Quando vi, em maio, a sinopse do filme “Branca como a Neve” (Blanche Comme Neige: 2019) no catálogo do Festival Varilux em Casa, a edição extra da mostra de cinema francês que está disponível em streaming nesse período de pandemia, confesso que a achei um tanto bobinha. Qual a graça de filmar uma nova versão de “Branca de Neve e os Sete Anões”, um dos clássicos dos Irmãos Grimm, hein? A princípio não achei válida essa iniciativa. Por isso, assisti logo de cara a várias outras produções do festival que me pareceram mais interessantes: “A Excêntrica Família de Gaspard” (Gaspard Va Au Mariage: 2017), “Rock´n Roll - Por Trás da Fama” (Rock'n Roll: 2017) e “O Mistério de Henri Pick” (Le Mystère Henri Pick: 2019), por exemplo.
Ao notar, no último final de semana, que “Branca como a Neve” era um longa-metragem estrelado por Lou de Laâge, atriz por quem sou apaixonado desde “Jappeloup” (2012), e dirigido por Anne Fontaine, responsável por obras-primas como “Coco Antes de Chanel” (Coco Avant Chanel: 2008), “Agnus Dei” (Les Innocentes: 2015) e “Amor Sem Pecado” (Adore: 2013), achei por bem dar um voto de confiança a este título. E não é que ele é uma produção dramática excelente! Já nos primeiros quinze minutos de sessão já havia me arrependido de não tê-lo visto bem antes. O que faz o pré-julgamento equivocado de uma sinopse, né?!
“Branca como a Neve” é um thriller roteirizado pela excelente dupla Anne Fontaine e Pascal Bonitzer. Além da premiada Lou de Laâge, temos um time de atores do primeiro nível do cinema francês: Isabelle Huppert, que dispensa apresentações, Charles Berling, Damien Bonnard, Jonathan Cohen, Richard Fréchette, Vicent Macaigne, Pablo Pauly e Benoît Poelvoorde. Convenhamos, dava para eu ter desconfiado da qualidade deste filme à primeira vista se tivesse me atentado aos nomes de seu elenco.
Orçado em pouco mais de sete milhões de euros, “Branca como a Neve” estreou nos cinemas franceses em abril do ano passado. Em nosso país, este filme chegou ao circuito comercial em setembro de 2019. Antes, porém, ele foi apresentado em maio na última edição do Festival Varilux de Cinema Francês. Apesar de ser, na minha visão, mais um drama do que uma comédia, a mais recente produção de Anne Fontaine, uma das principais cineastas europeias da atualidade, foi classificado como comédia. Pelo menos é assim que “Branca como a Neve” foi apresentado ao público desde seu lançamento. Eu prefiro vê-lo mais como um thriller dramático.
Nessa trama, Claire (interpretada por Lou de Laâge) é uma jovem e bela camareira do hotel fundado por seu pai. Com a morte dele há pouco tempo, a propriedade ficou sob a administração de Maud (Isabelle Huppert), a última esposa do empresário. A relação entre madrasta e afilhada é fria e profissional, porém aceitável. Claire é vista por Maud mais como uma funcionária importante do estabelecimento do que como uma filha. As coisas mudam de figura quando Maud descobre que Bernard (Charles Berling), o gerente do estabelecimento com quem ela está tendo um caso (ele é seu amante desde a época em que ela era casada com pai de Claire), está apaixonado por sua afilhada. Inocente e pura, Claire, por sua vez, nem desconfia da paixonite platônica do gerente e namorado de sua madrasta.
Indignada com a beleza e a juventude estonteantes de Claire, que atraem os olhares e atingem os corações masculinos, Maud cria um plano macabro: assassinar a própria afilhada. Só assim, ela poderá ter de volta o amor incondicional de Bernard. Com essa ideia fixa na cabeça, a proprietária do hotel contrata uma matadora profissional para capturar a moça, levá-la para um local distante e pôr fim a sua vida de uma vez por todas. Contudo, o crime bárbaro é frustrado quando o carro onde Claire foi colocada no porta-malas por sua assassina sofre um acidente no alto de uma montanha. Ao fugir do veículo batido, a protagonista é salva por um caçador (Damien Bonnard) no meio da floresta. O salvador de Claire ainda mata a motorista do carro batido quando nota que ela queria matar sua protegida.
Claire é levada pelo caçador para sua casinha rústica em um pacato povoado situado nas cordilheiras francesas. Lá ele mora com seu irmão gêmeo e um amigo violinista (Vincent Macaigne). Sentindo-se segura e acolhida naquela morada, pouco a pouco, a moça é inserida no dia a dia do lugarejo. Rapidamente, ela se torna moradora fixa da residência do caçador e não quer mais deixar aquela aprazível localidade.
