Neste final de semana, li um dos livros mais conhecidos de Alexandre Pushkin, escritor russo considerado o fundador da prosa moderna em seu país. Ele também é o maior poeta romântico da Rússia. A obra em questão é “A Filha do Capitão” (Principis), romance histórico ambientado na segunda metade do século XVIII. Sua trama aborda a Rebelião de Pugatchov (também grafada como Pugatchev). Ocorrido entre 1773 e 1775, esse levante popular colocou os camponeses pobres e famintos liderados pelo cossaco Emelian Pugatchov contra o exército czarista. Os motivos da revolta foram a supressão dos direitos da camada social mais humilde e o aumento dos benefícios da nobreza (receita para quase todos os levantes populares dos últimos séculos). Diante do descontentamento popular, Pugatchov reuniu um exército de 70 mil homens, convocados entre a classe mais desfavorecida da Rússia. Sua tropa marchou pelo interior do país com o objetivo de tirar do poder a família czarista. Quando isso ocorresse, Pugatchov assumiria o governo da nação como seu novo imperador. Pelo menos, era essa a sua pretensão...
Comprei “A Filha do Capitão” no comecinho deste ano, em uma visita à Livraria Cultura do Shopping Bourbon Pompéia (época em que caminhar pelas estantes das lojas de livros era ainda um passeio corriqueiro, seguro e permitido!). A Principis, selo da Ciranda Cultural, está lançando, desde o finalzinho de 2019, uma série de clássicos da literatura nacional e internacional. O mais legal é o custo desses livros: apenas R$ 9,90. E pelo que entendi, essa faixa de valor não é promoção e sim política de preço. Incrível! Achei uma pechincha pela qualidade dos títulos e pela beleza de seus projetos gráficos. Confesso que saí da livraria com um punhado de clássicos da literatura russa, francesa, inglesa, espanhola e brasileira em minha sacola. Naquele momento, eu não sabia que ficaria alguns meses sem poder comprar nenhum novo livro diretamente das lojas físicas. Se soubesse, teria escolhido mais alguns títulos.
Publicado em 1836, “A Filha do Capitão” foi lançado originalmente em fascículos por uma revista literária russa. Só mais tarde, quando seu autor já tinha falecido, o romance seria convertido em livro (versão como conhecemos atualmente). “A Filha do Capitão” foi escrito na fase final da curta carreira literária de Alexandre Pushkin. Não por acaso, este foi um de seus últimos trabalhos. Aos 37 anos, Pushkin morreu em fevereiro de 1837 à la Euclides da Cunha. Ao desafiar para um duelo o possível amante de sua esposa, um caso extraconjugal que se tornou ruidoso na corte de São Petersburgo, Alexandre se deu mal. Morreu dois dias depois do duelo, vítima dos ferimentos proferidos pelo oponente.
Clássico da literatura russa desde então, “A Filha do Capitão” é leitura obrigatória em seu país. Esta obra foi adaptada várias vezes para o cinema e para a televisão. São incontáveis os filmes produzidos a partir desta trama histórica. Há também peças teatrais inspiradas no drama dos protagonistas do romance. O mais interessante deste livro é que ele reúne um pouco das principais características narrativas que tornaram o estilo literário de Alexandre Pushkin tão valorizado. Vale a pena destacar que muitos autores russos das gerações seguintes se inspiraram na estética de sua prosa. Não à toa, Pushkin influenciou diretamente Nikolai Gogol, Mikhail Lérmontov e Ivan Turguêniev e indiretamente Liev Tolstói, Fiódor Dostoiévski, Anton Tchekhov e Máximo Gorki (integrantes da fase de ouro da literatura russa). Nada mal, hein?
Em “A Filha do Capitão”, assistimos à mistura de sátira sócio-política (crítica tanto à sociedade quanto às instituições do país) com romantismo exacerbado (os apaixonados são capazes de qualquer coisa em nome do amor), entrelaçamento de realidade e ficção (passagens e personagens verídicas junto com personagens e cenas inventadas), dramas psicológicos profundos e linguagem coloquial. Ao lado de “Contos de Belkin” (Nova Alexandria) e “A Dama de Espadas” (Editora 34), “A Filha do Capitão” está entre os maiores sucessos em prosa de Alexandre Pushkin.
