No finalzinho do mês passado, reli “A Ilha do Tesouro” (Principis), um clássico da literatura infantojuvenil. O romance do escocês Robert Louis Stevenson é leitura obrigatória para crianças e adolescentes há gerações. A primeira vez que entrei em contato com essa obra eu devia ter entre onze e doze anos. Depois, a li mais uma vez quando eu tinha por volta dos vinte anos. Minha opção por ler este livro outra vez, agora beirando os quarenta anos, foi singela: fiquei encantado com a nova edição produzida pela Editora Principis, que vem se dedicando a relançar clássicos internacionais em belas roupagens. Em seu portfólio, a Principis tem títulos de Júlio Verne, Arthur Conan Doyle, Monteiro Lobato, Lewis Carroll, Daniel Defoe, Miguel de Cervantes e Jane Austen, além do próprio Stevenson.
Com uma tradução elegante e um projeto gráfico primoroso, esta edição de “A Ilha do Tesouro” chamou minha atenção, em janeiro, em uma visita despretensiosa a uma livraria da cidade de São Paulo. Confesso que não consegui sair do estabelecimento sem adquirir o exemplar da obra de R. L. Stevenson. Uma boa promoção acabou sendo decisiva para a minha escolha (o livro estava sendo vendido a R$ 13,90). Ou seja, juntei o útil ao agradável. Uma vez com a publicação em mãos, reconheço, demorei um pouco para lê-la. Somente na última semana de julho consegui reler esta história. Precisei de apenas duas noites para percorrer todas as suas páginas.
Quem acompanha o Bonas Histórias há mais tempo, na certa se lembrará que analisamos, em março deste ano, o romance mais famoso de Robert Louis Stevenson, “O Médico e o Monstro” (L&PM Pocket). “A Ilha do Tesouro” e “As Aventuras de David Balfour” (L&PM Pocket) vêm logo atrás como os títulos mais marcantes do escocês. Nascido em Edimburgo, em 1850, Stevenson foi um dos escritores mais importantes da Grã-Bretanha no século XIX. Até hoje, ele é um dos autores mais traduzidos da literatura universal.
Falecido precocemente aos 44 anos, vítima de hemorragia cerebral, Robert Louis influenciou direta e indiretamente as narrativas ficcionais do século XX. Boa parte de seus enredos serviu para nortear os trabalhos de romancistas, dramaturgos e roteiristas que vieram posteriormente. Se aos olhos dos leitores contemporâneos as histórias de Stevenson parecem óbvias ou recheadas de chavões, é porque elas foram insistentemente repetidas depois de sua morte. Trata-se, portanto, de uma prova incontestável da qualidade do seu portfólio literário e do poder de sua disseminação na cultura popular moderna.
Publicado originalmente em fascículos, entre 1881 e 1882, na revista infantil Young Folks, “A Ilha do Tesouro” é uma trama sobre piratas, viagens marítimas e mapas que apontam fortunas escondidas. Sua primeira edição como livro ocorreu logo depois, em novembro de 1883. A ideia para produzir esta história nasceu assim que R. L. Stevenson voltou de sua primeira viagem aos Estados Unidos. Em uma tarde chuvosa ao lado do enteado, ele desenhou um mapa fictício de uma ilha onde estaria depositado o tesouro capturado por piratas. Ao ver a empolgação do menino com a brincadeira, o escritor não pensou duas vezes e resolveu romancear aquela história que acabara de esboçar. Curiosamente, essa é uma das primeiras tramas modernas desenvolvida especificamente para as crianças (uma preocupação inexistente no século XIX). Segundo Stevenson, “A Ilha do Tesouro” deveria ser simples, interessante e impactante para agradar aos meninos e às meninas que a lessem.
