Em outubro do ano passado, analisamos o estilo literário de Gabriel García Márquez na coluna Desafio Literário. Para tal, foram comentadas, naquele mês, seis obras do escritor colombiano: “Relato de Um Náufrago” (Record), “Ninguém Escreve ao Coronel” (Record), “Cem Anos de Solidão” (Record), “Crônica de Uma Morte Anunciada” (Record), “Amor nos Tempos do Cólera” (Record) e “Memória de Minhas Putas Tristes” (Record). Sem dúvida, esses são os livros mais importantes de sua carreira. Contudo, senti falta de analisar, no Bonas Histórias, uma coletânea de contos do Nobel de Literatura de 1982. Gabo, como o autor era chamado carinhosamente, não foi apenas um grande novelista e romancista, mas também se destacou nas narrativas curtas. Para reparar essa ausência, li, na semana passada, “Olhos de Cão Azul” (Record). Este título é uma das mais inusitadas coleções de contos de Gabriel García Márquez.
As produções das histórias de “Olhos de Cão Azul” remontam ao início da carreira do colombiano, quando ele não havia estreado na literatura comercial. Naquele momento, Gabo ainda trabalhava como repórter em Barranquilla e Bogotá. Os contos deste livro foram escritos entre 1947 e 1955, época em que a fama de García Márquez na ficção parecia uma utopia de um escritor amador. A publicação de “Olhos de Cão Azul” só aconteceu em 1972. Após o sucesso retumbante de “Cem Anos de Solidão”, um dos livros mais vendidos da história, o interesse das grandes editoras pelos trabalhos de García Márquez aumentou consideravelmente. Aí algumas produções do autor que estavam guardadinhas há tempos na gaveta foram revitalizadas. “Olhos de Cão Azul” está na categoria de obras que chegaram às livrarias muito tempo depois de produzidas.
Com uma pegada macabra, “Olhos de Cão Azul” apresenta onze pequenas histórias de terror. O mote de suas tramas é a linha tênue que separa a vida e a morte. Seus conflitos são geralmente dramas psicológicos. Como não poderia faltar em se tratando de textos de Gabriel García Márquez, ainda temos generosas pitadas de Realismo Fantástico. Dessa forma, “Olhos de Cão Azul” joga luz a várias partes menos conhecidas da produção ficcional do colombiano: narrativas do gênero conto, tramas de terror e histórias desenvolvidas antes que a literatura tivesse se transformado em um ofício profissional. Só por essa análise em retrospectiva do amadurecimento/evolução de García Márquez como escritor, esse livro vale a pena (independentemente de sua qualidade).
Os onze contos de “Olhos de Cão Azul” são: “A Terceira Renúncia”, “A Outra Costela da Morte”, “Eva Está Dentro do seu Gato”, “Amargura para Três Sonâmbulos”, “Diálogo do Espelho”, “Olhos de Cão Azul”, “A Mulher que Chegava às Seis”, “Nabo, o Negro que Fez Esperar os Anjos”, “Alguém Desarruma Estas Rosas”, “Noite dos Alcaravões” e “Isabel Vendo Chover em Macondo”. O livro tem 160 páginas. Trata-se de uma leitura rápida. Precisei de um pouco mais de três horas para concluir seu conteúdo na última quinta-feira à noite.
Em “A Terceira Renúncia”, a primeira história desta coletânea, um rapaz é desenganado pelos médicos depois de contrair uma doença seríssima. A partir daí, ele passa a ter uma existência entre a vida e a morte (estado vegetativo). No livro, essa condição é chamada de estado “vivo-morto”. Ele tem consciência, mas seu corpo fica inerte em um ataúde. Assim, passa 18 anos de sua “vida-morte” sofrendo com um barulho insuportável em seu crânio.