O enredo deste romance começa em Simbirsk, sudoeste da Rússia. Andrei Petróivitch Grinióv é um rico senhor de terras que fez carreira no exército russo quando jovem. Casado com Avdótia Vassílievna U, ele teve nove filhos. Porém, apenas um, Piotr Andrêitch Grinióv, chegou à idade adulta. Todos os outros morreram ainda na infância. Criado com muita subserviência pela família e pelos funcionários da casa, Piotr cresceu inconsequente, ingênuo e mimado. Por isso, ao completar 17 anos, o rapaz foi enviado pelo pai, que ainda tinha esperanças de que o filho se tornasse um homem sério e responsável, para o exército.
Para Piotr Andrêitch não seguir com a vida tranquila e confortável nas Forças Armadas, o que não contribuiria em nada para sua formação, Andrei Petróivitch escreveu para seus ex-colegas de farda pedindo que o filho não fosse enviado para um local bom, como São Petersburgo, por exemplo, a então capital do país. Ele queria que o rapaz amadurecesse sozinho em um local distante dos grandes centros urbanos. Assim, o general Andrei Kárlovitch, amigo de longa data de Andrei e o agora chefão de Piotr, mandou o jovem soldado para a Fortaleza Bielogórskaia, nos confins da província de Oremburgo.
Para supervisionar e assessorar Piotr no dia a dia (afinal ninguém é de ferro, né?), a família enviou um velho cavalariço, Arkhip Savélitch. Savélitch, que fora encarregado da educação formal do filho de Andrei e Avdótia Vassílievna no passado, seria agora o funcionário particular do rapaz. Dessa maneira começam os dramas do protagonista de “A Filha do Capitão”. É o próprio Piotr Andrêitch quem narra em primeira pessoa suas aventuras pelo interior da Rússia.
Depois de uma viagem desastrosa e amalucada, Piotr e Savélitch chegam, enfim, à Fortaleza Bielogórskaia. Lá, eles são muito bem recebidos pelo capitão Ivan Kuzmitch e por sua esposa Vassilissa Iegórouna. Rapidamente, o jovem soldado se torna amigo íntimo dos comandantes, compartilhando sua rotina doméstica e sua residência. Contudo, a vida tranquila no pequeno vilarejo esconde alguns perigos. O primeiro problema responde pelo nome de Aleksei Ivanytch. Chamado por todos de Chvábrin (seu apelido), Aleksei é um soldado experiente da Fortaleza Bielogórskaia. O veterano é apaixonado por Mária Ivánovna, a filha de 18 anos de Ivan Kuzmitch e Vassilissa Iegórouna. Ao notar que Piotr também se apaixonou pela filha do capitão, Chvábrin inicia uma violenta rivalidade com o novato.
O segundo inimigo do protagonista se chama Pugatchov. Em meio à guerra particular entre Piotr e Chvábrin pelo coração de Mária Ivánovna, a Fortaleza Bielogórskaia torna-se alvo de um grupo cossaco rebelde. Liderados pelo sanguinário Pugatchov, os numerosos e bem armados revoltosos já destruíram várias fortalezas em Oremburgo e querem depor Catarina II do posto de czarina russa. O confronto entre os soldados do capitão Ivan Kuzmitch e a tropa de Pugatchov parece iminente. E pelo andar da carruagem, a disputa tem tudo para levar ao fracasso do exército incumbido de proteger a Fortaleza Bielogórskaia.
Nesse cenário desolador, a maior preocupação de Piotr Andrêitch não é tanto pela sua vida. O rapaz teme pelo que possa acontecer com sua amada quando Pugatchov invadir o local e colocar seus olhos nela. A beleza virginal da moça, acredita ele, na certa enfeitiçará o líder cossaco. Assim, Piotr lutará em nome da honra de Mária Ivánovna e de toda a família dela.
“A Filha do Capitão” é um romance enxuto. Ele possui apenas 144 páginas. São 14 capítulos e um anexo. É possível ler este livro em duas noites tranquilamente. Foi o que fiz neste final de semana. Comecei a leitura na sexta-feira e a concluí no sábado. Não devo ter levado mais do que cinco horas ao todo para percorrer todo o seu conteúdo. Além de ser uma história gostosa de acompanhar, o texto de Alexandre Pushkin é fácil, divertido e reserva boas surpresas.
A primeira boa novidade desta edição da Principis é a inclusão de um capítulo extra aos demais 14 capítulos tradicionais da obra. Ao final de “A Filha do Capitão”, temos um anexo chamado de “Capítulo Excluído”. Apesar dessa parte constar nos originais de Pushkin, ela foi retirada na última hora pelo autor, quando a história foi publicada pela revista literária. Esse acréscimo feito pela editora brasileira é providencial pois esse trecho reserva um dos momentos mais emblemáticos e dramáticos da trama.
