Jack Kerouac é o primeiro escritor que terá seu estilo literário analisado no Bonas Histórias em 2020. Para a realização deste estudo, foram lidos e comentados, em abril, na coluna Desafio Literário, seis dos principais livros do autor norte-americano: “Cidade Pequena, Cidade Grande” (L&PM Editores), “On The Road - Pé na Estrada” (L&PM Pocket), “Os Subterrâneos” (L&PM Pocket), “Os Vagabundos Iluminados” (L&PM Pocket), “Big Sur” (L&PM Pocket) e “Pic” (L&PM Pocket). Por essa amostra, dá para perceber, desde já, que demos preferência para a prosa ficcional (romances e novelas) em detrimento aos demais textos. É, portanto, sobre essa parte específica da literatura de Kerouac que vamos nos debruçar. Assim, renunciamos, por ora, às coletâneas poéticas, aos ensaios não ficcionais e aos registros autobiográficos do pai da Geração Beat.
Logo de início, abro um parêntese simbólico para explicar o quão complicado é tratar, nos dias de hoje, do legado artístico e cultural de Jack Kerouac. Sua importância vai muito além da qualidade narrativa e estética de sua produção textual. Gostemos ou não de suas histórias (isso é uma questão de gosto), esse escritor é inegavelmente um dos nomes mais impactantes da literatura norte-americana no século XX (aí sai a questão do gosto particular e entra um fato inegável!). Seus livros influenciaram gerações de jovens do mundo inteiro principalmente entre as décadas de 1950 e 1970. Não é errado afirmar que Kerouac e suas obras semi-autobiográficas ajudaram a moldar o espírito da juventude transgressora (sexo, drogas e rock´n roll) dos últimos setenta anos. Ou seja, temos aqui alguém que ultrapassou a relevância na esfera literário-artística e se consolidou, acima de tudo, como um estandarte cultural da sociedade contemporânea.
Jack Kerouac representou para a literatura o que James Dean, em seu icônico papel em “Juventude Transviada” (Rebel Without a Cause: 1955), significou para o cinema e Elvis Presley denotou para a música. Essa trinca bombástica estabeleceu, no final dos anos 1950, os novos padrões de comportamento e de ideais da mocidade durante toda a segunda metade do século XX. Não à toa, o Festival de Woodstock, realizado no final da década de 1960, foi o apogeu da contracultura. Na certa, Woodstock não teria acontecido ou não teria atraído tanta gente se não tivessem existido, dez anos antes, figuras precursoras como Kerouac, Dean e Presley.
Jack Kerouac é o símbolo maior do que ficou conhecido como a Geração Beat. Essencialmente literário, esse movimento surgiu nos Estados Unidos no finalzinho da década de 1940 e vigorou com mais intensidade até o final dos anos 1960. A Geração Beat encampou os desejos latentes da juventude do Pós-Segunda Guerra Mundial. Além disso, ela revolucionou a estética da prosa e da poesia norte-americana moderna. Ao lado de Kerouac, despontaram como figuras centrais do grupo beat Allen Ginsberg, William Burrjoughs, Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti, Michael McClure e Gary Snyder. É interessante ressaltar que todos esses escritores se conheciam e interagiam avidamente na formação de um estilo minimamente coeso e na construção de um conceito artístico mais ou menos homogêneo.
Outra personalidade fundamental para o movimento beat foi Neal Cassidy, uma espécie de vagabundo profissional que flertava com a delinquência social. Ele usava seu charme para angariar amigos e conquistar o apoio necessário para a perpetuação do seu estilo de vida doido. Aspirante a escritor, mas que nunca produziu uma linha (relevante) de texto literário, Cassidy influenciou seus companheiros, principalmente Jack Kerouac, pelo comportamento ousado e pela visão própria de mundo. Em outras palavras, a figura controversa, inconsequente e hedonista de Neal Cassidy resume perfeitamente o estilo beat. Não por acaso, ele se transformaria, quando inserido nas narrativas ficcionais de Jack Kerouac, em uma das mais icônicas personagens do século passado: Dean Moriarty, de “On The Road - Pé na Estrada”, e Cody Pomeray, nos demais romances kerouaquianos.
Os artistas beats podem ser vistos como os precursores do movimento Hippie, da estética Punk, da cultura do Paz & Amor, da prática do mochilão, do maior respeito à natureza (ecologia) e da valorização da espiritualidade. Além disso, eles criaram o conceito da juventude transgressora. Nessa fase da vida, um estágio que sucede a adolescência e precede o nível adulto, o indivíduo tem total independência para fazer o que lhe dê na telha. Como contraponto ao conservadorismo advindo da Segunda Guerra, os ideais beats permeavam a liberdade existencialista (a busca por um sentido à vida que não fosse trabalhar para ganhar dinheiro), o uso corriqueiro das drogas, a valorização da bebedeira e do alcoolismo, o sexo sem compromisso, o desapego material (como consequência, a aversão ao capitalismo e ao consumismo), a vida nômade, o repudio à estrutura da família convencional, a formação de comunidades alternativas e o flerte com o anarquismo. Esse é um resumo da perspectiva conceitual e cultural do movimento beat.
Para quem ainda possa duvidar da força das obras de Jack Kerouac, é legal mencionar que Bob Dylan e Hector Babenco, por exemplo, sempre afirmaram que fugiram de casa após a leitura de “On The Road”, a obra-prima do autor norte-americano. Influenciado pelos textos de Kerouac, Jim Morrison fundou The Doors. Aproveitando-se das inovações narrativas do autor beat, o jovem Beck Hansen virou cantor e uniu rap e poesia beat. Na hora de batizar seu novo grupo musical, John Lennon se lembrou dos beats e criou The Beatles. Há quem diga que Paulo Coelho fez sua caminhada por Santiago de Compostela, descrita em seu best-seller “O Diário de Um Mago” (Rocco), tendo como inspiração as longas viagens de Jack Kerouac pela América.
Ainda acha pouco?! Então aí vão algumas figuras que se dizem ou disseram influenciadas diretamente pelo trabalho de Kerouac: na música, Bono, Chrissie Hynde, Lou Reed e Joni Mitchell; no cinema, Francis Ford Coppola, Wim Wenders, Gus Van Sant, Johnny Depp e Jim Jarmush; na literatura, Tom Wolf, Charles Brukowski, Reinaldo Moraes, Bret Easton Ellis, Hunter Thompson e Jay MacInerney; e no teatro, Sam Shepard e Bob Wilson. Ufa! Convencido(a) agora?
Sob o ponto de vista literário, o grupo beat disseminou/intensificou/popularizou o fluxo de consciência nas narrativas (até então, esse recurso estava presente apenas em obras experimentais, como nos clássicos de James Joyce e Marcel Proust); propôs a liberdade temática (tratando quase sempre de assuntos espinhosos ou, o que é até mesmo mais radical, não falando de nada especificamente); buscou uma linguagem sem amarras (mais próxima da realidade e da oralidade popular); destruiu definitivamente as estruturas convencionais tanto da prosa quanto da poesia; e estreitou a patamares até então inéditos os componentes ficcionais dos elementos não ficcionais.
A partir desse inegável legado estilístico, pergunto: será que há um escritor de sucesso no século XXI que não tenha sido influenciado direta ou indiretamente por Kerouac e seus amigos? Duvido! Portanto, não é equivocado olhar para a Geração Beat como uma fase determinante da transição da Literatura Moderna para a Literatura Pós-Moderna.
