Rubem Fonseca ficou famoso na segunda metade do século XX por ter sido o introdutor no Brasil e o principal adepto no cenário nacional da Literatura Brutalista (RODRIGUES, 2017), um dos subgêneros do Romance Policial. Segundo a Teoria Literária, o Brutalismo também é chamado de Neorrealismo Violento (BOSI, 1975), de Romance Noir ou de Romance Negro (TODOROV, 2013, p.98). Atuando como contista, romancista, novelista, ensaísta e roteirista, Fonseca publicou 32 livros, sendo 19 coletâneas de contos, 8 romances, 4 novelas e 1 ensaio. Falecido em abril deste ano, no comecinho da pandemia do novo coronavírus no Brasil, o escritor que nascera em Minas Gerais e vivera desde a infância no Rio de Janeiro foi vítima de um infarto fulminante. Ou seja, sua morte não tem nada a ver com a COVID-19, como chegou a ser ventilado na época. Rubem Fonseca é um dos principais nomes da literatura brasileira contemporânea. Sua influência pode ser sentida até hoje. Não é difícil descobrir várias de suas características estéticas nos trabalhos dos novos romancistas e contistas nacionais.
Ao longo deste mês, analisamos individualmente no Desafio Literário seis das principais obras de Fonseca: “Lúcia McCartney” (Agir), “O Caso Morel” (Biblioteca Folha), “Feliz Ano Novo” (Nova Fronteira), “A Grande Arte” (Nova Fronteira), “O Selvagem da Ópera” (Companhia das Letras) e “José” (Nova Fronteira). Outros dois títulos deste autor já tinham sido comentados anteriormente no Bonas Histórias: “Agosto” (Companhia das Letras) e “O Seminarista” (Nova Fronteira). Com a bagagem conceitual adquirida através destas oito leituras, vamos construir no post de hoje uma análise completa da literatura de Rubem Fonseca. As perguntas que pretendemos responder aqui são: quais as marcas estilísticas deste autor?; quais são as fases de sua carreira literária?; quais são seus livros mais importantes; e qual é a sua biografia pessoal e profissional?
E para começo de conversa, gostaria de listar o portfólio de Rubem Fonseca. Suas coleções de contos foram: “Os Prisioneiros” (Agir), de 1963, “A Coleira do Cão” (Nova Fronteira), de 1965, “Lúcia McCartney” (Agir), de 1969, “O Homem de Fevereiro ou Março” (Nova Fronteira), de 1973, “Feliz Ano Novo” (Nova Fronteira), de 1975, “O Cobrador” (Nova Fronteira), de 1979, “Romance Negro e Outras Histórias” (Companhia das Letras), de 1992, “O Buraco na Parede” (Nova Fronteira), de 1995, “Histórias de Amor” (Companhia das Letras), de 1997, “A Confraria dos Espadas” (Companhia das Letras), de 1998, “Secreções, Excreções e Desatinos” (Nova Fronteira), de 2001, “Pequenas Criaturas” (Nova Fronteira), de 2002, “64 Contos de Rubem Fonseca” (Companhia das Letras), de 2004, “Ela e Outras Mulheres” (Companhia das Letras), de 2006, “Axilas e Outras Histórias Indecorosas” (Nova Fronteira), de 2011, “Amálgama” (Nova Fronteira), de 2013, “Histórias Curtas” (Nova Fronteira), de 2015, “Calibre 22” (Nova Fronteira), de 2017, e (ufa!) “Carne Crua” (Nova Fronteira), de 2018.
Os romances, por sua vez, foram: “O Caso Morel” (Biblioteca Folha), de 1973, “A Grande Arte” (Nova Fronteira), de 1983, “Bufo & Spallanzani” (Companhia das Letras), de 1985, “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos” (Companhia das Letras), de 1988, “Agosto” (Companhia das Letras), de 1990, “O Selvagem da Ópera” (Companhia das Letras), de 1994, “Diário de um Fescenino” (Companhia das Letras), de 2003, e “Mandrake, a Bíblia e a Bengala” (Companhia das Letras), de 2005. Já as novelas são: “E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto” (Companhia das Letras), de 1997, “O Doente Molière” (Companhia das Letras), de 2000, “O Seminarista” (Companhia das Letras), de 2009, e “José” (Nova Fronteira), de 2011.