A narrativa de “A Outra Costela da Morte” apresenta um homem que dorme no quarto ao lado onde seu irmão gêmeo é velado. Nesta noite perturbadora para o protagonista, ele tem pesadelos terríveis e alucinações desesperadoras. A morte do familiar próximo trará graves consequências para seu irmão gêmeo. E uma mulher carrega uma maldição difícil de se livrar em “Eva Está Dentro do seu Gato”: a beleza. Sua condição estética tira seu sono e traz muitos efeitos colaterais indesejados. Por isso, ela quer abandonar sua beleza em qualquer canto e passar a viver como uma pessoa comum.
“Amargura para Três Sonâmbulos”, o quarto conto, trata de três homens que convivem com uma mulher mais velha em uma casa isolada. Pouco a pouco, a moradora vai abdicando de coisas básicas: sair da residência, andar, se levantar, se mexer, ver, ouvir... Depois de muitas privações, ela resolve nunca mais sorrir. Em “Diálogo do Espelho”, um sujeito desperta para mais um dia convencional. O que fazer frente à rotina tão tediosa? Abrir os olhos e seguir para a realidade tão conhecida ou continuar com os olhos fechados e mergulhar em devaneios oníricos?
“Olhos de Cão Azul” é a narrativa curta que empresta seu nome para o título da obra. Nessa história, uma mulher sonha sempre com um mesmo homem que lhe diz: olhos de cão azul. Assim, ao acordar de manhã, ela passa a procurá-lo obstinadamente. Para tal, ela escreve a frase dele pelas paredes da cidade. Acredita que assim poderá achá-lo. E “A Mulher que Chegava às Seis” descreve o drama de José, o dono de um restaurante. Ele é apaixonado por uma mulher que sempre chega às seis horas da tarde em seu estabelecimento. Um dia, porém, ela pede para o proprietário do lugar mentir pela primeira vez. Usando-se do amor que ele sente por ela, a cliente quer enganar a polícia. Trata-se de um caso, literalmente, de vida ou morte.
Em “Nabo, o Negro que Fez Esperar os Anjos”, o funcionário de uma fazenda que cuidava dos cavalos leva uma forte patada na cabeça. O acidente aconteceu quando o rapaz tentava pela primeira vez pentear o rabo do animal. A partir desse dia, ele passou a embaralhar a realidade e a imaginação (danos mentais), precisando ser isolado do convívio dos demais moradores e funcionários da propriedade rural. “Alguém Desarruma Estas Rosas” é o nono conto de “Olhos de Cão Azul”. Nele, um menino rouba, todo domingo, as rosas colocadas em seu quarto. Ele leva as flores para um túmulo no cemitério. Para conseguir tirar as rosas do lugar original, o garoto precisa despistar a mulher que vive naquela casa, que suspeita que alguém está mexendo em seus arranjos florais.
“Noite dos Alcaravões” relata o drama de três homens que foram atacados por alcaravões, um tipo de pássaro, quando tomavam cerveja na mesa de um bar. As aves arrancaram-lhe os olhos. Sem a visão, o trio perambula pela cidade como fantasmas. E em “Isabel Vendo Chover em Macondo”, a última história do livro, uma cidade é perturbada por uma chuva sem fim. O aguaceiro começou a cair, após uma longa seca, na saída da missa de domingo. E não parou mais, para desespero dos moradores.
Para ser sincero, não gostei muito de “Olhos de Cão Azul”. Esse foi o livro mais fraquinho de Gabriel García Márquez que li até hoje. Nota-se que ainda faltavam muitas coisas para o escritor chegar ao patamar de “Cem Anos de Solidão” e de “Amor nos Tempos do Cólera”, obviamente minhas referências para comparação. Entretanto, o principal motivo de minha decepção pode ter sido minha expectativa equivocada. Acreditava encontrar nesses contos um texto elegante, engraçado, satírico e com dramas amorosos peculiares. Ou seja, esperava encontrar o estilo com o qual García Márquez se tornou internacionalmente famoso. E o que “Olhos de Cão Azul” apresenta é algo totalmente distinto disso: um texto bruto, enredos mórbidos, tramas surreais, narrativas de múltiplas interpretações e uma ambientação tensa/angustiante. Quando eu ia imaginar que Gabo se propôs, algum dia, a produzir histórias de terror, hein?