Nascido em março de 1922, em Lowell, no Massachusetts, Jean-Louis Lebris de Kerouac (Jack é um pseudônimo) vem de uma família de classe média baixa. Seus avós eram de Quebec, o lado francês do Canadá, e imigraram para os Estados Unidos no final do século XIX. Seu pai trabalhou como tipógrafo e a mãe era dona-de-casa na Nova Inglaterra. O casal teve três filhos: Jean-Louis era o mais novo. Criado em um lar católico e educado em um colégio jesuíta, o caçula dos Kerouac é descrito, em sua infância, como uma criança tímida, gentil, introspectiva e generosa. Muito próximo à figura materna (característica que seria levada para a fase adulta), o menino falou exclusivamente joual, um dialeto francês do Canadá, até os seis anos de idade. A língua inglesa só seria conhecida e praticada por ele quando entrou na escola.
Além de gostar de literatura e de música, o pequeno Kerouac era louco por futebol americano. Desde garoto, praticou assiduamente esse esporte com certa seriedade. Quando adolescente, no high school (colegial/ensino médio) de Massachusetts, Jean-Louis se destacou na liga juvenil local e ganhou uma bolsa de estudo na Universidade de Columbia, em Nova York. Assim, ele se mudou com os pais para a Big Apple no comecinho da década de 1940. Contudo, uma séria contusão o tirou por quase um ano dos gramados. Nessa época, Jack passou a frequentar diariamente a biblioteca universitária, entretendo-se com as obras literárias à disposição dos estudantes. Mais tarde, já recuperado da lesão, uma discussão com o técnico do time levaria o futuro escritor a abandonar definitivamente a pretensão de se tornar um jogador profissional.
Quando largou os campos de futebol, o interesse de Kerouac já recaia cada vez mais sobre a literatura. No ambiente acadêmico, ele conheceu os primeiros integrantes da futura Geração Beat: Allen Ginsberg, Lucien Carr e Hal Chase. Mais tarde, integrariam o grupo, em Nova York, William S. Burroughs e Gregory Corso. A cidade na costa leste se tornou, dessa maneira, o epicentro do novo movimento literário norte-americano. Alguns anos mais tarde, uma ponte com os escritores de São Francisco, principalmente Lawrence Ferllinghetti, Michael McClure e Gary Snyder, seria construída. Isso, contudo, só viria a acontecer no final da década de 1940 e no início dos anos 1950.
Ao lado dos novos amigos nova-iorquinos, Jack Kerouac teceu os primeiros planos da nova estética literária que ele mesmo batizou de Beat. Além disso, o novo ambiente artístico-intelectual mais cosmopolita, moderno e liberal apresentou ao caçula dos Kerouac os prazeres das bebidas alcoólicas, das drogas, do sexo casual (em muitos casos, das orgias), da boemia e, por que não, da vagabundagem explícita. Um novo homem surgia nesse momento. Rascunhava-se não apenas o novo estilo de vida do autor como também se formavam as bases temáticas para suas tramas.
Ao deixar definitivamente a Universidade de Columbia, ainda nos primeiros anos da década de 1940, Jack Kerouac (chamemos, a partir de agora, o jovem Jean-Louis pelo seu nome artístico) passou a trabalhar em alguns empregos convencionais, apenas para se sustentar minimamente, e a realizar longas jornadas pela América do Norte. Ao se alistar na Marinha Mercante dos Estados Unidos, por exemplo, o rapaz trabalhou por quase um ano em navios que serviram de apoio logístico aos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Ao retornar a Nova York, Kerouac adorava viajar pelo país. Quase sem dinheiro no bolso, ele recorria às caronas e à boa vontade dos amigos para conhecer os Estados Unidos de costa a costa. Até o México ele chegou a ir.
Dois episódios ocorridos na segunda metade da década de 1940 foram cruciais para a formação literária de Jack Kerouac: o falecimento do pai, após anos de debilidade, e o estabelecimento da amizade com Neal Cassidy, que duraria a vida inteira.
Em 1946, com a morte do pai, vítima de câncer no estômago, Jack Kerouc decidiu, enfim, virar escritor. Vale lembrar que o pai sempre foi um ferrenho crítico ao seu estilo de vida boêmio, desregrado e inconsequente. O velho também não entendia o tipo de amizade que seu caçula fazia. Os amigos de Jack sempre foram vistos como marginais e vagabundos pela família Kerouac. De certa maneira, o falecimento do patriarca rompeu as barreiras emocionais do filho em se dedicar à escrita profissional.
Assim, entre 1947 e 1949, enquanto morava com a mãe no Queens, em Nova York, Jack Kerouac produziu seu primeiro romance. Publicado em março de 1950, quando o escritor tinha 27 anos, “Cidade Pequena, Cidade Grande” (L&PM Editores) é o único livro convencional da carreira de Kerouac e uma rara obra sua narrada em terceira pessoa. Até esse momento, Jack não escrevia usando a lógica do movimento beat, como seus colegas já faziam.
O enredo de “Cidade Pequena, Cidade Grande” mergulha nos dramas dos Martin, uma família franco-canadense da Nova Inglaterra. A trama se passa entre 1935 e 1945 e possui fortes tintas autobiográficas. George, o proprietário de uma respeitada gráfica local, e Marguerite, uma dona de casa afetuosa e compreensiva, se casaram e tiveram nove filhos: Rose, Ruth, Joe, Francis, Peter, Elisabeth, Charles, Julian e Mickey. A história deste livro mostra o choque de gerações e a desestruturação familiar à medida que os filhos de George e Marguerite Martin vão crescendo. Uma vez adultos, eles se tornam rebeldes e anseiam por ganhar a estrada (sair de casa de qualquer maneira).
Peter Martin, o rebento mais problemático do casal, é obviamente o primeiro alter ego de Jack Kerouac: ambas as figuras (a personagem ficcional e o escritor) nasceram em Massachusetts, em 1922, tinham mães de origem francesa, jogaram futebol na faculdade, tinham paixão pela literatura, aventuraram-se pela Marinha Mercante, viajaram pelo país pedindo carona, sonhavam em ser escritores, tinham amigos literatos e possuíam uma relação extremamente turbulenta com os pais. Peter Martin, portanto, é a primeira versão de Salvatore Paradise, Leo Percepied, Raymond Smith e Jack Duluoz, os narradores-protagonista seguintes de Kerouac, que também eram seu alter ego.
Misturando os relatos autobiográficos com a criação ficcional e mesclando saga familiar com romance de formação, “Cidade Pequena, Cidade Grande” foi diretamente influenciado pelo estilo de Thomas Wolfe, até então a grande referência literária do romancista iniciante. Segundo o próprio Jack Kerouac, sua pretensão ao escrever essa obra era produzir um “grande épico wolfiano”. Apesar de ter recebido alguns elogios da crítica literária, “Cidade Pequena, Cidade Grande” foi classificado como um livro pouco original e com uma narrativa, em muitos momentos, entediante. Além disso, o romance se tornou um fracasso retumbante de vendas. Praticamente, os leitores desse título ficaram restritos aos amigos e familiares do autor.
Após um rápido período de frustração, Jack Kerouac lançou-se à fase mais produtiva de sua carreira. Nos sete anos seguintes, ele produziria quase todos os seus livros mais importantes. Mesmo recebendo enxurradas de recusas das editoras (elas não viam graça em suas tramas), mesmo não tendo nenhum dinheiro no bolso (apesar de escrever, nenhum romance seu era publicado) e mesmo vendo seus amigos já trilhando algum sucesso (eles sim conseguiram agradar os críticos e aos leitores), Kerouac não esmoreceu. Morando com a mãe na maior parte do tempo ou no fundo das casas dos amigos quando viajava, ele sonhava em ser como Jack London, Mark Twain, Herman Melville, John dos Passos, Walt Whitman e Thomas Wolfe. Queria ser a versão norte-americana de Marcel Proust, autor francês que romanceou sua vida no início do século XX. Assim, Jack colocava no papel todas as suas experiências pessoais, transformando sua biografia em várias narrativas ficcionais.
