Em outubro de 1928, Virginia Woolf já era uma das principais escritoras de sua geração. “Mrs. Dalloway” (L&PM Pocket) e “Passeio ao Farol” (Rio Gráfica), romances publicados, respectivamente, em 1925 e 1927, revolucionaram o estilo da prosa moderna. E “Orlando” (Penguin), sua obra ficcional recém-lançada, se tornava rapidamente um best-seller no Reino Unido e nos Estados Unidos. Por isso, nada mais natural do que Virginia Woolf, que vivia seu ápice profissional e uma fase de intensa popularidade, ser convidada para dar palestras sobre literatura, crítica literária, feminismo e produção artística nos quatro cantos da Inglaterra. Um desses convites partiu da Universidade de Cambridge. A tradicional instituição de ensino superior queria que a renomada autora falasse em duas de suas faculdades femininas, a Sociedade de Artes do Newnham College e a ODTAA do Girton College. O tema das conversas seria “as mulheres e a ficção”.
E lá foi Virginia Woolf discursar para as estudantes universitárias de Cambridge. Nessas palestras, ao invés de apresentar um discurso objetivo e sintético sobre o assunto proposto, a escritora inglesa preferiu, surpreendentemente, ler uma trama ficcional criada especialmente para aquele momento. Nesta história, uma personagem feminina, Mary Beton, realiza uma pesquisa pormenorizada sobre a relação das mulheres com a produção literária. A partir dessa investigação, a protagonista começa a refletir sobre os motivos pelos quais as mulheres quase não escreveram obras poéticas e em prosa até o final do século XVIII. Qual seria o motivo dos homens monopolizarem a autoria literária ao longo dos últimos séculos, hein?
Com um texto metalinguístico, inteligente, recheado de referências literárias, com o típico fluxo de consciência que marcou o estilo da autora, com passagens autobiográficas e com uma pegada para lá de poética, Woolf fala, em sua narrativa ficcional, sobre o machismo da sociedade patriarcal europeia ao longo do tempo e do empoderamento feminino no comecinho do século XX. De maneira sutil e extremamente elegante, ela vai fundo na análise do tema da palestra, sem duvidar da inteligência do público para compreender o alcance de suas palavras.
O material desses encontros ficou tão bom, mas tão bom, que, onze meses depois das palestras com as universitárias de Cambridge, seu conteúdo foi adaptado em um livro. Nascia, assim, “Um Teto Todo Seu” (Tordesilhas), o ensaio feminista mais famoso de Virginia Woolf (e um dos mais conhecidos da história).
Li esta obra pela primeira vez há pouco mais de dois anos no curso de Pós-Graduação de Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz. E admito que fiquei positivamente impressionado com seu conteúdo. A impressão que se tem é que Woolf é uma autora contemporânea e que este texto foi escrito recentemente. Trata-se de um feito incrível se pensarmos que ele está para completar 100 anos logo mais! Na última sexta-feira à noite, reli “Um Teto Todo Seu” para o Desafio Literário de julho. Este livro é o quinto dos seis títulos de Virginia Woolf que vamos analisar neste mês no Bonas Histórias. E ele é o único ensaio desta nossa coletânea, formada majoritariamente por romances.
Virginia Woolf tem um portfólio literário extremamente diversificado. São dez romances, sete coletâneas de contos, uma biografia, uma peça teatral, vários diários e três coleções de cartas. Contudo, seu gênero narrativo mais comum sempre foi o ensaio. Se a inglesa estreou na ficção apenas em 1915, aos 33 anos, com o romance “A Viagem” (Novo Século), ela iniciou a produção de ensaios, crônicas e críticas literárias onze anos antes. Em 1904, a jovem Virginia Stephen, então com 22 aninhos (e ainda sem o sobrenome Woolf que seria incorporado após o casamento com Leonard em 1915), já escrevia resenhas para o jornal Guardian. Em 1905, ela se tornou colaboradora do suplemento literário do Times. Nos anos seguintes, Virginia se consolidaria como uma das principais intelectuais e ensaístas britânicas da primeira metade do século XX.
Em livros, foram publicados 14 dos seus ensaios. Esses textos tratam principalmente do feminismo, da teoria literária, da análise crítica (de obras e de autores clássicos e de sucesso) e do cenário intelectual inglês entre as décadas de 1900 e 1930. Curiosamente, apesar de mais numerosa, a produção não ficcional de Virginia Woolf é atualmente a parte menos lida do seu trabalho. O público leitor parece preferir seus romances. Para comprovar a regra, as exceções são “Um Teto Todo Seu” e “Três Guinéus” (Autêntica), dois ensaios feministas de Woolf que se complementam. Se o primeiro foi lançado em setembro de 1929, o segundo foi publicado em junho de 1938.
Em “Um Teto Todo Seu”, assistimos às inquietações intelectuais de Mary Beton (personagem que é, de certa maneira, o alter ego de Virginia Woolf). Contratada para realizar uma pesquisa sobre o motivo das mulheres não produzirem literatura (salvo raríssimas exceções), a protagonista da trama viaja até Oxbridge, cidade fictícia que possui uma universidade homônima (podemos pensá-la como sendo Cambridge).
