conceitual seria dizer que, nas narrativas longas, o discurso fonsequiano é essencialmente direto, com o uso complementar do discurso indireto e do discurso indireto livre – 100% de incidência. O problema é que essa é uma característica da maioria dos escritores contemporâneos. Quatro entre cinco autores devem usar o discurso direto na construção dos diálogos, deixando o discurso indireto e o discurso indireto livre em segundo plano. Portanto, não estamos aqui diante de uma marca da literatura de Fonseca (e sim de uma característica da literatura dos últimos dois séculos).
A função da Análise Transversal (ela tem esse nome porque relaciona os trabalhos de um autor com os trabalhos dos demais) é evitar conclusões incorretas e abrangentes demais. Sem essa etapa, o analista literário corre o risco de classificar como características específicas do autor estudado alguns componentes de uso geral e corriqueiro da narrativa ficcional. Quanto mais escritores diferentes (dentro do gênero narrativo do estudo realizado) forem incluídos na Análise Transversal, mais minuciosa e rica será a conclusão da pesquisa.
No mês que vem, a coluna Teoria Literária apresentará a sexta e última etapa do MAER: a Conclusão do Estudo. Não perca o encerramento do debate sobre o Modelo de Análise Estilística dos Romances. Bom Ano-Novo para todos (lembrem-se das medidas de distanciamento social para o controle da pandemia, hein?) e até janeiro!
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