Para entendermos plenamente essa fase da trajetória pessoal e profissional do mais famoso escritor beat, é preciso voltarmos outra vez para 1946. Além desse ter sido o ano da morte do pai de Jack Kerouac, essa data também marcou o início da amizade do autor com Neal Cassidy. Esse é o segundo acontecimento decisivo para a formação da literatura kerouaquiana.
Quando Jack Kerouac conheceu Neal Cassidy, o novo amigo tinha acabado de sair de mais uma temporada no reformatório juvenil. Desde adolescente, Cassidy se envolvia com vários crimes. Não à toa, era costumeiro frequentador das cadeias federais por longas temporadas. Em 1946, então com vinte anos, Neal Cassidy se dizia cansado de sua vidinha em São Francisco e, por isso, viajou com a esposa para Nova York. Alegando pretensões literárias, ele procurou Hal Chase, um velho conhecido, para pegar algumas dicas de como iniciar na escrita profissional. Chase, colega de Kerouac na Universidade de Columbia, apresentou o recém-chegado da costa oeste para sua turma.
Jack Kerouac ficou fascinado com o estilo de vida anárquico de Neal Cassidy, esse sim um vagabundo profissional de padrão mundial. Sem muita preocupação com o trabalho e em como ganhar dinheiro legalmente, Cassidy vivia entre os pequenos delitos e a ajuda financeiro-logística dos amigos. Viciado em sexo (tinha ao menos uma namorada em cada canto do país), ótimo de copo, usuário de drogas, bon vivant (ou deveria dizer hedonista?), ele passava seus dias curtindo a vida como se não houvesse amanhã. E o que esse rapaz mais gostava de fazer era viajar. Mesmo sem um tostão no bolso, pegar uma estrada, sem saber para onde e o porquê, era com ele mesmo.
Ao lado de Neal Cassidy, Jack Kerouac viajou por vários anos entre a segunda metade da década de 1940 e o início dos anos 1950. Quase sempre sem grana, a dupla pegava carona nas estradas e dormia aonde era possível. Depois de ir e vir incontáveis vezes da costa oeste para a costa leste, eles foram para a cidade do México.
Em abril de 1951, já de volta à casa da mãe em Nova York, Kerouac decidiu colocar no papel suas experiências como andarilho. Surgia, assim, “On The Road - Pé na Estrada” (L&PM Pocket), a obra-prima do movimento beat. Em apenas três semanas, o escritor romanceou suas aventuras ao lado de Cassidy pela América do Norte. Escrevendo compulsivamente de dia e noite, a base de doses cavalares de Benzedrina e de café, ele datilografou sua história em folhas de papel de Telex. Assim, evitava a perda de tempo provocada pela troca constante das folhas na máquina de escrever. Com a agilidade conferida pelos papéis de Telex, o autor pôde dar vazão à criativa técnica da Escrita Automática. Nesse processo produtivo tipicamente kerouaquiano, o escritor batia nas teclas da máquina de escrever sem pensar muito no que estava saindo. O resultado era o acesso direto às suas memórias. Segundo Kerouac, essa técnica driblava os mecanismos do bloqueio da consciência, o que o ajudava na composição mais tênue entre a ficção e a realidade.
Se “On The Road” foi produzido tão rapidamente, por outro lado, o livro demorou cinco anos até receber uma avaliação minimamente positiva de uma editora. Ninguém em sã consciência queria publicar um romance com quase 500 páginas sobre um grupo de arruaceiros que viajavam pelo país barbarizando. Depois de centenas de recusas, uma pequena editora, enfim, resolveu apostar, em 1956, naquele material tão controverso. A ousadia coube à Viking Press e seu editor Malcolm Cowley. Porém, para publicar “On The Road”, Cowley exigiu de Kerouac vários ajustes no texto. Além de cortar um quarto da narrativa, o escritor precisava organizar a trama e corrigir as pontuações das frases. Vendo que Kerouac teria dificuldade em fazer isso sozinho, o editor mesmo colocou a mão na massa e por meses fez as alterações que julgou apropriadas.
Em 1º de setembro de 1957, chegava às livrarias norte-americanas “On The Road”, o segundo romance de Jack Kerouac, então com 35 anos. Graças a uma avaliação extremamente elogiosa do The New York Times três dias mais tarde, o livro se tornou um best-seller instantâneo. Nas semanas seguintes, a crítica literária dos Estados Unidos curvou-se para as inovações estéticas, temáticas e narrativas de Kerouac. O autor e seu romance se tornaram os novos queridinhos dos jovens do país, ávidos por dar um pontapé no conservadorismo até então reinante.
Narrado em primeira pessoa por Salvatore Paradise, um universitário aspirante a escritor, “On The Road” inicia-se no inverno de 1947. A rotina tranquila e com poucas aspirações do protagonista é quebrada quando ele conhece Dean Moriarty. Recém-chegado a Nova York, o novo amigo de Sal, como o narrador é chamado por todos, é um jovem trambiqueiro que saiu há pouco de um reformatório juvenil no Novo México. Após deixar sua esposa e seu filho pequeno em São Francisco, Moriarty viajou para a costa leste com uma de suas amantes. Viciado em sexo, drogas, bebidas, festas e azaração, o que ele quer é aproveitar a vida ao máximo.
Apesar do estilo de vilão inconsequente e egoísta (ele é quase um psicopata), Dean Moriarty possui certo charme que hipnotiza os amigos, as mulheres e, principalmente, Sal Paradise. O narrador fica encantado com o estilo de vida do novo amigo e parceiro de vagabundagem. Dessa maneira, os dois, que se tornam uma dupla inseparável, passam a viajar compulsivamente pelos Estados Unidos.
O sucesso estrondoso de “On The Road” abriu as portas do mercado editorial para Jack Kerouac. Se ele havia demorado sete anos para publicar algo novo depois de “Cidade Pequena, Cidade Grande”, agora todas as editoras do país queriam lançar uma obra sua. Como escritor passara os últimos seis anos trabalhando em silêncio, apesar das constantes recusas, ele tinha uma variedade enorme de material inédito à disposição. Com tanto texto prontinho, só bastava imprimi-los. Assim, de 1958 a 1961, Kerouac publicou nada menos do que nove livros (quatro romances, duas coletâneas poéticas, dois ensaios autobiográficos e uma novela) e três LPs (sua poesia foi gravada em áudio). Isso dá uma média impressionante de três títulos e um LP por ano.
Os romances que vieram logo depois de “On The Road” se assemelhavam em conteúdo à principal obra de Jack Kerouac. Eles eram títulos semi-autobiográficos que relatavam em primeira pessoa episódios do passado do autor antes da fama. Essas histórias enfocavam as aventuras de um protagonista deslocado da sociedade e que não se encaixava na rotina convencional do mundo capitalista. Normalmente, as personagens principais dessas obras eram homens fascinados por figuras polêmicas: um amigo criminoso, um conhecido fortemente religioso, um colega adepto do montanhismo/naturalismo, uma moça negra (em uma época em que os Estados Unidos viviam um grave conflito inter-racial) ou uma amante mexicana que trabalhava como meretriz. Além disso, a ambientação dessas histórias era sempre muito parecida: grupo de amigos hippies que desejava curtir a vida adoidado.
Na virada da década de 1950 para os anos 1960, o amadurecimento da literatura de Jack Kerouac se deu mais pela estética do que pelo conteúdo. A forma como seus textos ficcionais eram apresentados adquiriram um aspecto inovador, caótico e espontâneo, mais condizente com a proposta da Escrita Automática. Sendo um escritor famoso, agora nenhum editor tinha a coragem de podar suas maluquices narrativas, como Malcolm Cowley havia feito. Exatamente por isso, esse período reservou os melhores livros do autor: “Os Subterrâneos” e “Os Vagabundos Iluminados”.