Note que para construir a análise literária de Rubem Fonseca, utilizamos nesta edição do Desafio Literário de um pouco de cada um desses gêneros narrativos: duas coletâneas de contos, quatro romances e duas novelas. Desta maneira, conseguimos abranger todos os aspectos de sua criação ficcional. A ideia de selecionar obras do início, do meio e do fim de sua carreira também teve esse propósito.
O único ensaio do escritor mineiro foi “O Romance Morreu” (Nova Fronteira), de 2007, que reúne uma série de crônicas. Além de abordar, em primeira pessoa, alguns assuntos recorrentes de sua literatura, como a fixação pela fisiologia humana, as viagens pelo país e pelo mundo, a mente criminosa, o drama do futebol, a pornografia e as armadilhas da linguagem, Rubem Fonseca também narra em tom autobiográfico a vida de um menino nascido em Minas Gerais e que se mudou na infância para o Rio de Janeiro.
Como roteirista, Fonseca participou da adaptação de algumas de suas obras para a televisão e para o cinema. A mais famosa de suas contribuições foi na minissérie televisiva “Agosto”, produção da Rede Globo do início da década de 1990. A trama da TV foi inspirada no romance homônimo do autor. O escritor mineiro também foi roteirista do filme “A Grande Arte” (1991), dirigido por Walter Salles e baseado em seu segundo romance, e foi coroteirista do filme “Bufo & Spallanzani” (2001), dirigido por Flávio R. Tambellini e inspirado em seu terceiro romance.
Rubem Fonseca recebeu vários prêmios ao longo de sua carreira. Os principais foram o Prêmio Jabuti, conquistado em seis oportunidades (em 1970 por "Lúcia McCartney", em 1984 por “A Grande Arte”, em 1996 por “O Buraco na Parede”, em 2002 por “Secreções, Excreções e Desatinos”, em 2003 por “Pequenas Criaturas” e em 2014 por "Amálgama"), o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), duas vezes (em 1979 por “O Cobrador” e em 2000 por “O Doente Molière”), Prêmio Casa de Las Américas (em 2005 por “Pequenas Criaturas”), Prêmio ABL de Ficção, Romance, Teatro e Conto (em 2007 por “Ela e Outras Histórias”) e o Prêmio Machado de Assis (em 2015 pelo portfólio literário).
Contudo, a coroação definitiva da excelência do trabalho de Rubem Fonseca como escritor aconteceu em 2003. Naquele ano, o autor recebeu o Prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa e que considera o conjunto da obra do artista. A cerimônia ocorrida em maio de 2003 no Rio de Janeiro representou a entrada definitiva de Rubem Fonseca para o grupo de escritores contemporâneos clássicos da nossa língua.
Nascido em Juiz de Fora, em 1925, José Rubem Fonseca (sim, seu primeiro nome era José e não apenas Rubem) fixou residência no Rio de Janeiro ainda na infância. Seus pais, imigrantes portugueses, decidiram trocar Minas Gerais pela então Capital Federal quando o filho tinha oito anos de idade. No Rio, Rubem passou boa parte da infância e toda a adolescência. Menino tímido e introspectivo, seu principal hobby sempre foi a leitura. Ainda em Juiz de Fora, ele passava a maior parte do tempo mergulhado nos livros franceses que uma tia lhe enviava rotineiramente. No Rio, passou a nutrir apreço especial pelos romances policiais norte-americanos, que ele mesmo comprava diretamente nos sebos e nas livrarias cariocas.
