O tempo... Ah, o tempo! Ele pode ser cruel com pessoas, com objetos, com ideias e com organizações. E ele também pode ser implacável com as obras literárias. Há livros de grande qualidade que se tornam esquecidos do grande público com o passar dos anos. São vários os exemplos de publicações que saem do interesse do mercado editorial depois de uma, duas ou três gerações, mesmo mantendo um conteúdo relevante e interessante. Quando isso acontece, as editoras passam a não mais editar essas histórias, o que acentua ainda mais o processo de esquecimento delas. Aí, o leitor só consegue encontrar esses títulos em alguns sebos ou em boas bibliotecas espalhadas pelo país. Quando, obviamente, alguém se recorda de procurá-los.
Estou falando neste post do Bonas Histórias sobre tal questão porque acredito que “Os Rodriguez” (Ática) se enquadra perfeitamente nessa categoria. O romance mais ácido de Maria José Dupré não tem uma nova edição desde o início da década de 1980. São quase 40 anos sem uma reedição. Pouco a pouco, infelizmente, este livro foi sendo esquecido e hoje ele pode ser classificado como um título desconhecido do grande público. É uma pena pois se trata de uma obra-prima da literatura brasileira.
Publicado originalmente em 1946, “Os Rodriguez” é o quinto romance adulto de Dupré, a escritora paulista que está sendo analisada neste mês no Desafio Literário. Ele chegou às livrarias do país três anos depois de “Éramos Seis” (Ática) e um ano após “Gina” (Ática), os maiores sucessos da autora. Com uma figura arrogante, orgulhosa, racista, egoísta e avara no papel de protagonista da trama, esta história é a mais incômoda da carreira de Maria José. Se os principais títulos da autora são uma bofetada na cara dos leitores, “Os Rodriguez” é um murro violento que expõe os preconceitos, o falso moralismo e a leviandade de parte de nossa sociedade.
Diferentemente de “Éramos Seis” e “Gina”, a história de “Os Rodriguez” não foi adaptada para as telenovelas. Isso talvez explique um pouco o seu esquecimento nas últimas décadas, apesar do seu sucesso nas livrarias do país entre os anos de 1940 e 1970. Infelizmente, o Brasil ainda é um país em que a popularização de uma obra literária passa muitas vezes por sua veiculação na televisão. Uma vez na TV, uma trama é lembrada por muito e muito tempo. Ah, o tempo! Não sei o porquê “Os Rodriguez” não ganhou uma versão televisiva já que possui todos os elementos de uma boa telenovela: personagens fortes, uma anti-heroína da pior espécie, dramas sem fim, conflitos contemporâneos, narrativa histórica que acompanha uma família por setenta anos e uma trama alicerçada na lição de moral. Dramaturgos atuais, vejam esta dica!
Na época do seu lançamento, “Os Rodriguez” se tornou um dos grandes sucessos de Maria José Dupré. Em número de edições e de exemplares vendidos, ele só perde para “Éramos Seis” e “Gina” entre os romances adultos da autora. Foi por este motivo que o inseri na lista de títulos do Desafio Literário. Esta obra também foi traduzida para vários idiomas e lançada com êxito no exterior. Curiosamente, “Os Rodriguez” foi publicado no mesmo ano em que “A Mina de Ouro” (Ática), um dos best-sellers infantojuvenis de Dupré.
A narrativa de “Os Rodriguez” começa com Dora Laura Vidal, a protagonista do romance, ainda menina. Aos nove anos de idade, ela morava na fazenda Boa Vista no interior do Estado de São Paulo com os pais. Filha temporona, a garota feia, fraca e pequena vivia sozinha e de maneira melancólica na propriedade rural. Seus irmãos mais velhos já tinham saído de casa e Dora não tinha nenhuma criança de sua idade para brincar. Mesmo assim, os tempos na fazenda Boa Vista eram bons e tranquilos para a família. Isso até uma nuvem de gafanhotos exterminar a plantação da fazenda, levando os pais da menina à falência. Sem dinheiro, não sobrou outra alternativa para a família do que vender a propriedade rural e se mudar para a cidade de São Paulo.
Na capital, os pais de Dora compraram uma grande casa na Rua Marquês de Itu, no centro, e a transformaram em pensão. Enquanto viviam em um quartinho pequeno nos fundos do imóvel, eles alugavam os demais cômodos. Era assim que conseguiam dinheiro para se manter. A vida dura dos pais se tornou um estorvo para Dora à medida em que ela foi crescendo. A jovem sentia vergonha da sua pobreza e da sua feiura. Para completar, ela tinha profunda inveja da Tia Elisinha Rodriguez, uma rica moradora de um palacete na Rua Maranhão, em Higienópolis. Elisinha havia se casado há muitos anos com Paulo Rodriguez, um espanhol de origens aristocratas que possuía fábricas de tecidos em São Paulo e em Taubaté. A vida luxuosa da parte rica da família angustiava Dora, que odiava a Tia Elisinha e todos os Rodriguez.