Encantados com a beleza de Claire, todos os homens do povoado se apaixonam de alguma forma por ela. Além dos gêmeos e do violinista hipocondríaco e assexuado, o veterinário ciumento e romântico (Jonathan Cohen), o dono da livraria metido a Don Juan e com instintos masoquistas (Benoît Poelvoorde), o tímido e inexperiente lutador de artes marciais (Pablo Pauly) e até o honrado padre local (Richard Fréchette) se veem enfeitiçados pela nova moradora do vilarejo. Em um processo de desabrochar sexual, Claire passa a transar com quase todos os admiradores. E o grupo de sete homens irá atuar na defesa do bem-estar e da integridade de sua musa.
A vida idílica de Claire no paraíso montanhoso e afastado da civilização termina quando Maud descobre que ela ainda está viva. Para pôr um fim definitivo na vida da encantadora afilhada, Maud viaja até o povoado distante para assassiná-la com suas próprias mãos. Dessa vez, ela não cometerá o erro de terceirizar uma tarefa tão importante. A vilã não irá sossegar enquanto a bela e jovem filha do seu ex-marido não estiver morta e enterrada.
Com uma hora e quarenta minutos de duração, “Branca como a Neve” é dividido em três partes: (1) Claire, (2) Maud e (3) Branca de Neve. Essa divisão segue mais ou menos o padrão do tradicional conto de fadas dos Irmãos Grimm: (1) vida no castelo com a madrasta má até a fuga para a floresta; (2) estada na casa dos sete anões até a mordida na maçã; e (3) morada no castelo com o príncipe encantado. Na primeira parte do longa-metragem de Anne Fontaine, assistimos ao filme na perspectiva da protagonista. Na segunda, vemos o ponto de vista da vilã. E na parte derradeira, acompanhamos o embate entre as duas (enquanto a filha tenta sobreviver à inveja da viúva do pai, a madrasta insiste em matar a jovem e bela afilhada).
Como recriação de uma história tradicional, esse filme é magistral. Ao mesmo tempo em que notamos várias semelhanças com o enredo clássico de “Branca de Neve e os Sete Anões” (madrasta invejosa; maçã envenenada; sete homens agindo como os sete anões/guardiões da princesa; protagonista com a pele clarinha...), também temos um enredo com grande liberdade criativa (os admiradores da mocinha não são homens fisicamente pequenos; todos agem como se fossem príncipes tarados, querendo fazer sexo com sua princesa; o castelo encantado é mais uma casinha rústica num descampado rural do que uma mansão imponente; a liberdade da protagonista passa necessariamente pela sua descoberta sexual como mulher...).
Sob esse ponto de vista, note a relação das personalidades dos sete admiradores de Claire com as características psicológicas dos sete anões da história original da Branca de Neve. Há uma óbvia associação entre as duas tramas. Neste longa-metragem, temos o zangado, o dengoso, o mestre, o soneca, o hipocondríaco, o feliz e o mudo/inocente. Identificar quem é quem no meio da sessão cinematográfica é uma das graças de “Branca como a Neve”.
Ao invés de assistirmos a uma trama infantil e óbvia, acompanhamos, por outro lado, um suspense adulto, erótico, divertido e surpreendente do início ao fim. A inovação de “Branca como a Neve” está em contar uma história parecida a dos Irmãos Grimm, mas com elementos totalmente distintos do original. Incrível a ousadia dessa composição dos roteiristas. É preciso tirar o chapéu mais uma vez para o trabalho sensacional de Fontaine e Bonitzer.
De certa maneira, “Branca como a Neve” repete um pouco a fórmula de “Gemma Bovary – A Vida Imita a Arte” (Gemma Bovery: 2014). Naquele filme de Anne Fontaine e Pascal Bonitzer, assistimos à recriação de “Madame Bovary”, romance clássico de Gustave Flaubert, com uma pegada mais contemporânea. “Branca como a Neve” segue “Gemma Bovary” na modernização de um drama feminino com apelo universal.
Não dá para falar deste filme sem citar as cenas tórridas de sexo e de nudismo da sua protagonista. Esse recurso é necessário para mostrar o desabrochar sexual da personagem interpretada por Lou de Laâge e para seduzir o espectador para os encantos da moça, de uma beleza realmente impressionante. Que a Scarlett Johansson e a Paloma de Oliveira me perdoem, mas de Laâge é maravilhosa! E boa parte da graça de “Branca como a Neve” está nesse jogo dramático de sedução. A personagem principal do filme faz sexo com boa parte do elenco masculino e nos mais diferentes lugares (dentro do carro, na floresta, na cachoeira, na cama, no sofá, de pé, deitada...). Há até uma cena de flerte com a própria madrasta em que ambas dançam agarradinhas para lá da conta (será que a Maud também se apaixonou por Claire?).
