Se você perguntasse há quarenta anos o que um português achava da literatura de José Saramago, as respostas mais prováveis que você receberia seriam: “De quem?” ou “Não conheço esse autor”. Por incrível que possa parecer hoje em dia, aos 58 anos de idade, Saramago era um escritor desconhecido por seus conterrâneos (o que dirá, então, pelos leitores estrangeiros?!). Seus dois primeiros romances, “Terra do Pecado” (Companhia das Letras), de 1947, e “Manual da Pintura e Caligrafia” (Companhia das Letras), de 1977, não obtiveram grande repercussão, passando despercebidos pelo público leitor e pela crítica literária portuguesa. O mesmo episódio já tinha acontecido com suas coletâneas de contos, de crônicas e de poesias. Até então, Saramago havia se sustentado com os trabalhos de serralheiro, desenhista, tradutor, funcionário público e jornalista. Ganhar a vida exclusivamente como escritor não passava de um sonho aparentemente impossível.
A trajetória literária de José Saramago mudou completamente com a publicação de "Levantado do Chão" (Companhia das Letras), em 1980. Este livro, o terceiro romance do autor, representou seu primeiro grande sucesso editorial. A obra conquistou, no mesmo ano do seu lançamento, o Prêmio Cidade de Lisboa como o melhor romance. Além disso, “Levantado do Chão” marcou a introdução do estilo narrativo que caracterizaria seu autor para sempre como um dos mais originais prosadores da língua portuguesa. Assim, a partir desta publicação, José Saramago se tornou conhecido e valorizado em seu país natal. Era a virada de uma carreira surpreendente (e, por que não, improvável) que culminaria 18 anos mais tarde com o recebimento do Prêmio Nobel de Literatura.
Curioso para conhecer este livro, li nesta semana a obra que transformou o desconhecido José no famoso Saramago. Vale recordar que no ano passado o escritor português foi um dos escolhidos para integrar os estudos do Desafio Literário. Naquela oportunidade, analisei seis de seus principais romances: "Memorial do Convento" (Companhia das Letras), "O Ano da Morte de Ricardo Reis" (Companhia das Letras), “A Jangada de Pedra" (Companhia de Bolso), "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" (Companhia das Letras), "Ensaio sobre a Cegueira" (Companhia das Letras) e "Caim" (Companhia das Letras). Antes disso, já havia comentado no Bonas Histórias “O Conto da Ilha Desconhecida” (Companhia das Letras). Por que, então, não incluí “Levantado do Chão” nesta lista? Eu até desejava fazer isso, mas o Desafio Literário se restringe à análise de seis obras de cada um dos escritores selecionados. Assim, no final das contas, esta publicação acabou preterida. Para corrigir esse erro imperdoável da minha parte, volto agora ao Bonas Histórias para analisar o livro de José Saramago que fiquei devendo. O post de hoje é todo ele dedicado ao primeiro sucesso do autor português.
“Levantado do Chão” é um romance ambientado no Alentejo, região agrícola do centro-sul de Portugal. Este livro foi escrito quando Saramago morava na vila de Lavre com sua segunda esposa, a também escritora Isabela da Nóbrega. A escolha pela pacata localidade se deu depois da demissão, em 1977, de José Saramago do Diário de Notícias. A perda do emprego de jornalista motivou-o a tomar uma decisão radical: largar de vez o jornalismo e se tornar romancista. E para escrever, não havia lugar melhor do que o Alentejo, pensava José Saramago. Enquanto o dinheiro oriundo da venda dos seus livros não chegasse, ele iria ganhando a vida com os serviços de traduções.
Depois de produzir “Manual da Pintura e Caligrafia”, Saramago leu “Uma Família do Alentejo”, romance de João Domingos Serra. Ele ficou tão comovido com o drama dos camponeses pobres daquela região do seu país que decidiu se inspirar na obra de Domingos Serra. Nascia, dessa forma, a ideia para o seu novo romance, “Levantado do Chão”. Aproveitando-se que estava morando em Lavre, onde podia conhecer de perto a realidade e a cultura alentejana, José Saramago produziu uma trama histórica de uma família humilde e fictícia do povoado onde estava residindo.
