Neste final de semana, li um livro curioso. Eu o baixei gratuitamente há cerca de três ou quatro meses em uma visita despretensiosa à Loja Kindle, da Amazon. Contudo, só agora consegui lê-lo. A publicação em questão é “Conte Outra Vez” (ebook), uma coletânea de contos inspirada nas músicas de Raul Seixas. Organizada por T. K. Pereira, esta obra reúne 35 narrativas curtas criadas a partir do panorama musical do principal roqueiro da história do Brasil. O material ainda traz uma elegia criada por Bráulio Tavares. Com uma proposta tão ousada, uma capa belíssima estampando o rosto do músico baiano e um título intertextual (“Tente Outra Vez” é uma das canções mais conhecidas de Raulzito), achei este livro uma ótima opção de leitura. Só não o li antes pois estava mergulhado nos materiais do Desafio Literário desta temporada do Bonas Histórias.
“Conte Outra Vez” foi publicado em agosto de 2019 exclusivamente na versão digital. O lançamento desta obra homenageou o trigésimo aniversário de falecimento de Raul Seixas. Morto aos 44 anos, em 21 de agosto de 1989, em São Paulo, o roqueiro sucumbiu ao alcoolismo, que o acompanhou por muitos anos, e pelo esquecimento de tomar insulina na noite anterior (ele era diabético). Se naquela data o Brasil perdia um dos seus principais artistas, o país ganhou, a partir de então, um ícone musical. Até hoje, o baiano que misturou ritmos (baião, chorinho, samba, bolero etc.) ao rock norte-americano é aclamado por várias gerações, algumas que nasceram depois de seu falecimento. É incrível notar a perenidade de seu trabalho e de seu nome na cultura popular brasileira.
“Conte Outra Vez” serve-se justamente desse saudosismo e da força narrativa das composições de Raul Seixas. A proposta do livro é que cada conto, produzido por um autor diferente, dialogasse com uma canção distinta do roqueiro. Ao todo são 35 pequenas histórias sobre 34 músicas (temos, no meio do caminho, a repetição de uma música). E a elegia não foi inspirada em uma canção específica e sim nas trajetórias pessoal e profissional do Maluco Beleza. Assim, sob a coordenação de T. K. Pereira, que também escreveu uma história, três dezenas e meia de bons escritores de vários cantos do país lançaram-se ao desafio de reproduzir as ideias, as tramas ficcionais e as concepções filosóficas das músicas de Raulzito para a literatura contemporânea. Dialogando livremente com as letras e com as melodias selecionadas, eles tinham que recriar o universo caótico, amalucado, místico, libertário, contestador e, por que não, preconceituoso de Raul Seixas.
No grupo de autores convidados para participar da coletânea de contos temos, além dos próprios T. K. Pereira e Bráulio Tavares, Adriane Garcia, Alessandra Bacelar, Alessandro Garcia, Ana Elisa Ribeiro, Ana Luiza Rizzo, Betzaida Mata, Bruna Brönstrup, Bruno Ribeiro, Cinthia Kriemler, Cris Vazquez, Cristiano Rato, Eduardo Sabino, Elizabeth Gouvea, Gisela Rodriguez, Irka Barrios, Ivandro Menezes, João Matias, Joedson, Julia Dantas, Katia Gerlach, Matheus Borges, Maurem Kayna, Nathalie Lourenço, Renata Wolff, Roberto Menezes, Samuel Medina, Sérgio Tavares, Simone Teodoro, T. S. Marcon, Tadeu Sarmento, Taiane Maria Bonita, Tiago Germano, Tiago Motta e Wander Shirukaya.