Mesmo entendendo a pegada erótica do filme, achei, em muitos momentos, um tanto apelativo a exposição do corpo de Claire/ Lou de Laâge (até pareço o namorado ciumento da atriz falando assim, né?). Isso fica evidente principalmente no início do longa-metragem. Na primeira cena, temos a protagonista tomando banho (uma delícia!) na frente de uma câmera com enquadramentos/olhares despudorados.. Logo depois, ela se veste (ai, ai, ai) para o trabalho. Seu expediente no hotel é mostrado em apenas três minutinhos. Aí, ela volta para casa, tira a roupa e vai dormir nua. Em apenas cinco minutos de filme, vemos a moça pelada pelo menos três ou quatro vezes. Não é muita apelação?!
Branca como a Neve” tem uma ótima trilha sonora, que potencializa ainda mais o suspense da trama. Geralmente, a música é instrumental e retrata muito bem os diferentes estados de espírito de Claire durante o filme. Algo que reforça o impacto da trilha sonora é o longo período sem música no meio do filme (quando a moça aparece na casa dos gêmeos e tenta desvendar aonde foi parar). Assim, quando as canções ressurgem, elas chegam com grande força narrativa.
Esse é um filme para ser assistido com os olhos e com os ouvidos bem aflorados. E a beleza visual não se limita a estonteante Lou de Laâge. Repare na fotografia de “Branca como a Neve”. O visual da pequena cidadezinha no alto das montanhas francesas é de tirar o fôlego. O cenário é muito bem aproveitado, não apenas para maravilhar o público com sua paisagem, mas também para criar o clima necessário para o thriller. Note na dicotomia entre a sensação de liberdade que a vista do alto das montanhas proporciona e a impressão de claustrofobia e perigo que as estradinhas estreitas e que as pequenas construções do povoado trazem. Isso tudo é proposital. Se por um lado o novo lugar confere liberdade para Claire se tornar uma mulher completa e livre, por outro lado essa mesma localidade potencializará o perigo da chegada de sua madrasta.
Como um bom filme francês, temos aqui um humor sutil e inteligente. Em meio ao drama e ao suspense da relação tóxica entre filha e madrasta, “Branca como a Neve” proporciona momentos hilários de pura comédia-dramática. As personagens de Vicent Macaigne, Benoît Poelvoorde, Jonathan Cohen e Pablo Pauly escancaram algumas fragilidades e bizarrices masculinas de maneira divertidíssima. Independentemente de suas idades, posições sociais, profissões e hábitos, na frente de uma mulher deslumbrante e poderosa sexualmente, todos os homens se tornam garotinhos bobos e inseguros. Nesse sentido, eles se apequenam diante da gigantesca figura feminina e, portanto, viram anãozinhos perto dela (gostei dessa metáfora!).
Durante o filme, juro que lembrei da música “Garotos II”, do Leoni: “Seus olhos e seus olhares/ Milhares de tentações/ Meninas são tão mulheres/ Seus truques e confusões/ Se espalham pelos pelos/ Boca e cabelo/ Peitos e poses e apelos/ Me agarram pelas pernas/ Certas mulheres como você/ Me levam sempre onde querem/ Garotos não resistem/ Aos seus mistérios/ Garotos nunca dizem não/ Garotos como eu/ Sempre tão espertos/ Perto de uma mulher/ São só garotos”. O comportamento dos homens em “Branca como a Neve” é bem assim diante de Claire.
Se você ficou surpreendido com as invenções do enredo de Fontaine, é porque você não viu o desfecho deste filme. Mais uma vez, a trama consegue surpreender o público até a última cena (cuidado, aí vai o spoiler!). Ora o desfecho recorre à velha fórmula de castigar a vilã a qualquer custo (algo fácil e apelativo!), ora não se acovarda em dar um final trágico para a protagonista (que como a história tradicional, pode ser revertido na última cena). Nesse sentido, o desenlace do longa-metragem não deixa de ser aberto. Você pode vê-lo tanto como uma mensagem feliz (igualzinho aos contos de fadas convencionais - os sete anões se transformam em príncipes encantados salvando a princesinha morta com beijos apaixonados) como pode encará-lo de um jeito mais moderno/sobrenatural (visão negativa mais apropriada para as tramas contemporâneas - passagem da protagonista para uma outra vida, mais tranquila e plena). A interpretação da última cena fica ao dispor da consciência e do gosto da plateia.
Vale muito a pena conhecer esse novo trabalho de Anne Fontaine. É verdade que ele não está à altura de “Coco Antes de Chanel”, “Agnus Dei” e “Amor Sem Pecado”. Mesmo assim, sua qualidade é indiscutível.
Assista, a seguir, ao trailer de “Branca como a Neve”:
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