Em Oxbridge, Beton senta-se no gramado do campus universitário para pensar. Contudo, rapidamente é expulsa do local por um bedel. Por ser mulher, ela não pode ficar ali, diz o segurança. Aquele lugar é exclusivo para professores e estudantes do sexo masculino. Conformada com a situação, Mary Beton parte, então, para a biblioteca da instituição de ensino. Lá, cogita a moça, poderá realizar uma pesquisa bibliográfica sobre o tema que tanto a intriga. No novo espaço, ela é impedida de entrar. Um outro bedel afirma que mulheres sem a companhia masculina não podem acessar a biblioteca. Esta é uma questão de segurança interna.
Sem alternativa, a personagem segue para uma capela dentro do campus universitário. No novo recinto, ela assiste aos rituais religiosos realizados exclusivamente por homens. As instituições religiosas não permitem o ingresso de mulheres em seu corpo diretivo e operacional. Por fim, ela faz duas refeições na universidade. No almoço, participa de um banquete dado aos alunos homens de Oxbridge. E à noite, ela faz uma ceia frugal com as demais mulheres daquele ambiente acadêmico.
Ainda sem uma resposta definitiva para a questão que a consome, Mary Beton retorna para Londres. Já no dia seguinte, ela vai até o Museu Britânico para, enfim, realizar sua pesquisa documental. Depois de almoçar em um restaurante, ela retorna para sua residência. No aconchego do lar londrino, Beton continua conjeturando sobre as dificuldades das mulheres para produzir literatura. Agora, sua única companhia no processo reflexivo é sua biblioteca pessoal. Para ilustrar cada pensamento que tem, ela retira um livro da estante. Os vários autores e obras ajudam a moça na formulação de uma explicação racional para suas inquietações.
“Um Teto Todo Seu” possui 192 páginas. Este ensaio de Virginia Woolf está dividido em seis capítulos. Há ainda, na edição da Editora Tordesilhas, um posfácio de Noemi Jaffe (que já produziu textos muito mais inspirados que este), um trecho dos diários de Woolf (que, infelizmente, não dialogam com seu ensaio) e uma linha do tempo com os aspectos mais importantes da vida e da carreira da autora inglesa. Em outras palavras, é uma encheção de linguiça para o livro ficar próximo ao tamanho padrão do mercado editorial nacional (em torno de 200 páginas). Se o ensaio de Virginia Woolf é espetacular, seus complementos deixam a desejar.
A tradução de “Um Teto Todo Seu” para o português brasileiro foi realizada por Bia Nunes de Sousa (prosa) e Glauco Mattoso (poemas). É possível ler esta obra em quatro horas. Este foi o tempo que levei na sexta-feira para percorrer todas as páginas do livro. Para quem gosta de ler à tardezinha e à noite (como é o meu caso), dá para concluir este livro em uma única tarde/noite ou, no mais tardar, em dois dias consecutivos. Os leitores com maior nível de concentração podem concluir esta leitura até mesmo em uma batida só (o livro tem a extensão de uma novela).
Achei “Um Teto Todo Seu” um ensaio feminista perfeito. Não dá para questionar as reflexões nem mesmo as conclusões que Virginia Woolf (ou seria Mary Beton?) tem. Se você leu os ensaios superficiais e tolos de Chimamanda Ngozi Adichie sobre este tema, “Sejamos Todos Feministas” (Companhia das Letras) e “Para Educar Crianças Feministas” (Companhia das Letras), e os achou bom, você precisa ler Virginia Woof. Enquanto a nigeriana é rasa, preconceituosa, sem graça, retrógrada e incompleta em seus argumentos, a inglesa é profunda, elegante, carismática, contemporânea e completa em suas reflexões.
O mais interessante é que Virginia Woolf analisa a questão do machismo da sociedade inglesa/europeia/ocidental através de uma perspectiva histórica. Ela percorre os aspectos sociais para depois adentrar na literatura, que não deixa de ser um reflexo do que acontece no macroambiente. E ela não faz essa trajetória de forma raivosa ou vingativa como poderíamos imaginar. Não! Sabiamente, ela apresenta a questão de um jeito simples, lúcido, puro e prático.
No começo de “Um Teto Todo Seu”, a escritora mostra indiretamente o quanto o patriarcalismo ainda oprimia as escritoras (e as mulheres de maneira geral) no início do século XX. Essa é a função da trama ficcional protagonizada por Mary Beton - expulsões do gramado e da biblioteca da universidade de Oxbridge e as diferenças de refeições concedidas aos homens e às mulheres no refeitório da instituição de ensino. Depois, Woolf faz um mergulho profundo na história literária e social do seu país. Assim, apresenta a evolução gradual do empoderamento feminino. Por fim, ela faz uma projeção para lá de válida: em cem anos, as mulheres irão exercer todas as funções até então praticadas exclusivamente pelos homens. Se ela não acertou totalmente no prognóstico (o machismo ainda vigora em boa parte do mundo), pelo menos não ficou muito longe de acertar nas previsões (as mulheres conquistaram muitos espaços nas sociedades ocidentais mais evoluídas).