Quando “A Ilha do Tesouro” foi publicado, as histórias marítimas e de piratas já eram muito populares na Inglaterra, ao ponto de constituírem um gênero ficcional específico. As ilhas desertas, as batalhas históricas em alto mar, os náufragos presos em terras distantes e as ações de saque a navios compunham muitos romances e novelas da época. Vale lembrar que “A Vida e as Aventuras de Robson Crusoé” (Principis), de Daniel Defoe, é de 1719, “Tales of Fancy: The Shipwreck” (sem edição no Brasil), de Sarah H. Burney, é de 1816, “O Pirata” (Ebal), de Sir Walter Scott”, é de 1822, e “The Pilot: A Tale of the Sea” (sem publicação em português), de James Fenimore Cooper, é de 1823. Não é errado, portanto, imaginarmos que Stevenson se valeu do conhecimento destas obras, lançadas muito antes, para criar a sua.
O enredo de “A Ilha do Tesouro” se passa no século XVIII. Jim Hankins é um menino de onze anos que mora e trabalha com os pais na estalagem Almirante Benhow. Por estar no litoral inglês, perto de um porto, a hospedaria da família Hankins atende geralmente a marinheiros e marujos que estão provisoriamente na cidade. Contudo, certo dia, um desagradável senhor se instala no Almirante Benhow, para o pânico de todos. Capitão Billy Bones é um dos mais sanguinários piratas britânicos daqueles tempos. Ele integrou a equipe de Flint, o temível pirata que barbarizou pelos mares do mundo por décadas e que havia morrido há pouco.
Aposentado dos mares, Capitão Bill, como o hóspede é respeitosamente chamado apesar de nunca ter capitaneado uma embarcação, escolheu a estalagem dos pais de Jim porque ela era a mais isolada da região. Ele, como ficaria óbvio, está fugindo dos antigos colegas, que cobiçam o mapa que Billy Bones tem em mãos. Neste mapa, está o caminho da ilha onde Flint enterrou a fortuna que amedalhou ao longo da vida. Ciente que mais cedo ou mais tarde os antigos piratas o encontrarão, Capitão Bill vive em constante preocupação. Nem por isso ele deixa de ameaçar os donos da hospedaria e os demais hóspedes.
Certo dia, os temores de Billy Bones se concretizam. Os antigos colegas do pirata invadem o Almirante Benhow para pegá-lo. Em meio à briga, o mapa acaba nas mãos de Jim Hankins. O garoto foge às pressas. Sem saber o que fazer e não tendo ninguém em quem confiar, ele procura o médico David Livesey, antigo amigo de sua família. Dr. Livesey apresenta o documento dos piratas para John Trelawney, o fidalgo da localidade. A empolgação é geral. Trelawney, que possui muito dinheiro, faz um acordo com Livesey e Jim. O fidalgo bancará uma expedição marítima até a Ilha do Tesouro, em troca de uma parte da fortuna. O médico e o garoto concordam prontamente com a proposta.
Assim, o trio embarca no porto de Bristol, algumas semanas mais tarde, no Hispaniola, navio com 26 tripulantes contratado pelo Sr. Trelawney. O problema é que entre os homens a bordo estão alguns dos antigos colegas de Billy Bones, que compuseram a equipe de Flint no passado. Os piratas não vão aceitar passivamente que outra pessoa fique com a fortuna que estão almejando há tantos anos. Assim, a jornada de Jim Hankins, David Livesey e John Trelawney pelos mares e pela ilha tão cobiçada será marcada por perigos e intrigas.
“A Ilha do Tesouro” é realmente um livro infantojuvenil delicioso. Há muita ação, suspense e reviravoltas em sua narrativa, um prato cheio para quem gosta de adrenalina. A obra possui 240 páginas, que estão divididas em seis seções: “O Velho Bucaneiro”, “O Cozinheiro do Navio”, “Minha Aventura em Terra Firme”, “A Paliçada”, “Minha Aventura no Mar” e “Capitão Silver”. Como a leitura é rápida e direta, é possível ler “A Ilha do Tesouro” em um dia mesmo ou em duas noites consecutivas.