Quando completou dezoito anos, Rubem Fonseca acalentou o sonho de se tornar escritor profissional. Para começar neste ofício, ele reuniu uma coleção de contos que produzira nos últimos anos e levou o material para uma editora tradicional no centro do Rio de Janeiro. O editor foi muito educado com aquele rapazote alto, magro e muito tímido dizendo que analisaria seus originais com atenção. Passadas algumas semanas, Rubem voltou ao local com uma preocupação. Ele não tinha uma cópia do texto apresentado. O editor tratou de acalmá-lo. Depois de lido os originais, ele os devolveria para o autor. Quando o jovem expôs a preocupação de que seu material pudesse ser extraviado, o dono da editora foi categórico: não havia risco de aquilo acontecer. Desde a fundação de sua empresa, ele e seus funcionários jamais perderam um original.
Entretanto, como diz o velho ditado, para tudo na vida tem a sua primeira vez, né? Para perplexidade do jovem José Rubem, seus originais foram sim perdidos pela editora. Um constrangido editor comunicou isso ao jovem escritor. Para piorar ainda mais as coisas, o dono da editora nem tinha conseguido ler o material do novato. Ele só foi perceber o extravio quando foi analisar os contos. Rubem Fonseca ficou tão chateado, mas tão chateado com aquele episódio que nunca mais pensou em se tornar escritor. Por mais que produzisse novos contos em suas horas de lazer, jamais quis publicá-los (FONSECA, 2011).
Já adulto, Rubem Fonseca se formou em Direito e começou a trabalhar na polícia. Seu primeiro plantão como comissário de polícia aconteceu na delegacia de São Cristóvão no dia 31 de dezembro de 1952. Após um período como investigador, foi transferido em junho de 1954 para o setor administrativo da instituição. Ali, atuou como relações públicas da polícia e, mais tarde, como perito psicológico, disciplina que se especializou e que mais tarde passaria a ministrar aulas na Fundação Getúlio Vargas (FONSECA, 1973).
Sua atuação destacada na polícia rendeu uma bolsa de estudo no exterior. Rubem Fonseca morou entre 1953 e 1954 nos Estados Unidos, onde estudou Administração de Empresas e Comunicação na New York University. Em 1956, já de volta ao Brasil, saiu da polícia e passou a trabalhar como executivo na Light, empresa fluminense de geração de energia elétrica. Permaneceu na estatal por 20 anos. Em 1964, pouco antes do golpe militar, se tornou diretor do IPES - Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais. Contudo, não ficou muito tempo no órgão federal. Assim que os militares assumiram o governo, derrubando João Goulart, Rubem Fonseca pediu sua demissão em protesto contra o fim da democracia no país (VIANNA, 2005).
Simpatizante do socialismo durante a juventude nos anos de 1940 e 1950, Rubem Fonseca alega ter sido perseguido pelos militares, que teriam forçado sua demissão da Light na década de 1970. Justamente naquela época, sua literatura começava a ganhar evidência. Seus contos, que abordavam a violência urbana e a degradação ética da sociedade brasileira, agradavam a crítica e o público, mas encontravam grande resistência dos governantes, que não aceitavam com "bons olhos" aquela caracterização ácida da realidade nacional. Depois da demissão da Light em 1976, Fonseca passou a escrever críticas de cinema na revista Veja e se dedicar com mais afinco à ficção literária.
Casado por quatro décadas com Théa Maud Fonseca, tradutora e escritora que faleceu em 1997, Rubem Fonseca teve três filhos: Maria Beatriz, José Alberto e o cineasta José Henrique Fonseca. A família sempre viveu na cidade do Rio de Janeiro. Viúvo desde a perda de sua companheira, Rubem sofria de úlcera gástrica (curiosamente esta é a mesma doença do comissário Mattos, o protagonista do romance “Agosto”, seu livro mais famoso). Avesso às entrevistas e à imprensa, ele aparecia pouco na mídia e preferia viver recluso em sua residência. Segundo o autor, um escritor devia se manifestar essencialmente através de suas obras, evitando interagir com os leitores e com o público diretamente. Afinal, o que ele tinha para dizer, já tinha dito em seus livros, não sendo necessárias entrevistas ou debates sobre literatura para expor seu ponto de vista. Obviamente, esta é a opinião de uma pessoa extremamente tímida e introvertida (características que sempre o acompanharam por toda a vida).