Como o “Capítulo Excluído” foi colocado como anexo (no final da obra) e não no meio da narrativa (lugar em que foi retirado), o leitor pode escolher entre lê-lo (versão completa do romance) ou não (versão final da história escolhida por Alexandre Pushkin). Por se tratar de uma parte muito interessante do romance, aconselho o leitor a não ignorar seu conteúdo. Afinal, são apenas 12 páginas de uma cena de alta dose de suspense e adrenalina (um dos clímaces da obra). Para isso, é preciso se atentar às notas de rodapé do livro. Na página 117, há o aviso, lá embaixo, em letras pequenas, para o início da leitura do anexo (essa parte entra exatamente nesse instante da narrativa). Vale a pena lê-lo.
E saiba que a inclusão do “Capítulo Excluído” não foi o único acerto da editora nacional. O projeto gráfico do livro e sua tradução estão impecáveis. O visual da obra é simples e bonito. Já a tradução de Irineu Franco Perpétuo é condizente com o texto elegante e direto de Pushkin. Destaque para as imperdíveis notas de rodapé do tradutor, que guiam o leitor pelos detalhes históricos, culturais, religiosos e do cotidiano russo no século XVIII.
O ponto mais interessante de “A Filha do Capitão” está na união de uma trama romântica (como tantas outras e extremamente piegas aos olhos do leitor moderno) com alguns elementos originais (o que explica sua importância e a perpetuação de sua história até os dias de hoje). Por exemplo, a ambientação histórica é um ponto positivo. Acompanhamos personagens e acontecimentos reais em meio à narrativa ficcional. Outra questão relevante está nas críticas sociais, que permeiam todo o enredo do livro. Sutilmente, Pushkin confere cutucadas aos seus conterrâneos e à sociedade da Rússia czarista. Esses elementos dão um colorido especial à trama clássica do casal que sofre para ficar junto.
Gostei muito da intertextualidade literária presente em “A Filha do Capitão”. É através das citações diretas e indiretas presentes no texto que conseguimos identificar as influências narrativas recebidas pelo autor do século XIX. Apesar de quase todas as referências ser de obras russas desconhecidas pela maioria dos leitores brasileiros, ainda sim elas são válidas. Por exemplo, há uma parte do romance em que uma das personagens brinca com Piotr Andrêitch chamando-o de Dom Quixote. Essa analogia objetiva ao clássico de Miguel de Cervantes ajuda-nos a entender alguns pontos de “A Filha do Capitão”. Realmente, o protagonista e seu fiel cavalariço são uma dupla cômica, principalmente na parte inicial da história. Portanto, não são meras coincidências as várias semelhanças de Piotr e Savélitch com Dom Quixote e Sancho Pança.
Outro elemento que merece elogios é a forma como os vilões foram construídos. Se Chvábrin é a típica personagem plana que não reserva nenhuma surpresa, o contrário não pode ser dito sobre Pugatchov. O sanguinário líder dos revoltosos é possuidor, ao mesmo tempo, de características positivas e de características negativas. É, portanto, uma personagem esférica. Boa parte da graça do desfecho de “A Filha do Capitão” está em compreender as motivações e os sentimentos deste vilão (sim, há um coraçãozinho dentro do sanguinário capaz de norteá-lo para atitudes honradas).
O único ponto negativo desta obra para o leitor brasileiro está nos difíceis nomes russos das personagens do romance. É preciso alguma atenção na leitura para não se confundir no emaranhado de letras e consoantes das alcunhas dos participantes da trama. Para piorar, os apelidos russos são bem diferentes dos nomes próprios (por exemplo, Aleksei Ivanytch é chamado de Chvábrin e Mária Ivánovna é chamada de Macha). E ora as personagens são citadas pelos nomes ora são chamadas pelos apelidos. Porém, as possíveis confusões são resolvidas com uma leitura minimamente atenta por parte do leitor.
Gostei muito de “A Filha do Capitão”. É muito bom ter acesso aos clássicos internacionais com títulos bem traduzidos, com ótimos projetos gráficos e a preços acessíveis. Juro que fiquei fã deste selo da Ciranda Cultural. Os leitores mais assíduos do Bonas Histórias devem ter reparado que já analisei, neste mês, outro livro dessa coleção: “A Ilha do Tesouro” (Principis), romance famoso do escocês Robert Louis Stevenson. Quem gostou desta série narrativa, aviso que novas obras serão analisadas aqui no blog. Esperem por novidades.
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