As músicas consideradas neste projeto editorial foram: “Se o Rádio Não Toca”, “Para Nóia”, “Metamorfose Ambulante”, “O Trem das 7”, “Ave Maria da Rua”, “Check-up”, “Maluco Beleza”, “Ouro de Tolo”, “Al Capone”, “Na Rodoviária”, “Canto pra Minha Morte”, “Você Roubou Meu Videocassete”, “O Dia em que a Terra Parou”, “Gita”, “Mosca na Sopa”, “A Maçã”, “Sociedade Alternativa”, “Meu Amigo Pedro”, “Gospel”, “Paranóia II”, “Medo da Chuva”, “Aluga-se”, “Segredo da Luz”, “Caminhos”, “Trem 103”, “Metrô Linha 743”, “S.O.S.”, “Tente Outra Vez”, “Mamãe Eu Não Queria”, “Dr. Pacheco”, “Judas”, “Sessão das 10”, “Como Vovó Já Dizia” e “Rock das Aranhas”. Não é preciso ser um grande fã de Raul Seixas para notar que seus principais sucessos estão contemplados nesta lista. Só senti falta mesmo de “Cowboy Fora da Lei”, “Eu Nasci Há 10 mil Anos Atrás” e “O Carimbador Maluco”, hits famosos que não podiam faltar em uma boa coletânea de canções do astro.
“Conte Outra Vez” possui 264 páginas. Seus 35 contos são “Doutor Pacheco, o Herói dos Dias Úteis” (de Tadeu Sarmento), “Manual de Escrita Criativa” (de Ivandro Menezes), “É Chato Chegar a Um Objetivo Num Instante” (Ana Elisa Ribeiro), “Bel Cadore” (Cris Vasquez), “Lírios do Campo, Cebolas e Alhos” (de Cinthia Kriemler), “Limo, Traças e Outros Efeitos da Chuva” (Maurem Kayna), “Matinês” (Tiago Germano), “Sociedades Alternativas” (de Joedson), “Depois do Fim” (Ana Luiza Rizzo), “S.O.S.” (Simone Teodoro), “A Mulher Mais Sábia” (Irka Barrios), “A Música que Você Quer Ouvir” (de Adriane Garcia), “Duas Versões de uma Mesma História” (de Tiago Motta), “As Baianas Não Cantam Gospel” (de Kátia Gerlach), “As Chaves do Céu” (de T. K. Pereira), “Trago Comigo Um Boneco de Resina” (de João Matias), “Caminhos” (de Roberto Menezes), “Intuição do Deserto” (de Alessandra Bacelar), “A Noiva da MG-030” (de Eduardo Sabino), “Sentir” (de Alessandro Garcia), “Glória e Perdição” (de Julia Dantas), “Nas Letras do Teu Nome” (de Betzaida Mata), “Volta ao Redor da Minha Mente” (de Bruno Ribeiro), “A Poeta e o Mendigo” (Gisela Rodriguez), “Malhação de Judas” (Taiane Maria Bonita), “Na Rodoviária” (de Cristiano Rato), “Versão Brasileira” (de Nathalie Lourenço), “Uma Cobra, Duas Aranhas” (de Wander Shirukaya), “Homens Sem Princípios” (de Sérgio Tavares), “Mas Fui, Obrigado” (T. S. Marcon), “O Bilhete” (de Samuel Medina), “O Mágico” (de Renata Wolff), “Parasita” (Matheus Borges), “Pietro” (de Bruna Brönstrup) e “O Roubo” (de Elizabeth Gouvea). No último texto do livro, temos a elegia “Chegada de Raul Seixas ao Castelo de Avalon” (de Bráulio Tavares). Os versos foram musicados pelo compositor. Há inclusive um vídeo no YouTube com a performance de Tavares.