O mais legal desta obra de Robert Louis Stevenson é notar que vários dos seus elementos narrativos transformaram-se em composições clássicas das histórias de piratas. O marujo de uma perna só, os piratas viciados em rum, o tesouro enterrado em uma ilha inabitada, o papagaio no ombro do marinheiro, a bandeira com a caveira simbolizando uma embarcação clandestina e o linguajar típico dos homens que viviam no mar são, atualmente, componentes inerentes à nossa cultura popular. Eles são repetidos até hoje em filmes, livros, histórias em quadrinhos e peças de teatro que tenham como tema as aventuras de piratas. Por mais que Stevenson não tenha sido o pioneiro em inventar esses elementos na ficção literária, ele foi um dos principais divulgadores. “A Ilha do Tesouro”, indiscutivelmente, teve esse papel multiplicador.
Um capítulo à parte deste livro é o linguajar dos piratas. As personagens conversam entre si usando e abusando de termos técnicos, históricos e expressões aparentemente próprias (nesta edição, há notas de rodapé explicando o significado de muitas palavras e termos). Essas características de “A Ilha do Tesouro” conferem grande verossimilhança à trama. “Macacos me mordam” e “por mil trovões”, por exemplo, são expressões repetidas ainda hoje, mesmo quase um século e meio depois da publicação dessa história, para caracterizar a fala dos homens do mar.
Outro aspecto que precisa ser elogiado em “A Ilha do Tesouro” é o seu desfecho. Apesar de culminar em um final óbvio, ele apresenta algumas surpresas e reviravoltas antes, o que acaba satisfazendo o leitor mais exigente (que não aceita soluções rasteiras nem tão óbvias). Para ser justo, não apenas os capítulos finais reservam intrigas surpreendentes e grandes mudanças no panorama narrativo. Esses pontos estão presentes em toda a obra, desde as primeiras páginas.
Sei que já falei sobre isso, mas quero repetir: esta edição da Editora Principis é maravilhosa. A tradução de Monique D´Orazio está impecável, deixando o texto ao mesmo tempo elegante e interessante. E o projeto gráfico, de autoria da Ciranda Cultural, é primoroso. Admito que fiquei admirando os detalhes gráficos deste livro, como um mapa bem desenhado e o início dos capítulos com recursos visuais diferenciados. Incrível!
De principal aspecto negativo, “A Ilha do Tesouro” possui um erro crasso de foco narrativo. Sua história é contada em primeira pessoa quase que inteiramente por Jim Hankins. O menino rememora, agora adulto, um episódio intrigante de sua infância. Até aí beleza. Só que no meio do livro, há três capítulos (na parte IV: “Paliçada”) em que a narração é feita em primeira pessoa pelo Dr. Livesey. Por que, pensa o leitor mais atento, o doutor invade a narrativa de Hankins, hein?!!! Esse recurso não tem nenhuma explicação plausível. Trata-se de um grande tropeço de foco narrativo. É uma pena pois a trama vinha se desenrolando muito bem.
Outro problema, menos grave pois estamos falando de literatura infantojuvenil, é o da constituição das personagens. As figuras retratadas por Robert Louis Stevenson em “A Ilha do Tesouro” são quase sempre caricatas. Os homens (falo homens porque só há uma personagem feminina em toda a narrativa, a mãe de Jim, que aparece pontualmente no início) são personagens planas. Não há qualquer complexidade psicológica em suas atitudes e em suas crenças. Com isso, temos o estabelecimento de um maniqueísmo exagerado. Ou as pessoas são boazinhas ou elas são extremamente ruins. Não há, nesta trama, um meio termo nem uma tonalidade que não seja os extremos da vilania/heroísmo.
Apesar de um probleminha aqui e outro ali em sua estrutura narrativa, “A Ilha do Tesouro” é, em suma, uma ótima história. Falo isso considerando tanto o fato de o leitor ser uma criança, um(a) adolescente ou se já tiver crescido há bastante tempo. Ler Stevenson é muito bom. Conhecer seus romances mais famosos é aventurar-se pelos clássicos da literatura mundial. Para o leitor contemporâneo, é fundamental conhecer as bases pelas quais nossa cultura literária foi construída. Aí, “O Médico e o Monstro” e “A Ilha do Tesouro” são títulos imperdíveis.
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