A carreira de Rubem Fonseca na literatura começou por acaso no início da década de 1960. Sem jamais ter a pretensão de ser escritor ou de ter uma obra sua publicada (consequências do trauma da rápida experiência literária aos 18 anos), o então executivo, que se dividia entre o trabalho no IPES e na Light, recebeu um "presente-surpresa" do amigo editor Gumercindo Rocha Dórea. Dórea recebeu da secretária de Fonseca dez contos que o então executivo guardava nas gavetas de seu escritório. Positivamente impressionado com a qualidade do texto, o editor resolveu rodar o livro sem a prévia autorização do autor. Somente quando as provas da obra ficaram prontas, Dórea apresentou a ideia da publicação para o amigo. Rubem Fonseca ficou bravo e não concordou com aquela ideia de imediato. Só depois de uma semana, com a cabeça mais fria, o escritor reconsiderou sua decisão. Porém, impôs uma condição: a capa deveria ser feita por seu filho José Antônio, na época com cinco anos. Dessa vez, foi o editor que esperneou (VIANNA, 2005).
Desta maneira, chegava às livrarias brasileiras, em 1963, o livro “Os Prisioneiros”, a obra de estreia de Rubem Fonseca na literatura comercial (e o debute de José Antônio Fonseca na produção artística!). A iniciativa de Gumercindo Rocha Dórea se mostrou exitosa. Rapidamente, o livro de Fonseca se tornou um sucesso de crítica. A coletânea de contos do escritor novato rendeu rasgados elogios das principais figuras do mercado editorial nacional.
“Os Prisioneiros” possui 12 contos, tem 176 páginas e já apresentava boa parte das características literárias que seriam associadas ao seu autor. Rubem Fonseca, desde aquele momento, fazia uma literatura original no cenário brasileiro, retratando o ambiente urbano do país com personagens marginalizadas e com protagonistas com muitos vícios de caráter. O nome do livro (e de seu principal conto) faz uma associação direta ao estado do homem contemporâneo que vive preso à sua existência insignificante e à barbárie social.
Ainda na década de 1960, mais dois livros de contos de Rubem Fonseca foram publicados: “A Coleira do Cão”, de 1965 (256 páginas e 8 contos) e “Lúcia McCartney”, de 1967/1969 (188 páginas e 19 contos). “Coleira do Cão” é considerado uma extensão natural dos dramas representados em “Os Prisioneiros”. Em contraponto ao homem aprisionado da obra anterior, temos, neste caso, o cachorro que mesmo livre carrega um pedaço da coleira que o aprisionava anteriormente (daí o título da segunda obra).
As duas primeiras publicações bastaram para colocar Rubem Fonseca no patamar dos principais escritores de sua geração. O crítico Wilson Martins escreveu logo após o lançamento de “Coleira de Cão”, no jornal O Estado de São Paulo: “Sr. Rubem Fonseca vence brilhantemente a prova do segundo livro [...] Se figurarmos os nossos autores de hoje em seus lugares respectivos na escada da glória, nada mais fácil do que perceber que, com Sr. Rubem Fonseca, a literatura brasileira ganhou um dos seus escritores mais importantes” (AGÊNCIA RIFF, 2017).
Em “Lúcia McCartney”, o escritor mineiro atingiu o ápice narrativo ao colocar como protagonista uma prostituta da zona sul carioca. Misturando elementos eruditos e populares, Fonseca produziu histórias inventivas e mórbidas, sem jamais deixar o bom humor de lado. Para Sérgio Sant'Anna, escritor carioca nascido nos anos 1940, “Lúcia McCartney” é "o mais importante livro de ficção brasileira dos últimos anos” (AGÊNCIA RIFF, 2017). Não foi por acaso, portanto, que Fonseca conquistou, em 1970, seu primeiro Prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira. Além disso, este livro representou o primeiro best-seller do autor. A partir de então, Rubem Fonseca não era adorado apenas pela crítica literária, mas também pelo público leitor, que corria às livrarias para adquirir suas publicações.