Publicado em 1958, “Os Subterrâneos” (L&PM Pocket) é um dos livros mais polêmicos e surpreendentes de Jack Kerouac. Escrito em apenas três dias e três noites de 1955, essa obra narra um drama sentimental denso, inovador, ácido e amargo. O romance foi baseado no namoro breve e intenso do autor com Alene Lee, uma nova-iorquina negra. O casal se conheceu no Verão de 1953, quando ela trabalhava digitando os manuscritos de William Burroughs e Allen Ginsberg, dois autores da Geração Beat amicíssimos de Jack, e quando ele aguardava uma resposta positiva das editoras para a publicação de “On The Road”.
Na trama ficcional de “Os Subterrâneos”, Leo Percepied, um escritor fracassado de 30 anos, se apaixona por Mardou Fox, uma moça negra dez anos mais jovem. Inteligente, independente, liberal e extremamente bonita, Mardou é a mulher que Leo sempre sonhou. Apesar da felicidade de conviver diariamente com ela, o narrador-protagonista não saberá lidar com esse relacionamento em meio a sua rotina de bebedeiras homéricas, de consumo pesado de drogas e do hábito do sexo livre. Contudo, o que parece realmente atrapalhar o casal é a postura racista, misógina, homofóbica e inconsequente de Leo Percepied. Ou seja, apesar de descrever uma história de amor, o que mais temos nesse romance é loucura, depressão, abuso psicológico, violência moral, preconceitos sociais, dependência química e egoísmo. Os sentimentos belos e nobres como o amor ficam em segundo plano.
As principais críticas que o texto de “Os Subterrâneos” recebeu foi pelo seu conteúdo racista, machista/misógino e homofóbico. Por isso, é preciso estômago forte para encarar essa narrativa. Leo Percepied, como todos os protagonistas de Jack Kerouac, é um psicopata egocêntrico e hedonista. Infelizmente, ele não tem a mínima capacidade de se relacionar com uma mulher moderna, atraente, inteligente e bem resolvida. Assistir ao boicote velado do rapaz imaturo e desequilibrado emocionalmente ao namoro com Mardou Fox é uma experiência assustadora.
Se o conteúdo desse romance pode ser questionado do ponto de vista do enredo politicamente correto, sua estética narrativa é impecável. É nesse ponto que notamos o crescimento da qualidade da literatura de Jack Kerouac. Até então, o autor norte-americano não tinha ousado tanto na técnica da Escrita Automática. Para sermos francos, “On The Road”, apesar da fama e do sucesso que obteve, era um livro fraquinho, fraquinho quando analisado pela perspectiva da estrutura da narrativa. Diferentemente da obra anterior, “Os Subterrâneos” possui uma trama multifacetada. Este livro mistura várias vozes (de Leo Percepied, de sua namorada e dos amigos do casal), diferentes planos (realidade, pensamentos e sonhos das personagens) e épocas distintas (presente, passado e, em alguns casos, futuro). Muitas vezes, essa junção acontece em uma única frase ou dentro da mesma oração. Para completar, as frases longuíssimas, os parágrafos quilométricos, as pontuações caóticas, o uso excessivo de gírias, a forte oralidade, a invenção de algumas palavras e a mistura de prosa com poesia (prosa poética) combinam perfeitamente com o estado de espírito do narrador e com a proposta estética do romance. Incrível! Como experiência de leitura, esta obra é exemplar.
Lançado no mesmo ano de “Os Subterrâneos”, “Os Vagabundos Iluminados” (L&PM Pocket) é o quarto romance de Jack Kerouac. Escrita em 1957, a obra relata a aproximação cada vez maior do escritor com a crença no budismo e com a prática do montanhismo. O que potencializou essas experiências foi a amizade com o poeta e ensaísta Gary Snyder. Praticante de longa data da filosofia zen e da escalada de montanhas, apaixonado pela cultura chinesa e ferrenho ativista ambiental, Snyder influenciou significativamente o novo amigo, quando este foi viver na costa oeste dos Estados Unidos.
“Os Vagabundos Iluminados” narra justamente as viagens da dupla de escritores, até então desconhecidos, pelas montanhas do país e pelo interior de suas almas. Durante a primeira metade da década de 1950, época retratada no livro, Kerouac morou em Mill Valley, na Califórnia, e se tornou amigo inseparável de Snyder. Como resultado prático dessa jornada místico-filosófica, Jack Kerouac confere algum sentido para seu estilo de vida um tanto alternativo. O cotidiano simples, a postura anticapitalista, a ideologia anticonsumista e a vontade de estar mais próximo à natureza adquirem agora um valor maior do que a mera vadiagem explícita das personagens de “On The Road” e “Os Subterrâneos”. Parece que o budismo e o montanhismo de “Os Vagabundos Iluminados” caíram como uma luva para explicar as aspirações mais íntimas do pai da Geração Beat.
Muitos críticos literários consideram esta obra, ao lado de “Visões de Cody” e “Os Subterrâneos”, como o melhor trabalho de Jack Kerouac. Eu não consigo concordar com essa opinião por causa da falta de uma boa edição (esse, por sinal, é o principal aspecto negativo da literatura do norte-americano). Se as cem primeiras páginas de “Os Vagabundos Iluminados” são as melhores que Kerouac já produziu em sua carreira (há muita ação, o ritmo é contagiante, as reflexões filosóficas são interessantes, assistimos a ótimas personagens, a trama possui um conflito rapidamente identificável e há cenas memoráveis), as cento e tantas páginas restantes são decepcionantes (a narrativa se torna repetitiva, as cenas são de uma banalidade inexplicável e os diálogos são vexatórios). Se um editor tivesse excluído a segunda metade do conteúdo desse romance, teríamos uma excelente novela. Prova maior dessa minha tese é que o próprio Jack Kerouac aproveitou os últimos capítulos de “Os Vagabundos Iluminados” como enredo de outro livro, “Anjos da Desolação” (L&PM Editores). Publicado em 1965, esse novo romance detalha as aventuras do escritor por Desolation Peak, a montanha de Washington onde ele trabalhou como guarda florestal.
Mesmo com as oscilações em sua trama, “Os Vagabundos Iluminados” é um bom título. As jornadas pelas montanhas dos Estados Unidos conferem um ar de transformação pessoal e de descoberta espiritual ao narrador-protagonista. A grande novidade deste livro é a inserção do elemento religioso/místico. Esse novo componente dá mais intensidade à narrativa e confere um maior sentido ao conflito psicológico-existencialista da personagem principal. Se compararmos esse romance a “On The Road”, por exemplo, “Os Vagabundos Iluminados” dá de goleada em termos de qualidade técnica: a narrativa, o conflito dramático e a construção das personagens são muito melhores.
Mesmo com sua qualidade indiscutível, esse livro não conseguiu escapar das polêmicas. Os principais críticos dessa obra de Kerouac foram justamente os praticantes do budismo, que alegaram que o autor teria deturpado os conceitos de sua religião. O incômodo maior recaiu nas cenas de orgia realizadas pelos budistas do livro, como se o sexo grupal fosse uma prática desta religião. O próprio Gary Snyder declarou, muitos anos depois do lançamento desta obra, que sua crença religiosa era muito distinta daquela descrita nas páginas do romance de Jack Kerouac. Segundo ele, o budismo de “Os Vagabundos Iluminados” era misógino e bastante erotizado.
A história ficcional deste romance é contada por Raymond Smith. Ray, como o narrador-protagonista é chamado por todos, é um vagabundo de trinta e poucos anos metido a escritor. Vivendo na região de São Francisco, ele conhece, certa noite em um bar, uma figura exótica. Japhy Ryder é o líder de um grupo de poetas praticantes do budismo e do montanhismo. Rapidamente, Ray fica fascinado pelas excentricidades e pela filosofia de vida daquele sujeito singular. Adepto da religião oriental, viciado em literatura, apaixonado pela simplicidade cotidiana, fã da cultura chinesa, vegetariano, promotor do amor livre, amante da natureza, anticonsumista/antimaterialista, praticante da meditação, solidário e montanhista experiente, Japhy Ryder é tudo o que Ray sempre almejou ser.
