Nesta semana, li “A Ilha Perdida” (Ática), o segundo livro de Maria José Dupré do Desafio Literário de maio. Esta obra representou o maior sucesso da escritora paulista na literatura infantojuvenil. Publicado há 76 anos, “A Ilha Perdida” é considerado hoje em dia um clássico do seu gênero. A trama dos meninos que ficaram presos em uma ilha aparentemente deserta foi também o primeiro livro da Série Vaga-Lume, famosa coletânea da Editora Ática lançada em 1973 e destinada ao público mirim. Para muita gente, esta publicação é a melhor história da coletânea da Ática, ao lado de “A Turma da Rua Quinze” (Ática), de Marçal Aquino, e “O Rapto do Garoto de Ouro” (Ática), de Marcos Rey. Há quem vá além, colocando esta obra de Dupré no patamar de “O Gênio do Crime” (Global), romance investigativo de João Carlos Marinho da Silva, na lista dos melhores títulos infantojuvenis da segunda metade do século XX.
Além do grande sucesso de crítica, “A Ilha Perdida” se tornou um dos maiores best-sellers nacionais de sua categoria. Com sete dígitos em vendas, o livro de Maria José Dupré divide com “A Turma da Rua Quinze”, “Açúcar Amargo” (Ática), de Luiz Puntel, “O Escaravelho do Diabo” (Ática), de Lúcia Machado de Almeida, “Deu a Louca no Tempo”, de Marcelo Duarte, e “O Mistério do Cinco Estrelas” (Ática), de Marcos Rey, o posto de obra mais comercializada na história da Série Vaga-Lume. É quase impossível não encontrarmos este livro em uma boa biblioteca pública ou particular do Brasil. Suspeito também que, em qualquer roda com mais de dez pessoas com idades abaixo dos cinquenta anos, seja improvável não encontrarmos ao menos um leitor deste romance.
Publicado em 1944, “A Ilha Perdida” aproveitou-se de algumas personagens apresentadas ao público no primeiro livro infantojuvenil de Maria José Dupré, “Aventuras de Vera, Lúcia, Pingo e Pipoca” (Saraiva), de 1943. Essas mesmas figuras seriam exploradas com mais intensidade em “A Montanha Encantada” (Ática), livro de 1945, e “A Mina de Ouro” (Ática), de 1946. Afinal, em “A Ilha Perdida”, Vera e Lúcia, assim como seus cachorrinhos Pingo e Pipoca, surgem apenas no final da narrativa e são meras coadjuvantes da trama. Nos demais romances da escritora paulista, elas são alçadas novamente ao primeiro plano do enredo.
Foi com “A Ilha Perdida” que Maria José Dupré se consolidou como uma das grandes autoras infantojuvenis de nosso país. Leitura obrigatória nas escolas brasileiras há pelo menos quatro gerações, muita gente conhece mais os romances para os pequenos desta escritora do que os seus romances adultos. Com exceção de “Éramos Seis” (Ática), o principal trabalho literário de Dupré, os demais livros adultos da autora se tornaram, infelizmente, um tanto esquecidos nas últimas três décadas. Curiosamente, esse envelhecimento do portfólio de Maria José não aconteceu na parte das obras infantojuvenis. “A Ilha Perdida”, “A Montanha Encantada”, “A Mina de Ouro” e “O Cachorrinho Samba” (Ática), por exemplo, são títulos atualíssimos e ainda podem ser encontrados nas principais livrarias do Brasil. Ou seja, para as crianças e adolescentes de hoje, Maria José Dupré permanece como uma autora viva e atuante (ela faleceu em 1984).