Na década seguinte, vieram mais três importantes coletâneas de contos: “O Homem de Fevereiro ou Março”, de 1973 (288 páginas e 18 contos), “Feliz Ano Novo”, de 1975 (176 páginas e 13 contos) e “O Cobrador”, de 1979 (184 páginas e 10 contos). Destes títulos, aquele que ficou mais famoso na época do lançamento foi “Feliz Ano Novo” por ter sido censurado pela ditadura militar. Assim, o interesse dos leitores pela obra aumentou consideravelmente, apesar de Rubem Fonseca não ter se aproveitado desse fato para promover seu livro (FONSECA, 1983). Vale a pena destacar que “Feliz Ano Novo” possui dois dos mais espetaculares contos da literatura brasileira. "Passeio Noturno (Parte I)” e “Feliz Ano Novo” (narrativa curta que empresta seu nome ao título da coletânea) estão em qualquer boa lista que aponte os melhores contos da literatura nacional de todos os tempos.
O conjunto de seis livros de contos das décadas de 1960 e 1970 representa a vertente mais disruptiva do trabalho ficcional de Rubem Fonseca. Segundo o escritor Luiz Ruffato, o conto brasileiro se divide em antes e depois de Rubem Fonseca (VIANNA, 2015). Apesar da versatilidade e do grande número de obras publicadas posteriormente, a excelência do trabalho artístico do escritor mineiro aparece de maneira mais acentuada nos contos iniciais de sua carreira. O parecer quase unânime da crítica literária indica que Fonseca foi, acima de tudo, um gênio na arte de produzir contos (PEREIRA, 2000, p. 15).
Depois da publicação de “O Cobrador”, Rubem Fonseca ficou sem lançar nenhum novo livro de contos por treze anos. Nas décadas de 1980 e de 1990, o escritor dedicou-se principalmente à produção de romances. Por isso, é possível estabelecer uma ruptura na literatura fonsequiana - a primeira fase de sua carreira (1963 a 1983) foi de contista; a segunda (1983 a 1997) foi de romancista; e, por fim, a terceira fase (1997 a 2018/2020) volta a ser de contista (agora com uma pegada mais madura). É verdade que em cada uma dessas etapas, o autor continuou publicando outros gêneros narrativos, mas em menor escala em relação ao gênero principal.
O primeiro romance de Rubem Fonseca foi “O Caso Morel”. Este livro foi publicado em 1973, ainda na primeira fase contista. O sucesso desta obra se deve a transposição do estilo ácido, ambíguo, seco, violento e bruto dos contos fonsequianos para o romance. Além disso, o protagonista-narrador Paulo Morais (Paul Morel) é um marco na literatura brasileira por representar todas as contradições e as injustiças da sociedade nacional.
São dos anos de 1980 os três grandes clássicos romanescos do autor: “A Grande Arte”, de 1983, “Bufo & Spallanzani”, de 1985, e “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos”, de 1988. As duas décadas seguintes foram as mais prolíficas da carreira literária de Rubem Fonseca. O mineiro lançou obras de contos e romances alternadamente. Foram sete livros nos anos de 1990 e mais oito na primeira década de 2000.
Em 1990, foram lançados “Agosto”, a narrativa longa mais famosa do autor, o romance “O Selvagem da Ópera” e a novela “E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto”. Juntamente com esses títulos vieram as coletâneas de contos “Romance Negro e Outras Histórias”, quebrando o jejum de publicações deste gênero, “O Buraco na Parede”, “Histórias de Amor” e “A Confraria dos Espadas”.