Dessa forma, os dois se tornam companheiros inseparáveis de viagens pelos Estados Unidos. Apesar de ser mais jovem do que Ray Smith, cabe a Ryder ser o mestre do amigo na iniciação ao montanhismo e no aprofundamento ao budismo. Através das experiências obtidas ao lado de Ryder, o narrador do romance passa a enxergar um novo sentido para sua vida. Possivelmente esse não é o melhor livro de Jack Kerouac, mas é o meu favorito. Gostei demais desse título!
Em 1962, Jack Kerouac publicou “Big Sur” (L&PM Pocket), seu sétimo romance. Esta obra é marcante pois ela expõe um lado até então inédito da trajetória do autor: a turbulenta fase do pós-fama. Vale lembrar que todos os livros anteriores apresentavam aspectos da vida de Jack antes do sucesso. Invariavelmente, seus protagonistas eram escritores fracassados e sem dinheiro no bolso. Com o sucesso estrondoso de “On The Road”, em setembro de 1957, o panorama mudou completamente. Jack Kerouac se tornou do dia para a noite um dos principais escritores norte-americanos, além de ficar milionário. Os convites para entrevistas, programas de TV e rádio, festas e eventos culturais se multiplicavam, além dos pedidos das editoras por mais e mais livros. O assédio dos fãs também não cessava. O público invadia a casa do escritor para conversar e para tomar alguns tragos com ele. Todos se sentiam amigos próximos de Kerouac, aponto de esquecerem da boa educação e das formalidades normais de uma aproximação com um desconhecido.
Jack Kerouac, que sempre teve um comportamento recluso e calmo, ficou extremamente incomodado com a nova situação. Cada vez mais desconfortável na posição de pop star norte-americano, ele se isolava na casa da mãe, onde passava dias e dias sem sair. O alcoolismo e o consumo de drogas se intensificaram no instante em que ele tinha dinheiro para bancar tranquilamente seus vícios. Dessa maneira, o escritor foi ficando cada vez mais doente - físico, emocional e mentalmente.
De forma corajosa, “Big Sur” expõe abertamente esse drama de Jack Kerouac. O livro narra, em uma semi-autobiografia, a viagem que o autor beat fez, em 1960, para as montanhas da Califórnia. Por sugestão de Lawrence Ferlinghetti, amigo e escritor, Kerouac deveria ficar isolado em uma casinha simples no alto de uma colina bucólica por algumas semanas. O contato intenso com a natureza e o distanciamento da civilização deveriam fazer bem ao angustiado artista. Contudo, a proximidade com os amigos de São Francisco (e suas festas, o álcool, as drogas e as orgias intermináveis) colocaram em xeque essa tentativa. O retrato sincero das paranoias, das crises depressivas, das alucinações e das reações do organismo do escritor frente aos períodos de abstinência química é algo chocante. Nota-se que a doença ainda não havia comprometido a capacidade produtiva de Jack Keroauc (repare na palavra “ainda” desta frase).
Em “Big Sur”, somos apresentados a Jack Duluoz, mais um alter ego de Kerouac. Duluoz é um escritor beatnik na casa dos quarenta anos, rico, famoso e que sofre com a exposição excessiva da mídia e com o peso da imagem de eterno vadio. Por isso, vive estressado e com depressão, abusando do álcool e das drogas. Sabendo dos problemas do amigo, Lorenzo Monsanto, um poeta californiano, convida o best-seller para passar uma temporada isolado do mundo. Monsanto tem uma cabana no alto de uma montanha na região de Big Sur e acha uma boa ideia Duluoz passar um tempo totalmente recluso. Assim, Jack Duluoz viaja de Nova York, onde mora com a mãe, para a costa leste.
Ora isolado, ora com os amigos, que ele não consegue afastar totalmente, Duluoz relata seus dramas mais íntimos. Ao mesmo tempo que quer paz, calma, tranquilidade e uma rotina simples, o protagonista-narrador do romance não consegue largar totalmente a badalação, a bebedeira e as drogas. Como consequência, ele padece diante do leitor, se aproximando da loucura completa.
Como é típico dos trabalhos de Jack Kerouac, “Big Sur” é um road story com uma estética textual caótica. O que torna esse livro tão especial é, primeiramente, a fixação de Jack Duluoz como o alter ego definitivo do escritor (até então os protagonistas de Kerouac mudavam de nome obra a obra, mesmo sendo a mesma pessoa) e, depois, o panorama da vida do autor famoso (que não levava uma rotina tão glamourosa quanto o público imaginava). Sem dúvida nenhuma, essa é a obra mais intensa e angustiante do pai da Geração Beat.
Depois de “Big Sur”, Jack Kerouac produziu só mais um novo livro ambientado no pós-sucesso de “On The Road”. A obra em questão é “Satori em Paris” (L&PM Pocket). Lançada em 1966, essa novela relata a viagem que o escritor fez para a França no início da década de 1960. Nota-se, portanto, que o agravamento das doenças (alcoolismo e dependência química) já afetava diretamente o trabalho do escritor. Ele tinha sérias dificuldades para se concentrar, não conseguindo escrever algo novo e de qualidade.
Assim, as últimas publicações de Jack Kerouac refletiram, em sua maioria, o padrão de seus livros do final da década de 1950 – textos escritos antes da fama e que relatavam de maneira semi-autobiográfica sua infância e sua juventude. Os destaques da década de 1960 são “Visões de Gerard” (L&PM Editores) e “Anjos da Desolação” (L&PM Editores). O primeiro foi publicado em 1963 e relata os dramas da infância do autor, quando uma grave doença atingiu seu irmãozinho mais velho. O segundo foi lançado em 1966 e descreve o período em que Kerouac atuou como guarda florestal em Desolation Peak.
Com a saúde cada vez mais fragilizada, Jack Kerouac se casou mais uma vez, agora com uma amiga de infância. O casal foi morar na Flórida. E lá Kerouac faleceu, em outubro de 1969, aos 47 anos. O motivo: hemorragia abdominal causada pela cirrose. Se esse cara não tivesse morrido pela bebida, juro que duvidaria, para sempre, da dinâmica da biologia humana.
Depois de sua morte, seis novos livros foram publicados (quatro romances e duas novelas). Como é mais ou menos típico no mercado editorial, a família e os editores aproveitaram seus textos que ficaram para trás para lançá-los com algum estardalhaço. A maioria deles, contudo, é composta por novelas de qualidade discutível, como “Pic” (L&PM Pocket), e romances inacabados, como “A Vida Assombrada & Outros Escritos” (L&PM Editores). Em alguns casos, as histórias reais por trás das descobertas dos manuscritos são melhores do que suas próprias narrativas ficcionais.
Vejamos o caso de “Pic”. Publicado originalmente em 1971, dois anos após o falecimento de Jack Kerouac, essa novela é uma narrativa sensível e ingênua. Ela trata do drama de um menino negro e pobre da Carolina do Norte em busca de um lar. Essa história foi escrita na segunda metade da década de 1940, sendo, portanto, uma das primeiras produções do escritor norte-americano. E por que, ele não quis publicá-la em vida? Porque essa narrativa é fraquíssima (compatível a um autor iniciante) e não tem nada a ver com o estilo da Geração Beat (“Pic” poderia muito bem passar por uma história de John Steinbeck, por exemplo). Na certa, Kerouac sabia disso e tinha vergonha desse trabalho. Com o autor morto, o obstáculo para o lançamento do livro estava superado. Aí sobra para o leitor inocente que compra a obra achando se tratar de um título da fase madura de Kerouac. Sabe de nada, inocente!