“A Ilha Perdida” é narrado em terceira pessoa e aborda as aventuras dos irmãos Henrique e Eduardo, de quatorze e doze anos, respectivamente, pelo interior do Estado de São Paulo. Os garotos da cidade grande foram passar as férias de Verão na fazenda de seus padrinhos no Vale do Paraíba. Lá, a dupla de adolescentes conhece a história intrigante de uma ilha misteriosa localizada bem no meio do Rio Paraíba, descrito como caudaloso e bastante extenso. A ilha fluvial é chamada de Ilha Perdida pelos moradores da região por seu caráter isolado e pouquíssimo frequentado. Dizem que o lugar é totalmente inabitado. A Ilha Perdida exerce fascínio e medo em Quico e Oscar, os primos mais jovens de Henrique e Eduardo. Os meninos não se cansam de narrar aos primos visitantes o sonho de um dia visitar a misteriosa ilha no meio do rio.
Depois de descobrirem uma velha canoa estacionada às margens do Rio Paraíba, Henrique e Eduardo decidem visitar de maneira clandestina a tal ilha. Sem contar para ninguém sobre o itinerário do passeio (nem para Quico e Oscar eles divulgaram o plano), os dois garotos saem da fazenda dos padrinhos de manhãzinha munidos de água e de lanche e partem em direção à Ilha Perdida. A dupla chega ao destino sem problema nenhum. Maravilhados com a natureza virgem e exuberante, eles passam o dia explorando o local. Contudo, Henrique e Eduardo se perdem na floresta e não conseguem mais voltar até a canoa, deixada em uma das prainhas da ilha.
Só no dia seguinte os protagonistas do romance encontram a velha canoa. Porém, uma forte chuva tornou as águas do rio muitíssimo revoltas. O Paraíba está inavegável. Enquanto esperam a maré abaixar para retornar à fazenda dos padrinhos, os irmãos são surpreendidos por uma grande onda. Ela engole a canoa da dupla, levando-a para o meio do rio. Sem um veículo para voltar, Henrique e Eduardo ficam presos e, por consequência, incomunicáveis na Ilha Perdida. Para piorar, ninguém sabe que os adolescentes estão por lá. Como os garotos farão para retornar à fazenda dos padrinhos?!
Enquanto tentam bolar um plano para construir uma nova jangada, Eduardo e Henrique são separados um do outro. O irmão mais velho vira refém de Simão, um eremita que defende a ferro e fogo o isolamento da ilha que habita. O homem com hábitos aparentemente estranhos não aceita que ninguém volte daquele lugar, com medo que a beleza da floresta seja divulgada para os homens cruéis e predadores do “continente”. No pensamento pessimista de Simão, se alguém souber da riqueza da fauna e da flora da ilha, na certa vai querer invadir o local e destruir tudo. Por isso, ele não quer liberar Henrique de jeito nenhum. O rapaz se torna seu prisioneiro.
“A Ilha Perdida” tem pouco menos de 140 páginas que estão divididas em 16 capítulos. Para um adulto, esta leitura é extremamente rápida. Devo ter levado entre duas e três horas para percorrer integralmente o conteúdo da obra. Li tudo em uma única noite nesta semana. Na certa, uma criança e um adolescente demoram três ou quatro vezes mais do que isso para navegar por todas as páginas do livro. O resultado de “A Ilha Perdida” é realmente impressionante. Este romance é impecável. Eu o li pela primeira vez na minha infância e ainda hoje, antes desta segunda leitura, me recordava de algumas passagens.
O mais incrível de “A Ilha Perdida” é a sua atemporalidade. A obra não envelheceu nadinha de nada desde a sua publicação. Trata-se de um feito para uma história desenvolvida há três quartos de século. A sensação que temos durante esta leitura é de estar acompanhando uma narrativa contemporânea. Maria José Dupré construiu uma trama extremamente atual, com temas típicos do século XXI, como a sustentabilidade e a proteção ambiental. Maravilhoso notar que a autora paulista se preocupava com esses temas já na primeira metade do século passado. Essa pegada ecológica do texto mistura-se a uma intrincada história em que a fauna, a flora e o morador isolado da Ilha Perdida (um homem com um forte ideal de defesa do meio ambiente) são os responsáveis por solucionar o conflito dos garotos.