O enredo de “Levantado do Chão” acompanha a saga da família Mau-Tempo por boa parte do século XX. A história inicia-se em 1904 com Domingos Mau-Tempo e sua esposa Sara da Conceição se mudando de Monte Lavre para São Cristóvão. Aqueles são tempos difíceis e o casal viaja em busca de melhores perspectivas e de trabalho. Eles levam consigo o filho recém-nascido, João, um menino de olhos azuis. A trama do livro prossegue até o ano de 1974, quando acontece a Revolução dos Cravos. Nesse momento, João Mau-Tempo já faleceu, assim como seus pais, e a narrativa segue os passos de António Mau-Tempo, Gracinda Mau-Tempo Espada, filhos de João com Faustina, e Maria Adelaide Espada, neta de João e Faustina e filha de Gracinda e Manuel Espada.
Ao longo de sete décadas, assistimos nas páginas de “Levantado do Chão” ao drama dessa família de camponeses pobres do Alentejo. As quatro gerações dos Mau-Tempo lutam contra a dominação e a exploração dos poderosos, representados pela tríade Latifúndio-Igreja-Estado. Esse trio formado por proprietários de terras, padres e governantes é o responsável por se aproveitar da massa de homens e de mulheres simples e mal instruídos para enriquecer. Com isso, intensificam-se a desigualdade social e as injustiças e cria-se um cenário de grande violência.
Por falar em cenário, a saga dos Mau-Tempo (nome autoexplicativo para o que acontecerá com eles ao longo da obra de Saramago) se passa essencialmente no povoado de Monte Lavre. Domingos Mau-Tempo e sua esposa Sara da Conceição até iniciam o romance saindo de lá. Contudo, com a separação do casal (Domingos é um bêbado irresponsável que bate na mulher e não gosta de pegar no batente), Sara da Conceição retorna para junto de sua família em Monte Lavre. É ali que João Mau-Tempo, o primogênito, e os demais filhos de Domingos crescerão. E é também ali que João e sua esposa criarão seus três filhos (além de António e Gracinda, o casal terá Amélia, que permanecerá o tempo inteiro em segundo plano na história).
“Levantado do Chão” possui aproximadamente 400 páginas. É um livro volumoso, admito. Precisei de três dias, ou o final de semana inteiro, para concluí-lo. Iniciei a leitura na sexta-feira à tarde e cheguei à última página no domingo à noite (com óbvias paradas no meio do caminho).
São dois os aspectos que mais chamam a atenção do leitor neste romance: a forte crítica social feita por José Saramago e o estabelecimento do estilo narrativo que marcaria a literatura do autor. Em relação ao primeiro ponto, temos aqui um Saramago engajado socialmente e indiscutivelmente parcial. Ele apresenta a história sob o ponto de vista dos habitantes mais pobres do Alentejo, os heróis do livro. A vilania da trama cai no colo dos latifundiários. A Igreja Católica e o governo português também são retratados de maneira pejorativa, aliados desde sempre dos grandes proprietários de terras. O padecimento dos camponeses se dá pela exploração criminosa em que são vítimas. Latifundiários, religiosos e governantes parecem pouco preocupados com o bem-estar e com a qualidade de vida dos mais humildes, tratando-os como meros animais de trabalho e de obtenção de recursos. Isso fica evidente na passagem a seguir:
“Estes homens e estas mulheres nasceram para trabalhar, são gado inteiro ou gado rachado, saem ou tiram-nos das barrigas das mães, põem-nos a crescer de qualquer maneira, tanto faz, precioso é que venham ter força e destreza de mãos, mesmo que para um gesto só, que importância tem se em poucos anos ficarem pesados e hirtos, são cepos ambulantes que quando chegam ao trabalho a si próprios se sacodem e da rigidez do corpo fazem sair dois braços e duas pernas que vão e vêm, por aqui se vê a que ponto chegaram as bondades e a competência do Criador, obrando tão perfeitos instrumentos de cava e ceifa, de monda e serventia geral.