O mais legal em “Um Teto Todo Seu” é a mescla de diferentes tipos de texto: ficção (trama de Mary Beton) com não ficção (ensaio propriamente dito); panorama histórico (retrospectiva social e literária entre os século XVI e XX) com crônica contemporânea (vida no início do século XX); narrativa em parte direta e objetiva (colocando o dedo na ferida sem dó nem piedade) e em parte subjetiva e introspectiva (falando as verdades de um jeito conotativo); apresentação das teses machistas em contraposição aos argumentos feministas; prosa e poesia lado a lado; descrição histórico-social e debate histórico-literário; e insinuações reflexivas (com perguntas como: será? e se?) com afirmações contundentes.
Impossível não gostar dessa mistura inusitada e multifacetada. Vale lembrar que quando Virginia Woolf fez isso em suas palestras em Cambridge, ainda não era modinha tal recurso (hoje em dia, quase todos os discursos dos escritores premiados possuem esse estilo e, muitos deles, viram livros). Ou seja, não apenas o conteúdo de “Um Teto Todo Seu” é ótimo como a forma como ele foi escrito também merece nossos rasgados elogios. Woolf reúne as características de uma intelectual de destaque com a habilidade de uma escritora que domina como poucos as técnicas estilísticas da prosa.
Para mim, este livro tem algumas partes memoráveis. Uma delas é quando Mary Beton/Virginia Woolf se questiona sobre o que teria acontecido se William Shakespeare tivesse tido uma irmã tão talentosa quanto ele. A visão da narradora-protagonista/escritora é por demais negativa, mas nem um pouco irreal. Outro momento sublime é quando a autora decreta o que uma mulher precisa para se tornar uma escritora profissional: ter um local seu dentro de casa onde possa trabalhar sem importunações; e ser independente financeiramente. Aí o leitor mais ingênuo se pergunta incrédulo: só isso? A resposta é dada pela própria Woolf em seguida: só. Entretanto, essas duas condições não são poucas coisas, não! Raríssimas mulheres até o final do século XVIII tiveram o privilégio de ter essas duas coisinhas aparentemente básicas em sua rotina. Só quem trabalha ou trabalhou com literatura e com produção textual consegue entender a dimensão das palavras da escritora inglesa.
Gosto também das conjecturas de Virginia Woolf sobre o crescimento ao longo dos séculos da presença feminina na literatura, de suas análises literárias sobre as autoras clássicas da língua inglesa e de suas projeções para o futuro das mulheres. Para mim, o final do livro é perfeito. Confira, a seguir, os últimos parágrafos, sem risco que um possível spoiler possa atrapalhar a futura leitura desta publicação:
“Eu disse a vocês no decorrer deste ensaio que Shakespeare tinha uma irmã; mas não procurem por ela no poema escrito por Sir Sidney Lee. Ela morreu cedo, pobrezinha, nunca escreveu uma linha. Está enterrada no local onde hoje os ônibus fazem parada, em frente a Elephant and Castle. Mas acredito que essa poeta que nunca escreveu uma linha e foi enterrada no cruzamento ainda está viva. Ela está viva em você e em mim, e em muitas outras mulheres que não estão aqui esta noite, porque estão lavando a louça ou colocando os filhos na cama. Mas ela está viva, pois os grandes poetas nunca morrem; são presenças duradouras, precisam apenas de uma oportunidade para andar entre nós em carne e osso. Essa oportunidade, acredito, está agora ao alcance de vocês. Pois acredito que se vivermos por mais um século – estou falando da vida comum que é a vida real, não das vidinhas isoladas que levamos como indivíduos – e tivermos quinhentas libras por ano e um espaço próprio; se cultivarmos o hábito da liberdade e a coragem de escrever exatamente o que pensamos; se fugirmos um pouco das salas de visitas e enxergarmos o ser humano não apenas em relação aos outros, mas em relação à realidade, ao céu, às árvores ou a qualquer coisa que possa existir em si mesma; se olharmos além do fantasma de Milton, porque nenhum ser humano deveria bloquear nossa visão; se encararmos o fato, porque é um fato, de que não há em quem se apoiar, e de que seguimos sozinhas e nossa relação é com o mundo da realidade e não só com o mundo de homens e mulheres, então a oportunidade surgirá, e a poeta morta que era a irmã de Shakespeare encarnará no corpo que tantas vezes ela sacrificou (..)”.
Este Desafio Literário continuará no próximo sábado, dia 25, com o post sobre o sexto e último livro de Virginia Woolf deste mês. A nova obra da inglesa que vamos analisar no Bonas Histórias será “Flush – Memórias de Um Cão” (L&PM Pocket). Este romance inusitado é protagonizado, acredite se quiser, pelo animalzinho de estimação de Elizabeth Barrett, uma das mais famosas poetisas inglesas do século XVIII. Vale a pena conferir as próximas publicações do blog sobre a literatura de Virginia Woolf. Até mais!
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