O lado fantástico de “A Ilha Perdida” está relacionado à vida harmônica e inteligente dos animais na floresta. Os vários bichos se comunicam e agem integrados em prol do bem comum. De certa forma, eles são os olhos, os ouvidos e, por que não, as mãos e os pés de Simão na ilha. A compreensão do quão bela e conectada pode ser a vida na natureza é parte do charme deste romance. Impossível não se emocionar com a alegria e as peraltices protagonizadas pelos vários amigos do morador isolado da floresta. Em alguns capítulos, os animais acabam roubando para si o protagonismo da narrativa, configurando-se em importantes personagens desta aventura.
Outro aspecto elogiável do romance está na construção das personagens. Dupré criou um romance sem vilões explícitos (talvez a enchente do rio e/ou os caçadores que invadem a ilha exerçam esse papel na prática). Como isso é possível?! O aparente antagonista, Simão, é muito mais uma personagem redonda do que necessariamente uma figura que possa ser demonizada pelos leitores. O desenvolvimento das características psicológicas, sentimentais e comportamentais de Simão é magnífico. Arrisco-me a dizer que Simão é uma das grandes criações da literatura infantojuvenil brasileira. O verdadeiro papel desta figura misteriosa só fica claro no desfecho do livro. Em um primeiro momento, o leitor até pode pensar que a trama está se estendendo muito depois que os irmãos retornam para a fazenda dos padrinhos. Porém, é preciso atenção para notar os nuances desta trama. As páginas finais são decisivas para esclarecer o que de fato se passou nos dias em que os protagonistas permaneceram “isolados” e “indefesos” na ilha.
Como é típico da Série Vaga-Lume, o livro de Maria José Dupré é ilustrado com cenas da história. Essas ilustrações ajudam o jovem leitor a construir as imagens mentais da narrativa da escritora paulista. O único problema desse recurso é quando a ilustração se antecipa ao texto, quebrando parte das surpresas da narrativa. Infelizmente, isso acontece uma ou duas vezes durante os capítulos.
Além do respeito à natureza e aos animais, outro ponto sensível desta história é a relação de amizade entre Simão e Henrique. Diferentemente do que se aparenta em um primeiro momento, o morador da ilha não é a figura monstruosa que pinta. É legal ver a filosofia e o estilo de vida de Simão e o sentimento de gratidão de Henrique por tudo o que o amigo fez por ele e por seu irmão.
O único ponto negativo de “A Ilha Perdida” é a inverossimilhança de sua trama. Como pode haver uma ilha no meio de um pequeno rio do Estado de São Paulo com uma proporção tão gigantesca e com um ecossistema tão variado?! E como é possível essa ilha ser desabitada e, mesmo assim, não atiçar a curiosidade de nenhum adulto da região para dar uma passadinha por lá? Difícil colar essa história. Talvez se ela fosse ambientada em um rio amazônico ou do pantanal a verossimilhança fosse atingida.
Mesmo com essa pequena pisadinha de bola de Dupré, “A Ilha Perdida” não perde em nada em sua relevância e na emoção do seu conflito. Temos aqui um romance memorável que encanta ainda hoje tanto os pequenos/jovens quanto os grandes/velhos leitores. Não sei se esse livro de Maria José é o melhor da Série Vaga-Lume, mas na certa ele está entre os melhores. O mesmo conceito se aplica quando analisamos toda a literatura infantojuvenil brasileira. “A Ilha Perdida” deve sim ser colocado em uma posição de destaque nas nossas estantes.
Na quarta-feira da semana que vem, dia 13, darei sequência ao Desafio Literário de maio. A terceira obra de Maria José Dupré que será analisada pelo Bonas Histórias é “Gina”, romance adulto lançado em 1945. Este livro foi transformado em telenovela pela Rede Globo em 1978. Não perca a continuação da investigação sobre a literatura de Maria José Dupré. Até a próxima semana!
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