“Pic” é o único livro de Jack Kerouac não autobiográfico. O narrador-protagonista aqui é Pictorial Review Jackson, um menino negro de onze anos. Após o falecimento do avô, que eram quem cuidado dele, Pic, como a personagem principal é chamada por todos, é mandado para a casa de uma tia. Lá, ele é desprezado e humilhado pelos parentes até a chegada do irmão mais velho, Slim, um jovem inconsequente. Ao lado de Slim, Pic irá viajar o país em busca de emprego e da esperança de dias melhores.
Ou seja, “Pic”, como uma boa narrativa kerouaquiana, é um típico road story. O problema é que sua trama é extremamente bobinha (diria até infantil/juvenil), seu texto é marcadamente preconceituoso (a oralidade está relacionada ao jeito errado dos negros falarem) e há muitas cenas banais (que não empolgam um leitor mais exigente). O único ponto positivo é a denúncia social. Assistimos a episódios de racismo comuns na primeira metade do século XX nos Estados Unidos.
Sinceramente, poucos desses títulos póstumos podem ser elogiados. A exceção é “Visões de Cody” (L&PM Editores). Publicado em 1972, “Visões de Cody” foi escrito logo depois do término de “On The Road”, em 1951. E assim como o livro mais famoso de Kerouac, esse descreve a juventude do autor ao lado de Neal Cassady (Cody Pomeray na versão fictícia). Apesar de relatar os mesmíssimos acontecimentos de “On The Road”, “Visões de Cody” tem a preocupação de definir melhor o principal personagem da literatura de Kerouac. Dessa maneira, acabamos entendendo mais e melhor quem foi efetivamente Cody Pomeray/Neal Cassady.
Vista sob a ótica de hoje, a literatura de Jack Kerouac pode não ter a mesma força narrativa e estilística de cinquenta ou sessenta anos atrás. Por isso, é preciso encará-la com esse viés histórico. Um leitor atual desatento pode ler os romances do autor beat e não os achar grandes coisas. Entendo essa impressão. Realmente, boa parte de suas tramas são polêmicas e de gosto discutível. Ao mesmo tempo, não é com o olhar de hoje que devemos avaliar os textos de Kerouac, e sim pela perspectiva da época. E dessa forma, sim eles foram originais, intrigantes e ousadíssimos. Não à toa, tenham influenciado tanta gente dos mais diferentes campos artísticos e sejam materiais essenciais da contracultura moderna.
Depois de uma análise tão detalhada, uma pergunta ainda persiste: o que, afinal, tem de tão especial no estilo literário de Jack Kerouac? Para responder a esta pergunta nada simples, é preciso fazer um raio-X das principais novelas e romances do autor. A seguir, apresentamos as 14 características mais marcantes da ficção de Kerouac:
1) Tramas semi-autobiográficas
Há alguns autores que usam suas próprias experiências para construir o enredo de suas narrativas ficcionais. De cabeça, posso citar Marcel Proust, Herta Müller, Bernardo Kucinski, Fernando Sabino, Virginia Woolf e Kenzaburo Oe. E eles não foram os únicos a usar a própria vida como base de suas tramas, vale a pena frisar. Vários outros escritores fartaram-se deste expediente. Em suas histórias semi-autobiográficas, há certas partes compostas por elementos reais e outras formadas por invenções literárias. Normalmente, é difícil para o crítico literário apontar onde cada um desses aspectos começa ou termina. Sem uma investigação detalhada da biografia do autor e sem sua contribuição direta nesse tipo de definição, não conseguimos chegar a um veredito do que é verídico e do que é ficcional.
Jack Kerouac foi um dos escritores que mais se utilizou de sua vida pessoal como pano de fundo de seus enredos ficcionais. Ler seus romances e suas novelas é resvalar em sua biografia. Lá estão: personagens totalmente inspiradas em indivíduos reais; fatos extremamente próximos às passagens concretas da biografia do autor; e angústias verdadeiramente sentidas pelo norte-americano. Impossível questionar a verossimilhança dos textos kerouaquianos. O escritor foi além e usou, inclusive, trechos reais gravados de conversas com amigos em seus livros. Das fitas cassetes, as palavras ditas no mundo verdadeiro entraram na literatura.
Ler a ficção de Jack Kerouac é mergulhar na vida do autor beat. Por mais que o pacto ficcional seja respeitado, é impossível desassociar os elementos da biografia do escritor norte-americano de suas tramas ficcionais. Com exceção de “Pic”, uma novela publicada postumamente e que foge completamente do estilo de Kerouac, todos os demais romances e novelas deste autor foram baseados em acontecimentos verídicos.
2) Os narradores são o alter ego do autor e contam as histórias em primeira pessoa (narrador-protagonista)
Com raras exceções, como em “Cidade Pequena, Cidade Grande” (texto em terceira pessoa) e em “Pic” (história contada a partir do ponto de vista de um menino negro e pobre), os romances e as novelas de Jack Kerouac são sempre narrados em primeira pessoa por seus protagonistas (narrador-protagonista). E essas personagens principais são invariavelmente o auter ego do escritor. Assim, Sal Paradise, de “On The Road”, Leo Percepied, de “Os Subterrâneos”, Ray Smith, de “Os Vagabundos Iluminados”, e Jack Duluoz, de "Big Sur", são sempre o mesmo indivíduo: o próprio Jack Kerouac.
O alter ego do norte-americano é sempre um homem jovem que passa seus dias flanando livremente por aí, de preferência bebendo até cair, usando muitas drogas, fazendo sexo casual e viajando pelo país (alguém aí usou a palavra vagabundo?!). Hedonista, inconsequente, egoísta e fascinado por figuras/amigos subversivos e criminosos, o narrador típico de Jack Kerouac não trabalha nem dá a menor bola para o dinheiro e o conforto material. Apesar de não se importar com a família, o matrimônio e os filhos, ele é alguém muito preocupado com a mãe (a única pessoa por quem se preocupa além de si e dos amigos mais próximos). O que este narrador mais gosta de fazer, quando está lúcido, evidentemente, é de questionar os preceitos filosóficos e religiosos de sua existência, além de ser um grande apaixonado por literatura e pela música.
3) Obras do autor são independentes entre si, mas possuem grande unidade narrativa
Todos os livros ficcionais de Jack Kerouac são, de certa forma, independentes entre si (permitem a leitura individualizada sem problema nenhum). Porém, se eles forem lidos em sequência conforme sua cronologia narrativa (que não é a mesma da sequência das datas de publicação), podemos compreender melhor o panorama geral da literatura do autor beat (e sua biografia).
4) Recorrência das mesmas personagens, mas com os nomes alterados
Os livros de Jack Kerouac trazem sempre as mesmas figuras. Essa constatação não se aplica apenas aos narradores-protagonistas, mas também aos coadjuvantes e aos protagonistas pontuais. Em algumas obras ficcionais (principalmente no final da carreira), o autor norte-americano conseguiu repetir os mesmos nomes para suas personagens recorrentes. Contudo, por imposição das editoras, que temiam processos das pessoas verídicas citadas nas tramas, Kerouac teve que mudar constantemente os nomes de suas personagens. Parte da graça da leitura dessas obras é descobrir quem são essas personalidades que vivem pulando de um título para outro.
5) Narrativas ao estilo do road story
Não é errado pensarmos em Jack Kerouac como a maior figura da literatura moderna quando o assunto é road story. O escritor beat pode não ter sido o inventor deste tipo de gênero narrativo, que remonta aos autores gregos da Antiguidade (“Ilíada” e “Odisseia”, de Homero, são típicas road stories), mas foi o seu grande incentivador no século XX. Quase todas as tramas de Kerouac possuem forte carga de “pé na estrada”. Seria o norte-americano o Júlio Verne dos novos tempos? Minha resposta, sem qualquer dúvida, é positiva.