Na década de 2000, foram publicados os romances “Diário de um Fescenino” e “Mandrake, a Bíblia e a Bengala”, as novelas “O Doente Molière” e “O Seminarista”, as coleções de contos “Secreções, Excreções e Desatinos”, “Pequenas Criaturas”, “64 Contos de Rubem Fonseca” e “Ela e Outras Mulheres” e o ensaio “O Romance Morreu”. Nos últimos anos de vida/carreira (leia-se, anos 2010), Rubem Fonseca lançou mais seis livros. Cinco são de contos: “Axilas e Outras Histórias Indecorosas”, de 2011, “Amálgama”, de 2013, “Histórias Curtas”, de 2015, “Calibre 22”, de 2017, e “Carne Crua”, de 2018. O outro é a novela autobiográfica “José”, de 2011. Nesta obra, Rubem Fonseca narra a infância em Minas, a adolescência no Rio e o início da fase adulta (antes de se tornar escritor).
Para quem aponte o auge literário de Rubem Fonseca como tendo acontecido entre as décadas de 1960 e 1980, um dado interessante sobre a última fase da carreira do autor (1997 a 2018/2020) pode derrubar essa tese. Foi nos últimos anos que Fonseca conquistou seus principais prêmios. Dos Jabuti, por exemplo, quatro dos seis vieram depois de 1996. Dos APCA, metade foi recebida após 1997. Ou seja, Rubem Fonseca pode até ter perdido o posto de best-seller nacional depois da metade dos anos 1990, mas continuou produzindo obras premiadíssimas. Como consequência, conquistou o Prêmio Machado de Assis em 2015 e o Prêmio Camões em 2003 (ambos pelo conjunto literário).
Para entender o estilo narrativo particular de Rubem Fonseca, é preciso antes estudar as características gerais do tipo de literatura que o autor mineiro escolheu praticar. Além de ter introduzido no Brasil a Literatura Brutalista, Fonseca se manteve fiel a esta concepção artística ao longo de toda a carreira. Tanto na produção de contos quanto no desenvolvimento de romances e novelas, o escritor jamais abandonou este estilo (BOSI, 1975). Dessa forma, ele criou uma literatura marcante e facilmente reconhecida pelo público e pela crítica (PEREIRA, 2000, p. 18-25). Além disso, Fonseca tornou-se o principal nome do Brutalismo nacional e um dos principais autores de sua geração (RODRIGUES, 2017). Quando falamos em Romance Policial no Brasil, o primeiro nome que vem à cabeça é indiscutivelmente o de Rubem Fonseca.
Em poucas palavras, a Literatura Brutalista (também conhecida como Romance Negro, Literatura Noir ou Neorrealismo Violento) é uma variante mais moderna do Romance Policial. Esta modalidade investiga um crime (essência do Romance Policial), mas pinta com tintas mais fortes a violência, o sadismo, a pobreza, a sujeira e a marginalização da sociedade. A imoralidade é geral, não se restringindo aos vilões. Até mesmo os protagonistas são figuras imorais ou amorais – suas características são parecidíssimas ao dos antagonistas. O detetive aqui corre sérios riscos de morrer ou de se ferir gravemente, o que acaba acontecendo em muitos casos (no Romance Policial Clássico, o detetive é imune aos perigos). Os protagonistas destas obras também são personagens mais humanas e recheadas de defeitos - bebem, brigam, apanham, se ferem, matam, sentem medo, fazem sexo, se apaixonam e cometem (muitos) erros (TODOROV, 2013, p. 98-100).
Rubem Fonseca incorporou todas essas características em seus trabalhos ficcionais, tanto nas narrativas curtas quanto nas narrativas médias e longas. Sua excelência artística está na adaptação da ambientação caótica e densa da Literatura Noir ao cenário brasileiro (que por si só, é a representação fidedigna dos valores noir). Com isso, Fonseca não só se tornou o maior nome do Romance Negro nacional como também se transformou na maior figura do Romance Policial de nosso país.