Já adolescente, Dora fazia de tudo para não visitar a residência da Rua Maranhão. Ela se sentia humilhada pela tia e pelos primos nos eventos sociais promovidos ali. Muitas vezes, a jovem invejosa conseguia escapar das festas em Higienópolis, mas em outras oportunidades ia arrastada pela mãe e pela avó, que gostavam de conviver com os parentes ricos. Expor sua aparência modesta e suas roupas simples para os Rodriguez era o pior suplício de Dora, ainda mais quando Alexandre Paulo Vidal Rodriguez estava por perto. O filho mais velho de Tia Elisinha e do Tio Paulo era o estereótipo do rapaz de ótimo berço: culto, bem-educado, bem vestido e de gosto apurado. Ciente da sua posição inferior, Dora odiava quando o primo mais velho ficava olhando-a. Na certa, pensava, ele estaria julgando sua pobreza e ridicularizando com os olhos a sua falta de beleza.
O tempo foi passando e Dora concluiu a escola e o magistério. Pouco a pouco, seu corpo de menina deu lugar ao de uma mulher vistosa. Se não era uma moça muito bonita, ao menos a feiura havia ficado para trás. Uma vez professora, ela foi trabalhar no interior em uma escola pública. O salário da docente ajudava muito em casa. Os pais voltaram a morar em uma propriedade rural e lá a família levava uma vida extremamente simples.
Para perplexidade de Dora, um dia Alexandre Rodriguez apareceu por lá para visitar os tios. O rapaz dizia estar na região para comprar propriedades, mas ele estava na verdade encantado com a beleza da prima. Os dois começaram a namorar. Quando Alexandre manifestou interesse em se casar com Dora, a Tia Elisinha entrou em desespero. Como assim seu filho rico e culto teria como esposa uma moça feia e pobre? O que a alta sociedade paulistana iria pensar ao ver um legítimo Rodriguez se juntando a uma pé-rapada?! Na certa, seria uma grande vergonha para a família aristocrata. Elisinha foi terminantemente contra o matrimônio entre os primos. Se Dora já a odiava, depois disso passou a não suportar a sogra. Digo sogra porque Alexandre e Dora acabaram se casando.
O jovem casal se mudou para São Paulo. A vida de pobreza e de limitações da protagonista ficaram terminantemente para trás. Morando em um casarão, dona de ótimos e incalculáveis vestidos e possuindo joias raras, Dora passou a frequentar assiduamente os principais eventos da alta sociedade paulista. Se antes do casamento ela era uma zé-ninguém, agora ela era uma Rodriguez. A nova vida aflorou o lado orgulhoso da jovem. Com vergonha da pobreza dos pais, Dora Laura Vidal de Rodriguez passou a evitá-los o quanto podia. Além disso, no papel de esposa e de mãe de família (Alexandre e Dora tiveram quatro filhos: Lilian, Alexandre, Dorita e Paulo), ela tornou-se extremamente arrogante, racista e elitista. A riqueza transformou Dora em uma personagem profundamente antipática. Emergia, assim, a anti-heroína do romance, que iria atormentar a vida de todos os seus familiares dali para frente.
“Os Rodriguez” é um romance histórico de 256 páginas. Essas páginas estão distribuídas em 15 capítulos. Li esta obra em três noites consecutivas. Comecei a leitura no domingo e a concluí na última terça-feira. Devo ter levado aproximadamente sete horas para ir do início ao fim deste livro. Admito que gostei muito do conteúdo de “Os Rodriguez”. Das publicações de Maria José Dupré, esta é, sem dúvida nenhuma, a que possui o conteúdo mais mordaz. Esta narrativa apresenta as falsidades, as maldades, os preconceitos, o falso moralismo e as futilidades da aristocracia burguesa da metade do século XX. Dora de Rodriguez é uma das mais cínicas, cruéis, orgulhosas e mesquinhas protagonistas da literatura nacional. É duro o leitor engolir as atrocidades cometidas por ela durante a trama. A vontade que dá é de estrangulá-la. Tem coisa melhor do que odiar intensamente a anti-heroína de uma história ficcional, hein?!