Em “Doutor Pacheco, o Herói dos Dias Úteis” (baseado em “Doutor Pacheco”), assistimos ao enlouquecimento do protagonista, cansado de sua vidinha tediosa no escritório. O segundo conto é “Manual de Escrita Criativa” (inspirado em “Mosca na Sopa”). Nele, um escritor iniciante sofre para produzir a primeira cena de seu texto ficcional. “É Chato Chegar a Um Objetivo Num Instante” é a narrativa (criada a partir de “Metamorfose Ambulante”) em que um músico principiante sofre ao tocar em um barzinho ao lado de sua banda desconhecida. “Bel Cadore”, a quarta narrativa do livro (elaborada em cima de “Al Capone”), apresenta a chefe de uma famosa rede de prostituição. Bel, como a personagem é chamada, só foi presa porque sonegou o Imposto de Renda. Em “Lírios do Campo, Cebolas e Alhos” (história coirmã de “Ouro de Tolo”), Carlos Emannuel foi criado na riqueza, mas ficou pobre depois da morte e da falência do pai. Aí, o rapaz se apegou à religião para se reerguer. “Limo, Traças e Outros Efeitos da Chuva” (“Medo da Chuva”) trata de uma universitária de 23 anos que está dividida entre o casamento com um rapaz sério e bem-quisto por sua família e a paixonite por um colega aventureiro e cabeludo.
“Matinês” (baseado em “Sessão das 10”) mostra a relação das diferentes gerações de uma família com o cinema de sua pequena cidade do interior. O oitavo conto de “Conte Outra Vez” é “Sociedades Alternativas” (inspirado em “Sociedade Alternativa”). Ele é uma distopia em prosa poética que narra a evolução das comunidades hippies ao longo dos tempos. Em “Depois do Fim” (criado a partir de “O Trem das 7”), Rosa é uma professora que teve problemas no parto dos gêmeos. Por isso, precisou deixar para sempre a escola em que trabalhava. “S.O.S.”, a décima narrativa da coletânea (elaborada em cima da canção homônima), apresenta a dupla de extraterrestres que visita o Brasil em 1989. Eles recebem um chamado inusitado. Em “A Mulher Mais Sábia” (história nascida de “Gita”), Yukino ouve em seus sonhos uma voz recorrente. Por isso, ela resolve explorar uma área sombria e abandonada da cidade em busca das revelações de um mundo igualitário. “A Música que Você Quer Ouvir” (“Se o Rádio Não Toca”) trata de uma moça recém-saída da puberdade que é estuprada por um homem chamado Murilo. Para sua perplexidade, seus pais exigem que ela se case com o estuprador.
Em “Duas Versões de Uma Mesma História” (baseado em “Como Vovó Já Dizia”), assistimos ao drama de um rapaz que trabalha sem parar editando filmes publicitários. Após várias noites não dormidas, o que ele mais quer é achar seus colírios. A décima quarta história do livro é “As Baianas Não Ouvem Gospel” (inspirado em “Gospel”). Nela, um cantor brasileiro vive exilado em Nova York. Lá, ele visita John Lennon, enquanto precisa sobreviver pelas ruas da cidade norte-americana. “As Chaves do Céu” é a narrativa (criada a partir de “Tente Outra Vez”) em que um músico famoso vive o ocaso profissional. Deprimido, ele só pensa em se suicidar, caminho mais fácil para aplacar suas dores íntimas. “Trago Comigo Um Boneco de Resina”, o décimo sexto conto da coletânea (elaborado em cima de “A Maçã”), apresenta Lucrécia. Mulher do vereador, ela é julgada pelo assassinato do marido. Em “Caminhos” (história coirmã da canção homônima), a fauna e a flora são impactadas pelas transformações produzidas pelas mudanças das estações – a passagem do Inverno para a Primavera. “Intuição no Deserto” (“Para Nóia”) trata das reflexões de Ariadne, uma mulher que insiste em sobreviver às adversidades da vida. Ao caminhar por uma estrada em um dia de forte calor, ela encontra uma mãe e uma filha. A cena suscita lembranças de sua infância.