A seguir, listo as 20 características da literatura de Rubem Fonseca (BONACORCI: 2018) que foram originalmente apresentadas por mim em uma palestra no IV Congresso Internacional do Grupo Unis. Os pontos do estilo do autor estão organizados segundo os conceitos dos Elementos da Narrativa.[if !supportLists]
1) TIPOLOGIA: Rubem Fonseca é um autor de thrillers policiais do tipo Romance Negro/Literatura Brutalista. Todas as suas coletâneas de contos e novelas possuem esta característica. E apenas um romance de seu portfólio foge um pouco dessa classificação – “O Selvagem da Ópera” é um drama histórico e não uma narrativa criminal.
2) ENREDO: Os desfechos das histórias fonsequianas são tradicionalmente melancólicos. Eles deixam um gosto amargo na boca do leitor. No caso dos romances e das novelas, isso acontece em 100% dos casos.
3) PERSONAGEM: Os protagonistas de Fonseca possuem características parecidíssimas ao dos anti-heróis.
4) PERSONAGEM: Os protagonistas dos romances e das novelas do autor são homens bonitos, hedonistas, viciados em sexo, mulherengos, promíscuos sexualmente, mentirosos, artistas/amantes das artes e propensos/suspeitos de cometer crimes. A exceção é Alberto Mattos, figura central de “Agosto”. Este policial não é hedonista, não é viciado em sexo e (acredite) é muito honesto.
5) PERSONAGEM: Os antagonistas dos romances e das novelas de Rubem Fonseca são criminosos perigosos - “O Selvagem da Ópera” é novamente a exceção à regra.
6) PERSONAGEM: As figuras secundárias dos romances e das novelas de Fonseca e os protagonistas dos contos do autor são essencialmente pessoas marginalizadas socialmente (prostitutas, assassinos, traficantes de drogas, políticos corruptos, empresários desonestos, etc.)
7) PERSONAGEM: No caso dos romances, há figuras históricas (ou seja, reais) no meio da trama ficcional – As exceções são “O Caso Morel”, “Diário de um Fescenino” e “Mandrake, A Bíblia e a Bengala”.
8) ESPAÇO NARRATIVO: Os romances e as novelas de Rubem Fonseca se passam na cidade do Rio de Janeiro – A exceção (adivinhe!?) é “O Selvagem da Ópera”, que se passa principalmente na Europa.
9) ESPAÇO NARRATIVO: Uma das principais características da literatura de Fonseca é o acentuado contraste social e estético dos espaços narrativos. O tempo inteiro, há a dicotomia entre o belo-feio, o grande-pequeno, o calmo-violento, o limpo-sujo e o rico-pobre. Ler as histórias deste autor é mergulhar nos contrastes sociais brasileiros.
10) TEMPO NARRATIVO: As tramas dos romances e das novelas fonsequianas se passam prioritariamente no tempo presente de quando o autor as escreveu – As exceções são os romances históricos “Agosto” e “O Selvagem da Ópera”.[if !supportLists]
11) TEMPO NARRATIVO: Há a mistura de tempo cronológico e de tempo psicológico como recurso narrativo em todos os romances e novelas do escritor mineiro – As exceções são novamente “Agosto” (uso de flashback) e “O Selvagem da Ópera” (uso de flashback).
12) AMBIENTAÇÃO: As histórias de Rubem Fonseca têm como base a violência generalizada, a banalização do sexo, a corrupção, as mentiras, as injustiças sociais, os crimes de vários tipos e as escatologias humanas.
13) REALIDADE FICCIONAL: As tramas do autor estão ancoradas na realidade nua e crua da vida real, o que podemos chamar de Hiper-realismo ou mesmo Neorrealismo Violento.
14) NARRADOR: Quando analisamos os oito romances de Fonseca, percebemos que seus textos são em primeira pessoa. A exceção é “Agosto” (narração em terceira pessoa – narrador onisciente).
15) NARRADOR: Uma vez em primeira pessoa, os romances de Rubem Fonseca são conduzidos pelo narrador-protagonista. A exceção é “O Selvagem da Ópera” (narrador-testemunha).