Mesmo não tendo gostado do livro de forma geral, admito que achei interessantes alguns de seus contos. Os melhores são: “Olhos de Cão Azul”, “A Mulher que Chegava às Seis”, “Nabo, o Negro que Fez Esperar os Anjos” e “Noite dos Alcaravões”. Curiosamente, essas são tramas situadas na metade final da coletânea. “Diálogo do Espelho”, “Alguém Desarruma Estas Rosas” e “Amargura para Três Sonâmbulos” são também boas/razoáveis histórias. Já “A Terceira Renúncia”, “A Outra Costela da Morte” e “Eva Está Dentro do seu Gato” são narrativas muito herméticas. As várias barreiras textuais colocadas pelo autor para que o leitor não chegue rapidamente ao âmago dos conflitos tornam as leituras desses contos difíceis. Quanto a “Isabel Vendo Chover em Macondo”, essa história foi trabalhada com mais qualidade e intensidade em “Cem Anos de Solidão”. Não à toa, esta (a chuva que despenca por meses, em um aguaceiro sem fim) é uma das passagens mais célebres do romance de Gabriel García Márquez. Colocada novamente aqui, parece uma repetição gratuita (o que diminui consideravelmente seu efeito dramático).
As histórias de terror de “Olhos de Cão Azul” têm uma pegada naturalista. Seus conflitos são quase sempre de teor psicológico e possuem influência existencialista. Normalmente, esses contos se passam em ambientes claustrofóbicos (quartos ou ataúdes pequenos), são encenados à noite (ou na escuridão), possuem personagens sem nomes próprios que estão dormindo, sonhando ou divagando, têm a presença de animais (insetos, ratos, cachorros e gatos) e provocam medos/angústias nos protagonistas. Em quase todos os casos, temos figuras mentalmente problemáticas ou que não sabem suas verdadeiras condições (estão vivas ou já morreram?). Essa falta de clareza (entre o mundo real e o universo onírico e entre a condição de vida e de morte) é a responsável por gerar as múltiplas interpretações na cabeça dos leitores.
Por falar nas linhas tênues da vida e da consciência, temos um paradoxo curioso nos contos de “Olhos de Cão Azul”. Algumas personagens que estão vivas parecem agir como defuntos, enquanto alguns mortos se comportam como sujeitos reais, com vida. E alguns indivíduos são mais produtivos e felizes sonhando do que acordados. Incrível notar essa contradição. É legal reparar também nos elementos em comum entre as histórias. Muitas delas fazem referência à cor azul (coincidência ou recurso proposital do autor?), a bichos vistos normalmente como repugnantes (insetos e ratos), a mortes trágicas e a existências vazias ou perturbadas.
Mesmo sendo fã do gênero conto e das tramas de terror, ainda sim fiquei insatisfeito com o que encontrei em “Olhos de Cão Azul”. Os textos pesados e as tramas muitas vezes enigmáticas de Gabriel García Márquez não me encantaram nem me sensibilizaram como as demais obras do autor. Talvez eu tenha escolhido a coletânea de narrativas curtas errada do colombiano. Quem sabe se eu ler “Os Funerais da Mamãe Grande” (Record), “A Incrível e Triste História de Cândida Eréndira e Sua Avó Desalmada” (Record) e “Doze Contos Peregrinos” (Record), eu possa gostar mais dos contos de García Márquez.
Gostou deste post e do conteúdo do Blog Bonas Histórias? Se você é fã de literatura, deixe seu comentário aqui. Para acessar as demais análises literárias, clique em Livros – Crítica Literária. E aproveite para nos acompanhar nas redes sociais – Facebook, Instagram, Twitter e LinkedIn.