“A Noiva da MG-030” (baseado em “Canto para Minha Mente”) mostra a viagem de um ônibus pelas estradas de Minas Gerais. Na madrugada chuvosa, uma mulher vestida de noiva acena para o ônibus, mas só um passageiro avista a cena. O vigésimo conto de “Conte Outra Vez” é “Sentir” (inspirado em “Meu Amigo Pedro”). Narrada em segunda pessoa do singular, esta história mostra a rotina de Pedro, um rapaz obcecado por uma colega do escritório. Em “Glória e Perdição” (criado também a partir da música “Meu Amigo Pedro”), Luísa, a recepcionista anárquica de um escritório, e Pedro, o analista certinho daquela empresa, fazem amizade, apesar das incontáveis diferenças entre eles. “Nas Letras do Teu Nome”, a vigésima segunda história da coletânea (elaborada em cima de “Ave Maria da Rua”), apresenta o drama de uma diarista grávida. Após ser abandonada pelo namorado na rua, ela precisa caminhar até sua casa passando pela Cracolândia. Em “Volta ao Redor da Minha Mente” (história nascida de “Maluco Beleza”), um músico metido a escritor se droga após realizar seu show. Sob os efeitos da overdose e trancado no camarim, ele divaga sobre a vida. “A poeta e o Mendigo” (“O Dia em que a Terra Parou”) trata do encontro de Samanta, uma garçonete apaixonada por poesia, e Jonas, um pé-rapado que gosta de filosofar sobre a passagem do tempo.
Em “Malhação de Judas” (baseado em “Judas”), assistimos à desavença ocorrida em uma ceia de meninos. Flavinho se sente traído quando seu amor por Clara é exposto aos amigos. O vigésimo sexto conto é “Na Rodoviária” (inspirado na música homônima). Nele, um homem acorda de madrugada sem saber direito onde está. O silêncio, a solidão e o marasmo o atordoam. “Versão Brasileira” é a narrativa (criada a partir de “Aluga-se”) em que um casal de brasileiros gosta de se passar por estrangeiros durante as férias de Verão. Erika e Benjamin fingem ser canadenses enquanto estão hospedados em uma pousada à beira da praia. “Uma Cobra, Duas Aranhas”, a vigésima oitava narrativa do livro (elaborada em cima de “Rock das Aranhas”), apresenta Raul, um guitarrista universitário metido a Don Juan. Ele fica indignado quando encontra duas mulheres transando no banheiro de uma festa. Em “Homens Sem Princípios” (história coirmã de “Metrô Linha 743”), um rapaz que fazia entregas de roupas lavadas por sua mãe fila um cigarro de um desconhecido no meio da rua. A partir daí, ele é confundido com terroristas pelos militares. Preso e torturado, ele precisa provar sua inocência. “Mas Fui, Obrigado” (“Mamãe, Eu Não Queria”) trata do drama de um jovem forçado pelos pais a se alistar no Exército. Apesar de gostar de escrever, ele segue na vida militar. Algo que ele não esquece foi de um exercício conduzido pelo Sargento Seixas que exigia o sacrifício de um pequeno coelho branco.
“O Bilhete” (baseado em “Trem 103”) mostra um rapaz à procura da plataforma 103 na estação de trem. Ele é guiado pelo texto de um bilhete. O trigésimo segundo conto de “Conte Outra Vez” é “O Mágico” (inspirado em “Segredo da Luz”). Em um Verão marcado pela falta constante de luz, a população de uma cidade se diverte com o show de um mágico com poderes hipnóticos. Em “Parasita” (criado a partir de “Paranoia II”), um rapaz aproveita-se do fato do apartamento ao lado do seu estar desocupado para explorar o local. Ele está intrigado com o barulho inexplicável que vem dali. É o início de uma aventura policial com tintas de drama psicológico. “Pietro”, a penúltima história da coletânea (elaborada em cima de “Check-up”), apresenta o surto de um rapaz até então certinho. Diante de tantos compromissos e obrigações, Pietro parece ter enlouquecido. Por outro lado, após abandonar as suas responsabilidades, ele começa a viver de fato. Em “O Roubo” (história nascida de “Você Roubou Meu Videocassete”), uma cantora de churrascaria vai à delegacia denunciar o marido por violência doméstica. O delegado de plantão reconhece a artista. Ele e sua mãezinha são fãs antigos da cantora, daqueles que vão à churrascaria mais pela música do que pela carne servida. Por fim, temos a elegia intitulada “Chegada de Raul Seixas ao Castelo de Avalon”. Como o próprio nome do poema diz, ele mistura a trajetória do cantor brasileiro com aspectos do mito do Rei Arthur.