Uma road story, para quem não está familiarizado com este termo, é aquela história ficcional em que o protagonista passa boa parte do tempo viajando. O deslocamento constante é parte da aventura e está relacionado intimamente com o conflito principal da obra. E qual romance ou novela de Jack Kerouac não tem esse tom trilheiro, hein? De cabeça, só me recordo de “Os Subterrâneos”. Todos os demais têm uma forte pegada andarilha. Um dos charmes de “On The Road”, a obra-prima kerouaquiana, está justamente na liberdade de seus protagonistas de caírem na estrada (daí o título do romance). Queiramos ou não, quando o assunto é road story, Jack Kerouac influenciou direta ou indiretamente todos os autores que vieram depois.
6) Romances com conflitos ocultos ou inexistentes (sempre de natureza psicológica/emocional)
Uma das principais críticas que os leitores contemporâneos fazem em relação à literatura de Jack Kerouac é quanto a velocidade de suas tramas. A sensação, em muitos livros, é que nada acontece de fato e que a narrativa se arrasta interminavelmente em cenas banais do cotidiano do narrador-protagonista. Realmente, em muitas obras do autor isso acontece. O problema é que os conflitos de vários títulos de Kerouac não são tão evidentes assim, o que embola um pouco a leitura.
Normalmente de cunho psicológico, os dramas das personagens principais exigem uma empatia por parte do leitor (algo que foi mais forte na época dos lançamentos dos livros do que agora). Quando descobrimos os verdadeiros motivos das dores, das dúvidas, das inquietações e dos medos dos protagonistas kerouaquianos, conseguimos mergulhar com mais intensidade e mais disposição nestas histórias. A partir daí, não nos importamos tanto com a paralisia das ações narrativas.
7) Conflitos variados apesar do mesmo contexto narrativo
De certa forma, não é errado pensarmos que os conflitos dos livros de Kerouac são sempre os mesmos, mas com roupagens levemente diferentes ou mesmo com pontos de vista ligeiramente distintos. As buscas por afirmação (na literatura), pela independência (profissional e pessoal), pela liberdade (existencial), pela vontade de aproveitar a juventude (carpe diem) e por um sentido para a vida (que passasse longe da vidinha comum, do consumismo, da carreira convencional e do modelo típico de família) são os motes centrais dos romances e das novelas do autor norte-americano. É sobre esses pontos que os livros de Kerouac tratam. O que não muda nunca é o contexto narrativo: a ambientação beat. Todas as tramas são construídas a partir dos aspectos da contracultura, um baluarte dos jovens da metade do século XX. É impossível compreender a força da ficção de Jack Kerouac sem entender antes a relevância do aspecto cultural e comportamental de suas personagens.
8) Popularização do fluxo de consciência
Inspirado em Marcel Proust e James Joyce, Jack Kerouac popularizou o fluxo de consciência. Na verdade, ele não inventou este tipo de texto no qual o narrador expõe livremente seus pensamentos, mas foi quem mais o praticou no século XX. Com exceção de “Cidade Pequena, Cidade Grande”, todos os seus títulos ficcionais foram construídos em cima do fluxo de consciência. Parte do charme da literatura do norte-americano passa pela ousadia de praticar até as últimas consequências deste expediente narrativo.
Curiosamente, o fluxo de consciência se encaixou perfeitamente na proposta literária do escritor beat: de uma narrativa não linear, com frequentes rupturas textuais e sintáticas e com a prática da livre pontuação. Se pensarmos bem, a técnica da Escrita Automática nada mais é do que o processo de produção literária que dá vasão aos pensamentos do autor/narrador (pressuposto básico do fluxo de consciência).
9) Grande liberdade estética
A grande liberdade estética foi uma das grandes ousadias dos textos ficcionais de Jack Kerouac. O autor produziu narrativas ancoradas em frases longuíssimas, pontuação caótica e certo lirismo (prosa poética). Suas criações literárias possuem normalmente intensa sonoridade/musicalidade, muitas aliterações, oralidade acentuada e gírias em grande escala. O escritor beat buscava o encontro mais natural possível da linguagem popular e, ao mesmo tempo, a mistura simbiótica da prosa com a poesia.
Evidentemente, alguns destes elementos narrativos só são captados através da leitura em inglês (dos textos originais do autor). Kerouac é o tipo de escritor que provoca pesadelos na maioria dos tradutores (algo que os gringos devem sentir quando mexem, por exemplo, com os textos de João Guimarães Rosa).
10) Prática da Escrita Automática
A Escrita Automática é um dos vários pontos polêmicos da literatura de Jack Kerouac. O escritor sempre pregou que produzia suas obras em poucos dias. Basicamente, ele ia para um lugar isolado e se fechava ali tendo como única companhia a máquina de escrever. Para escrever compulsivamente (virando as noites acordado), ele tomava muito café e bebidas alcoólicas e fazia uso intenso de drogas pesadas. Em vários momentos, colocava música alta para tocar (era fã de Jazz). Dessa maneira, o texto brotava de sua mente automaticamente (daí o nome desta técnica). A partir daí, seu trabalho era apenas colocar (quase que mecanicamente) aqueles pensamentos no papel.
Graças a esta lenda, há quem acredite até hoje que o uso de substâncias alucinógenas ajude no processo literário (o que já foi provado ser uma grande balela). Jack Kerouac não se tornou famoso porque era um drogado. Na verdade, aconteceu exatamente o contrário. Os vícios acabaram podando seu talento artístico. Isso fica evidente quando analisamos os livros finais de sua carreira – de uma qualidade absurdamente inferior. Ou seja, Jack Kerouac não foi Jack Kerouac porque se drogava. Ele foi Jack Kerouac apesar das drogas.
Outro mito curioso que vários escritores têm é que a produção literária é algo automático (que sai facilmente). As histórias deixadas por Kerouac ajudam a propagar esta teoria, que não passa de outra falácia. São pouquíssimos os casos de livros de qualidade produzidos rapidamente e sem qualquer revisão/reformulação. “Porém, Kerouac conseguiu fazer isso, certo?!”, podem alegar alguns literatos. A resposta é: sim e não. “On The Road – Pé na Estrada” foi escrito, segundo o autor, em poucos dias. Contudo, ninguém se lembra que o coitado do Malcolm Cowley, editor da Viking Press, precisou passar meses mexendo e remexendo no texto original de Kerouac para torná-lo minimamente aceitável (o texto bruto conforme entregue pelo autor e disponível em algumas edições especiais é ilegível). Em outras palavras, houve muito trabalho posterior: de escrita automática, “On The Road” não tem nada.
Quando ficou famoso, Jack Kerouac impôs as editoras que seus novos textos ficassem próximos aos originais. Com isso, a qualidade das narrativas ficcionais decaiu sensivelmente. Quanto menos intervenção do editor, mais fraquinhos ficaram os livros do autor. Nota-se a falta de um cuidado maior com o texto e com a narrativa em vários dos livros mais populares de Kerouac. Não há uma obra impecável do início ao fim (nem “On The Road” consegue fugir desta sina). Normalmente, os romances e as novelas do norte-americano têm muitos pontos altos e baixos. Um trabalho mais acurado e menos apressado evidentemente ajudaria a resolver muitos dos problemas dessas narrativas.
11) Os elementos da contracultura estão no contexto narrativo ou no cerne das tramas
Um dos grandes charmes (se não o principal) dos romances e das novelas de Jack Kerouac está na apresentação dos elementos da contracultura, movimento que nascia nos Estados Unidos no final da década de 1940 e que logo explodiria para todo o país e para o exterior. As personagens da literatura kerouaquiana escancaram os valores almejados por muitos jovens nos anos de 1950 a 1970: individualismo exacerbado; consumo desenfreado de drogas e bebidas alcoólicas; busca pelo máximo de experiências hedonistas; sexo livre; desapego material; oposição ao consumismo e à família tradicional; busca pela liberdade existencial; fuga da rotina quadradona levada pela geração anterior; paixão por longas viagens (viver na estrada se torna um estilo de vida); procura por um maior grau de espiritualidade (olhar mais atento para as crenças orientais); e criação de comunidades igualitárias.