Tendo nascido para trabalhar, seria uma contradição abusarem do descanso. A melhor máquina é sempre a mais capaz de trabalho contínuo, lubrificada que baste para não emperrar, alimentada sem excesso, e se possível no limite econômico da simples manutenção, mas sobretudo de substituição fácil, se avariada está, velha outra, os depósitos desta sucata chamada cemitérios, ou então senta-se à máquina nos portais, toda ela ferrujosa e gemente, a ver passar coisa nenhuma, olhando as mãos tristíssimas, quem me viu e quem me vê. No geral do latifúndio, os homens e as mulheres têm seu tempo regateado de vida, espanta-se a gente de como alguns são velhos, e muito mais quando, passando, encontramos um que à vista é ancião e ouvimos dizer que tem quarenta anos, ou esta mulher murcha e com a face encorreada, ainda não fez trinta, afinal viver no campo não dá vida acrescentada, são invenções da cidade, é como aquele regradíssimo ditado, Deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e faz crescer, tinha graça vê-los aqui com a mão no cabo da enxada e os olhos no horizonte à espera do sol ou derreados das cruzes ansiando por um anoitecer que nunca mais chega, o sol é um desgraçado, cheio de pressa de sair e com tão pouca de se apagar. Como os homens”.
“Levantado do Chão” é uma obra singular de José Saramago. Nunca o escritor foi tão politizado e engajado socialmente como neste romance. Ele critica duramente as mazelas sociais de Portugal, escancarando as engrenagens político-econômicas que perpetuam a pobreza de boa parte de seus conterrâneos. Portanto, este livro se parece muito com as obras de Manuel da Fonseca, que não se cansou de retratar as injustiças sociais do Alentejo em seus trabalhos literários. “Aldeia Nova” (Caminho), coletânea de contos de Fonseca, é um bom exemplo dessa evidência. Para nós brasileiros, talvez a comparação mais pertinente seja com Jorge Amado (principalmente em sua primeira fase) ou com Graciliano Ramos. Assim como os autores nordestinos descreveram com brilhantismo os dramas das pessoas mais humildes de suas regiões, Saramago fez o mesmo com os habitantes do Alentejo.
O segundo elemento marcante de “Levantado do Chão” é o estilo narrativo empregado por José Saramago. Pela primeira vez, o escritor apresentava aos leitores as características que o definiriam mais tarde como um dos mais originais prosadores do século XX e que seriam replicadas em todas as suas obras a partir de então. É só comparar a estrutura textual deste romance com as de "Memorial do Convento", "O Ano da Morte de Ricardo Reis", “A Jangada de Pedra", "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", "Ensaio sobre a Cegueira", “O Conto da Ilha Desconhecida” e "Caim" para ver as semelhanças. Estão aí: o uso das vírgulas em substituição aos pontos finais, a ausência de pontos de interrogação e de exclamação, as frases gigantescas, os parágrafos imensos, os diálogos unidos à narrativa sem o uso do travessão, o texto muito descritivo, o humor ácido, a dupla linha narrativa (microambiente e macroambiente) e o narrador é uma personagem observadora mesmo sendo onisciente e onipresente (a impressão na maior parte do tempo é que a narração é em terceira pessoa, mas é na verdade em primeira). Ou seja, temos já estabelecidas em “Levantado do Chão” todas as marcas estilísticas da literatura saramaguiana. Por isso, esta é uma obra tão fundamental para a carreira do escritor português. Não é errado dizer que foi produzindo este livro que o autor encontrou sua voz literária e as particularidades do seu texto literário.
Outras características importantes deste romance são: as intertextualidades históricas (acompanhamos os desdobramentos da proclamação da República portuguesa, da Primeira Guerra Mundial, da tomada ao poder de Salazar, da Segunda Guerra Mundial, do fim do Período Colonial na África e da Revolução dos Cravos) e bíblicas (tanto do Velho quanto do Novo Testamento); a dupla face da narração microambiental (além de descrever o que se passa com a família Mau-Tempo, o leitor também acompanha o que ocorre de principal na vida de várias figuras de destaque de Monte Lavre e da região); o aspecto de crônica social do romance (com várias histórias curtas sobre a vida e a realidade do Alentejo); e o tom de saga da trama (são quatro as gerações de uma família retratadas ao longo dos capítulos do livro).
O final de “Levantado do Chão” é catártico. Seu desfecho possui elementos fantásticos (sobrenaturais) e uma mensagem otimista. Nesse sentido, não é coincidência que a jovem Maria Adelaide, a quarta geração de alentejanos do século XX e a primeira a viver depois da Revolução dos Cravos, seja uma Espada (alguém com condições de lutar por uma vida melhor) e não uma Mau-Tempo (alguém fadada à desesperança).