Se você for ler “Conte Outra Vez” da maneira tradicional (abrir a publicação e percorrer suas páginas), talvez consiga terminar o livro em um único dia. Ele demanda algo em torno de quatro a cinco horas de leitura. Entretanto, há indiscutivelmente um jeito muito melhor para degustar essas narrativas. Antes de ler cada trama, é legal ouvir a música pela qual cada história foi inspirada. Afinal, nem todo mundo tem na cabeça cada uma das criações de Raul Seixas, né? Nesse caso, o tempo de duração da experiência literário-musical dobra. Apesar de se estender consideravelmente, saiba que vale a pena fazer isso. Foi o que fiz na noite da última sexta-feira e na tarde do sábado seguinte. Antes de ler cada história, colocava para tocar Raul. Muito bom!
Em suma, o que achei de “Conte Outra Vez”?! Em primeiro lugar, considerei muito interessante a proposta deste livro. Obviamente, falo isso na condição de fã inveterado de Raul Seixas. Desde a minha infância/adolescência, sou maluco pelas músicas do roqueiro. Por isso, não resisti à ideia desta obra. É verdade também que não se trata de uma ideia tão original assim - “Conte Outra Vez” é uma publicação atraente, mas não inovadora. De cabeça, lembro de ao menos duas coletâneas de contos com linha editorial parecidíssima a essa e que foram publicadas antes: “Contos de Um Maluco Beleza” (Kiron), de Vicente de Melo, e “Outro Livro na Estante” (Mondrongo), organizada por Herculano Neto e Gustavo Felicíssimo. Não seria de se estranhar a existência de outros títulos com essa mesma pegada.
Se já foram lançados livros iguais a “Conte Outra Vez”, o principal mérito desta obra de T. K. Pereira foi ter aprofundado sua proposta editorial a níveis que ninguém havia se aproximado até então. Esta coletânea reúne 35 histórias inspiradas em músicas de todas as fases da carreira de Raul. Se você pegar as canções consideradas pelos autores de “Conte Outra Vez”, elas abrangem a discografia completa do cantor baiano. Ou seja, estão neste livro criações dos 17 álbuns gravados em estúdio por Raul Seixas, de 1968 a 1989. É inegável que houve um trabalho cuidadoso para a seleção das músicas que seriam transformadas em textos literários.
Além disso, foram convocados ótimos escritores para essa empreitada. Eles vieram de oito Estados brasileiros: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Bahia, Pernambuco e Paraíba. A maioria dos autores é composta por nomes experientes do cenário literário nacional, com várias publicações nas costas e alguns importantes prêmios nas estantes. A alta qualificação dos escritores refletiu-se na excelência dos textos do livro. De maneira geral, as narrativas de “Conte Outra Vez” são ótimas, valendo a pena sua leitura. Ao menos se você for fã das músicas de Raul Seixas...
Saliento essa questão porque a maior graça desta coletânea de contos está, obviamente, no diálogo direto com as criações musicais do principal roqueiro nacional. Se você não conhece profundamente o trabalho do cantor homenageado, acredito que o conteúdo desta obra não faça muito sentido para você. Sem o lastro das referências musicais, os leitores não serão impactados tão fortemente pelas histórias deste livro. É a mesma coisa de ouvir uma piada sobre um acontecimento que não se tem ciência. A piada fica sem graça, claro! E a culpa não é dela nem do seu contador. E sim do ouvinte, que desconhece o assunto que está sendo citado.