Não é errado pensar que grande parte da mística da ficção de Jack Kerouac passa pelos valores culturais que o autor propagava em suas histórias. Estandarte de uma época, Kerouac se tornou ícone da contracultura (na literatura) de uma geração, ao lado de James Dean (no cinema) e Elvis Presley (na música). Mais importante do que eles fizeram é o que eles representaram para seus contemporâneos. Desta maneira, é um pouco estranho olhar para as narrativas do autor beat com o olhar atual (sem a devida contextualização histórica).
12) Coragem para primeiro escrever e só depois ver se conseguia publicar suas histórias
Gostemos ou não de Jack Kerouac e de sua literatura, uma coisa é inegável: trata-se de um autor corajoso e extremamente determinado. Vale a pena destacar que ele produziu quase todo o seu portfólio ficcional antes de ter a certeza de que suas obras seriam publicadas.
Olhando do ponto de vista moderno e prático, essa atitude beira a loucura. Juro que fico me perguntando: e se ele não tivesse conseguido uma editora nem tivesse feito sucesso, hein? Teria desperdiçado vários anos de sua vida para escrever algo que iria para o lixo. Curiosamente, esse medo parece que nunca impossibilitou que o escritor beat continuasse produzindo (invejável essa força de vontade). A crença obstinada no sucesso e de que um dia seria publicado é algo que os novos escritores precisam se inspirar quando leem Kerouac (e não nos métodos da Escrita Automática!!!)
13) Postura machista e muitas vezes desrespeitosa/preconceituosa.
Os livros trazem consigo os valores de sua época. E em muitos casos, conseguimos absorver também, através das leituras, os ideais e as crenças particulares dos seus autores. No caso específico de Jack Kerouac, como suas tramas são semi-autobiográficas e seus protagonistas foram inspirados no próprio autor beat, esse processo se torna até mesmo mais intenso. Contudo, o que descobrimos ao fazer as inferências quanto à psicologia do artista é assustador e nada positivo para o norte-americano.
As polêmicas envolvendo as personagens principais de Kerouac se devem aos vários preconceitos que elas sentem e demonstram durante as narrativas. Os protagonistas do autor são figuras normalmente machistas, misóginas, homofobias e racistas. Com certo grau de psicopatia, depressão e loucura, esses homens normalmente abusam psicológica e fisicamente de suas companheiras. Assim, seus relacionamentos são abusivos e violentos. É preciso estômago forte para encarar este tipo de narrador-protagonista (muitas vezes, mais próximos aos anti-heróis do que dos heróis literários convencionais).
14) Intertextualidade literária e musical
Ler qualquer livro de Jack Kerouac é encarar uma intensa intertextualidade literária e musical. Fã inveterado dessas manifestações artísticas, o escritor beat não se cansava de fazer citações diretas ou indiretas aos autores, às obras, aos compositores, aos intérpretes e às canções de sua preferência. O leitor precisa ficar atento para encontrar essas referências que inundam os textos ficcionais do autor.
Para terminarmos o Desafio Literário de abril, segue, abaixo, a relação com os dezoito livros ficcionais de Jack Kerouac. Nesta listagem, temos catorze romances e quatro novelas. É legal mencionar que, além da prosa ficcional, o autor norte-americano também deixou coletâneas poéticas, registros autobiográficos, ensaios, anotações e cartas.
- 1º romance: “Cidade Pequena, Cidade Grande”
Publicação: 1950
Escrito: 1947 a 1949
Período retratado: 1935 a 1946
- 2º romance: “On The Road - Pé na Estrada”
Publicação: 1951
Escrito: final da década de 1940 ao início da década de 1950
Período retratado: 1947 a 1951
- 3º romance: “Os Subterrâneos”
Publicação: 1958
Escrito: 1955
Período retratado: 1953 a 1954
- 4º romance: “Os Vagabundos Iluminados”
Publicação: 1958
Escrito: 1957
Período retratado: 1955 a 1956
- 5º romance: “Doutor Sax”
Publicação: 1959
Escrito: 1952
Período retratado: 1935 a 1936 e 1948
Enredo: Pesadelo que o autor teve já adulto sobre sua infância em Lowell Massachusetts.
- 6º romance: “Maggie Cassidy”
Publicação: 1959
Escrito: 1953
Período retratado: 1938 a 1939
Relato: Namoro do autor, quando adolescente, com Mary Carney, quando ambos moravam em Lowell Massachusetts.
- 1ª novela: “Tristessa”
Publicação: 1960
Escrito: Indefinido
Período retratado: 1955
Relato: Baseado no relacionamento amoroso que o autor teve com uma prostituta mexicana, Esperanza, na época em que ele viveu na Cidade do México.
- 7º Romance: “Big Sur”
Publicação: 1962
Escrito: 1961
Período retratado: 1960
Relato: Reflexões do autor sobre sua vida na estrada e suas viagens.
- 8º Romance: “Visões de Gerard”
Publicação: 1963
Escrito: 1956
Período retratado: 1926-1927
Relato: Descrição da primeira infância do autor e da grave doença do irmão mais velho.
- 9º Romance: “Anjos da Desolação”
Publicação: 1965
Escrito: 1957
Período retratado: 1956
Relato: Narração dos dois meses em que o autor trabalhou em Desolation Peak como vigilante florestal.
- 2º Novela: “Satori em Paris”
Publicação: 1966
Escrito: Primeira metade da década de 1960
Período retratado: Início da década de 1960
Relato: Descrição da viagem à Europa em que o autor pesquisa sua genealogia.
- 10º Romance: “Vanity of Duluoz”
Publicação: 1968
Escrito: 1967
Período retratado: 1935-1946
Relato: Narração sobre a formação educacional do autor no ensino médio, na faculdade e na marinha mercante.
- 3º Novela: “Pic”
Publicação: 1971
Escrito: Primeira metade da década de 1950
Período retratado: Final da década de 1930 e início da década de 1940
Relato: Viagem para Nova York ao lado do irmão.
- 11º Romance: Visões de Cody
Publicação: 1972
Escrito: 1951-1952
Período retratado: 1951
Relato: Baseado na juventude do autor ao lado do amigo Neal Cassady
- 4º Novela: “Orpheus Emerged”
Publicação: 2002
Escrito: 1945
Período retratado: Década de 1940
Relato: Época em que o autor fazia faculdade em Nova York e jogava futebol americano universitário.
- 12º Romance: “E os Hipopótamos foram Cozidos em seus Tanques” (juntamente com William S. Burroughs)
Publicação: 2008
Escrito: 1945
Período retratado: 1944
Relato: Narrativa baseada em um crime ocorrido em Nova York.
- 13º Romance: “O Mar é Meu Irmão e Outro Escritos”
Publicação: 2011
Escrito: 1942
Período retratado: Início da década de 1940
Relato: Descrição da experiência do autor na Marinha Mercante dos Estados Unidos.
- 14º Romance (incompleto): “A Vida Assombrada & Outros Escritos”
Publicação: 2014
Escrito: Segunda metade da década de 1940
Período retratado: 1944
Relato: Dilemas do autor na época em que fazia faculdade em Nova York.
Espero que você tenha curtido a análise literária deste mês. Ler Jack Kerouac é encarar polêmicas intermináveis, além de narrativas tensas e caudalosas. Uma vez estudado um nome clássico da literatura norte-americana em abril, o Bonas Histórias irá investigar no próximo mês uma escritora um pouco esquecida da literatura brasileira: Maria José Dupré. Ela é autora de romances clássicos, como “Éramos Seis” (Ática) e “Gina” (Ática), e alguns best-sellers da literatura infantojuvenil nacional, como “A Ilha Perdida” (Ática) e “A Mina de Ouro” (Ática). Porém, isso é assunto para maio. Até o próximo Desafio Literário, pessoal!
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