16) LINGUAGEM: O bom humor (mesmo diante de ambientes com tantos crimes e violência) é uma das marcas das narrativas de Fonseca. A única narrativa longa do mineiro sem esse expediente é “O Selvagem da Ópera” (não à toa, este é o livro mais chato de seu portfólio).
17) LINGUAGEM: O autor usa mais de um código linguístico para construir suas tramas (esta questão fica mais evidente nos romances). O português é a base idiomática, mas há passagens, frases e palavras em latim, alemão, francês, espanhol e italiano, por exemplo, sem a tradução direta (cabe ao leitor fazer a tradução dos termos estrangeiros).
18) LINGUAGEM: Mistura ao longo das narrativas do linguajar coloquial/vulgar com a linguagem formal e específica de algumas profissões. Esse contraste (erudito versus popular) é uma das principais marcas da literatura de Fonseca.
19) LINGUAGEM: Quando analisamos os romances do autor, notamos o uso da metalinguagem como elemento narrativo – suas histórias sempre falam de alguma produção artística. As exceções são “A Grande Arte” e “Agosto”.
20) TEXTUALIDADE: Uso exagerado da intertextualidade. Há sempre a citação ou a referência a elementos da literatura, da música, do teatro, do cinema, da pintura, da ópera, da filosofia, da psicologia, da política, da história, da ciência e do direito. Esse aspecto é mais evidente nas narrativas médias e longas do escritor.
Espero que todos tenham gostado do Desafio Literário de setembro. Ler Rubem Fonseca é mergulhar no que há de mais interessante, ousado e forte na literatura brasileira contemporânea. E o(a) próximo(a) autor(a) que será analisado(a) no Bonas Histórias é a chilena Isabel Allende, uma das vozes mais importantes da literatura sul-americana da atualidade. A proposta do blog é novamente ler seis dos principais livros dela em outubro e, no final deste período, construir uma análise literária completa sobre o estilo de Allende. Bom Desafio Literário de outubro para todos nós!
Bibliografia:
AGÊNCIA RIFF. José Rubem Fonseca. Seção Nossos Autores - Escritores Brasileiros. Website da agência. Acesso em 20 ago. 2017. Link: http://www.agenciariff.com.br/site/AutorCliente/Autor/35
BONACORCI, Ricardo. Análise Literária dos Romances de Rubem Fonseca – Investigando a Nova Literatura Brasileira. Projeto de Iniciação Científica. Varginha: Centro Universitário do Sul de Minas (UNIS-MG), 2018.
FONSECA, Rubem. O Caso Morel. Rio de Janeiro: Globo, 1973.
FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. São Paulo: Nova Fronteira, 1975.
FONSECA, Rubem. A Grande Arte. São Paulo: Círculo do Livro, 1983.
FONSECA, Rubem. Bufo & Spallanzani. 29a ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985.
FONSECA, Rubem. Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
FONSECA, Rubem. Agosto. Coleção Folha de São Paulo. São Paulo: MEDIAfashion, 1990.
FONSECA, Rubem. O Selvagem da Ópera. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
FONSECA, Rubem. E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
FONSECA, Rubem. O Doente Molière. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
FONSECA, Rubem. Diário de um Fescenino. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
FONSECA, Rubem. Mandrake - A Bíblia e a Bengala. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
FONSECA, Rubem. O Seminarista. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
FONSECA, Rubem. José. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
PEREIRA, Maria Antonieta. No Fio do Texto - A Obra de Rubem Fonseca. Belo Horizonte: FALE/ UFMG, 2000.
RODRIGUES, Sérgio. Rubem Fonseca Parece Encher Nova Obra com Esboços Tirados do Lixo. Folha de São Paulo. São Paulo, 8 abr. 2017. Ilustrada.
TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. 5a ed., Coleção Debates, São Paulo: Perspectiva, 2013.
VIANNA, Luiz Fernando. José, 80. Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada. São Paulo: 7 mai. 2005.
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