Quem consegue acompanhar a intertextualidade musical, encontrará histórias primorosas em “Conte Outra Vez”. As minhas favoritas são: “É Chato Chegar a Um Objetivo Num Instante” (“Metamorfose Ambulante”), de Ana Elisa Ribeiro, “Bel Cadore” (Al Capone), de Cris Vasquez, “Lírios do Campo, Cebolas e Alhos” (“Ouro de Tolo”), de Cinthia Kriemler, “Limo, Traças e Outros Efeitos da Chuva” (“Medo da Chuva”), de Maurem Kayna, “Depois do Fim” (O Trem das 7”), de Ana Luiza Rizzo, “S.O.S.” (“S.O.S.”), de Simone Teodoro, “A Mulher Mais Sábia” (“Gita”), de Irka Barrios, “Duas Versões de uma Mesma História” (“Como Vovó Já Dizia”), de Tiago Motta, “Glória e Perdição” (“Meu Amigo Pedro”), de Julia Dantas, “Malhação de Judas” (“Judas”), de Taiane Maria Bonita, e “Homens Sem Princípios” (“Metrô Linha 743”), de Sérgio Tavares. Com inteligência, bom humor e uma narrativa impecável, essas tramas dialogam intimamente com as músicas de Raulzito.
Essa é justamente a tônica do livro. Dos 35 contos, poucos não conversam direta ou indiretamente com as narrativas de suas músicas ou não resvalam no teor de suas letras. Há também um ou outro caso de narrativas literárias que invertem o teor das canções. Contudo, essas derrapadas são exceções (e podem ser contadas nos dedos de uma mão). A quase totalidade das ficções possui lastros e justificativas para as escolhas artísticas de seus autores. É aí justamente que essa coletânea de contos ganha em dimensão e em qualidade literária.
Dos aspectos que não gostei em “Conte Outra Vez”, posso citar a apresentação dos autores no meio do texto e as justificativas, em alguns casos, pouco relevantes para as escolhas das canções homenageadas. Colocadas no final de cada conto, essas partes quebram um pouco o ritmo de leitura e atrapalham a experiência do leitor. Para piorar, lá no final do livro (onde essas informações deveriam ficar), assistimos à repetição do descritivo dos autores (“De novo isso!”, pensam os leitores incrédulos). Quanto às justificativas das músicas selecionadas, nem todas conseguiram expressar uma genuína relevância. Em um ou outro caso, pareceu até que o autor nem conhecia a canção em detalhe.
Também é possível notar alguns equívocos no processo de desenvolvimento do livro. Há uma música repetida (apesar da promessa do editor/organizador de não haver repetição) e a falta de canções famosas de Raul Seixas (enquanto temos algumas músicas desconhecidas entre as trabalhadas). Nesse sentido, deixar as escolhas das faixas musicais simplesmente para os autores não se mostrou uma decisão tão acertada assim. Também é estranho o fato de o subtítulo do livro anunciar 30 contos e termos 35. As transmutações do projeto editorial não precisavam ter ficado evidentes para os leitores. Podem ser detalhes, mas ainda sim essas escorregadinhas comprometem um pouco a qualidade final da coletânea.
De maneira geral, “Conte Outra Vez” é um livro que vale a pena ser conhecido. Se você for fã de Raul Seixas, esta leitura proporcionará uma experiência inusitada e riquíssima do legado artístico do maior roqueiro brasileiro da história. Infelizmente, esta obra está disponível apenas em ebook (sei que não são todos que gostam e têm acesso a essa forma de leitura). Quem sabe a coletânea de contos organizada por T. K. Pereira não seja publicada futuramente em versão física, hein? Qualidade para isso ela tem de sobra. Torçamos!
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