A ambientação do romance é marcada pela pobreza extrema, pela violência, pela desigualdade, pela injustiça e pelo desespero dos mais necessitados. O conflito aqui é entre ricos (que desejam mais poder e mais riqueza) e pobres (que anseiam por condições mínimas de dignidade e sobrevivência). Veja o trecho a seguir:
“E ainda se fossem só as guerras. Um homem habitua-se a tudo, e entre uma e outra dá para fazer uns filhos e os entregar ao latifúndio, sem vir lançada ou escopeta cortar o fio das promessas, que talvez o rapaz tenha a sorte e chegue a capataz ou feitor ou criado de confiança, ou prefira ir viver nas cidades, que é um morrer mais limpo. O pior são as pestes e as fomes, ano sim, ano talvez, que vêm dar em uma derrocada de povo, ficam os campos vazios de gente, as aldeias fechadas, léguas sem ver vivalma, e de vez em quando bandos de miséria e farrapos, por caminhos que o diabo só às costas dos homens. Vão ficando pela rota perdida, é um itinerário de cadáveres, e quando a peste levanta e a fome se acomoda, contam-se os vivos até onde chega a aritmética e acham-se tão poucos”.
Apesar de ser um romance incrível, “Levantado do Chão” tem também seus problemas. O primeiro ponto negativo (e o principal deles) está em seu foco narrativo. Uma falha parecida, curiosamente, se repetiria em “Memorial do Convento”, o livro seguinte de Saramago. A história dos Mau-Tempo é contada por um narrador observador que é uma personagem oculta da trama. Na maioria das vezes, ele permanece escondido na narrativa, aparecendo de forma bem pontual em algumas passagens. Até aí beleza. Porém, uma dúvida surge: como é possível alguém acompanhar quatro gerações de uma família de forma tão próxima?! Esse indivíduo não envelhece e não morre nunca? É inverossímil alguém saber tantos detalhes, de tantas pessoas e por tantas décadas.
O mesmo problema pode ser aplicado ao padre Agamendes. Paradoxalmente, o religioso já era adulto no início do século XX, quando Domingos Mau-Tempo e Sara da Conceição se casaram em Monte Lavre e saíram em viagem pelo interior de Portugal. Contudo, no final do romance, que se passa em 1974, Agamendes ainda está vivinho da silva e, acredite, está cada vez mais ativo. Ele não envelhece nem morre?! Ao invés de ser um erro de ordem narrativa (como explicado no parágrafo acima sobre o narrador/foco narrativo, esse sim um equívoco do autor), a construção dessa personagem inverossímil tem lá suas justificativas. Para mim, Saramago usou da ironia e da sutiliza para criar a constituição do padre do romance. Afinal de contas, quem é a personagem que não morre nunca, jamais envelhece e está sempre a atrapalhar a vida dos homens? O Diabo, é claro! Talvez seja essa a verdadeira identidade de Agamendes (e a explicação para a sua eternidade).
O ritmo lento da narrativa também pode incomodar os leitores mais ansiosos. Para cada trecho da trama principal (saga dos Mau-Tempo), José Saramago acrescenta capítulos com olhares sobre o Alentejo e sobre a dinâmica social dessa região, além de apresentar a todo momento o drama de personagens novas e secundárias. Em contrapartida à lentidão do relato, somos brindados com um texto com forte carga poética e de engajamento social. Aí o livro se torna saboroso ao retratar a vida sofridas dos camponeses de Monte Lavre.
“Levantado do Chão” é uma leitura imperdível para quem deseja conhecer o momento de mudança da carreira de um dos principais escritores da língua portuguesa. Com a publicação deste romance, nascia para o universo literário o José Saramago que conhecemos hoje. A obra serviu de afirmação para o romancista, que, enfim, descobriu sua voz e seu estilo artístico. E esse episódio emblemático da literatura portuguesa aconteceu há exatos 40 anos. Portanto, não é errado pensarmos que não haveria "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", "Ensaio sobre a Cegueira" ou mesmo o recebimento do Nobel em 1998 se este livro não tivesse obtido tantos prêmios e a ótima recepção da crítica e do público.
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