O grande mérito de Maria José Dupré não está apenas na vilania da personagem principal. O mais legal deste romance é que o comportamento de Dora se torna quase idêntico ao de Tia Elisinha à medida que a história avança. Todas as características e hábitos que a moça pobre mais odiava na parente rica, ela incorpora com o tempo. Uma vez integrada à família Rodriguez e ao elevado padrão de vida, Dora passa a agir igual ou até mesmo pior do que a tia. Incrível perceber essa transmutação página a página. E para agravar ainda mais o quadro, quanto mais envelhece, Dora de Rodriguez fica ainda mais orgulhosa, egoísta e avara. Aí, quem sofrerá será seu marido, o bom e pacífico Alexandre. Os filhos e os netos do casal também passarão maus bocados nas mãos de Dora.
“Os Rodriguez” é parecido a “Éramos Seis” e “Gina” ao retratar o drama de uma mulher de personalidade forte. O enredo do livro acompanha essa personagem ao longo de sua vida inteira. Assistimos, assim, à protagonista desde quando ela era uma menina simples do interior até sua velhice no Rio de Janeiro. Boa parte dos conflitos do romance está relacionada com a questão financeira. Esses conflitos não envolvem apenas a personagem principal, mas também sua família (pais, filhos, tios e primos). Outras semelhanças entre esses três romances são: boa parte de suas tramas são ambientadas na cidade de São Paulo; a morte dos patriarcas ocasionam graves crises financeiras nos seios familiares; os preconceitos da sociedade aristocrata são impiedosos com as personagens mais humildes dos livros; há graves brigas entre mães e filhos; e acompanhamos indiretamente vários episódios históricos durante as narrativas (neste caso específico, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Civil Espanhola).
As particularidades de “Os Rodriguez”, por sua vez, são: a protagonista tem muitas características negativas (algo impensável em “Gina” e em “Éramos Seis”); não há a definição precisa dos anos em que a história se passa (é preciso fazer associações com eventos históricos para identificar a datação dos acontecimentos da vida de Dora); e a filha da protagonista é a boazinha da trama enquanto a protagonista é a mulher ruim (inversão do que aconteceu nos romances anteriores de Dupré).
É difícil dizer qual é a melhor parte deste romance. A infância e a juventude complicadas da protagonista apresentam um conflito sensível e humano. A vida de riqueza e glamour de Dora de Rodriguez também expõe uma trama complexa e sutil. Contudo, para mim, o ponto alto da narrativa está em seu desfecho. O último capítulo de “Os Rodriguez” é simplesmente espetacular. Nele, Maria José Dupré consegue desnudar a psicologia da personagem principal. É nesse momento em que Dora consegue compreender o tipo de vida que levou e valoriza a filha que tanto desprezou. Incrível!
O único aspecto negativo desta obra está em seu Foco Narrativo equivocado. Assim como já havia acontecido em “Gina”, “Os Rodriguez” tem um erro gravíssimo na maneira como sua história é relatada. O narrador em terceira pessoa acompanha Dora desde a primeira página. Ele não desgruda da protagonista, observando tudo o que ela faz, fala e pensa. Até aí beleza. Contudo, em determinado momento do livro, o narrador simplesmente esquece a personagem principal, passando a acompanhar Dorita, a filha desprezada da protagonista. Isso é um problema gravíssimo de Foco Narrativo. Depois de alguns capítulos colado à Dorita, o narrador larga a filha e volta a acompanhar a mãe. Juro que não entendi esse vai-e-volta.
Adorei a trama ácida e incômoda de “Os Rodriguez”. Ao invés de sofrer com a protagonista, como ocorre normalmente nos romances adultos de Maria José Dupré, aqui o leitor sofre com o que a personagem principal apronta. Essa mudança de perspectiva acentua ainda mais o drama da narrativa e o torna em muitos momentos sufocante. Para quebrar o tom amargo da história, Dupré insere elementos de pura ironia. Eles são sutis, é verdade, mas são extremamente contundentes. O leitor fica de boca aberta toda vez em que se depara com algum comportamento contraditório de Dora ou presencia alguma passagem trágico-cômica dela.
É uma pena que este romance tenha sido esquecido pelo grande público (e pelas editoras) com o passar das décadas. “Os Rodriguez” é uma obra espetacular e permanece sendo extremamente atual, mesmo depois de três quartos de século de sua publicação. Quem gosta de boa literatura, precisa conhecê-lo.
O Desafio Literário de maio prossegue na próxima segunda-feira, dia 25. Nesse dia, o Bonas Histórias analisará o sexto e último livro de Maria José Dupré desse estudo. A obra em questão será “O Cachorrinho Samba” (Ática), um exemplar da literatura infantil da escritora paulista. Não perca as novidades deste Desafio Literário.
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