Quem foi o maior músico da história do Brasil?! A resposta para essa difícil questão não varia muito. Há quem veja Tom Jobim, o principal nome da Bossa Nova, como a figura mais importante da nossa música. E há quem aponte Chico Buarque, referência da MPB, como a maior estrela musical brasileira de todos os tempos. Confesso que não tenho uma opinião consolidada sobre esse assunto. Ainda fico em cima do muro (e dele não saio!). Prefiro enxergar essa disputa como um empate técnico. No alto do Olimpo da música nacional, não existe apenas um Deus e sim uma dupla divina. Encaro dessa maneira para não tomar partido definitivo por um deles.
Agora imagine a união desses dois músicos de alto calibre. Parece impossível, né? Saiba, então, que isso aconteceu algumas vezes. Chico Buarque e Tom Jobim foram parceiros de algumas canções inesquecíveis. Uma das principais é “Eu Te Amo”. Lançada em 1980, esta música romântica expunha os dramas de um amante desesperado na hora do término da relação. Como seguir em frente após uma tórrida paixão, hein? Confira, a seguir, sua letra:
Eu Te Amo (1980) - Chico Buarque e Tom Jobim
Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir
Se ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que ainda posso ir
Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir
Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu
Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato ainda pisa no teu
Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios ainda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair
Não, acho que estás te fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir?
Assista, a seguir, à mais famosa execução desta canção. Em 1984, em um show transmitido pela extinta TV Manchete, Chico Buarque e Tom Jobim subiram juntos ao palco. Buarque dividiu a interpretação de “Eu Te Amo” com Telma Costa, cantora mineira que viveu seu auge artístico entre o final da década de 1970 e o início dos anos 1980. No piano, Tom Jobim reinou soberano. Veja:
“Eu Te Amo” foi composto especialmente para a trilha musical do filme homônimo de Arnaldo Jabor. O longa-metragem foi lançado em 1981 e teve como uma de suas grandes atrações a canção criada por Chico Buarque e Tom Jobim. O roteiro cinematográfico apresentava a união de um industrial falido e recém-separado com uma mulher traumatizada por relacionamentos abusivos do passado. Ambos queriam ficar juntos, mas temiam as consequências de mais uma paixão arrebatadora. O elenco do filme teve atores de primeiro nível do cenário nacional: Paulo César Peréio, Sônia Braga, Regina Casé, Vera Fischer e Tarcísio Meira.
Chico Buarque lançou a canção “Eu Te Amo” no álbum “Vida” (1980). Esse disco representou uma mudança importante em sua carreira. Depois de composições com forte carga política, nos quais as letras de protesto e de denúncias sociais predominaram durante a década de 1970, Buarque retornou ao lirismo da primeira fase de sua trajetória musical. Assim, os encantamentos amorosos, as desilusões afetivas, as crises existenciais do coração, as paixões inconsequentes e as particularidades das uniões conjugais voltaram ao primeiro plano de seus enredos musicais. E nada melhor do que chamar Tom Jobim para ajudar na composição das desventuras amorosas, né?
Além de “Eu Te Amo”, as faixas de “Vida” que escancaram essa retomada são “Bastidores”, “Deixe a Menina”, “Já Passou”, “Qualquer Canção”, “Fantasia” e “De Todas as Maneiras”. É verdade que neste álbum ainda havia resquícios da fase anterior. As incríveis “Morena de Angola”, “Bye Bye Brasil” (outra canção feita sob medida para a trilha sonora de um filme) e “Não Sonho Mais” sinalizam para uma pegada crítica e de cunho social. Por isso, o disco seguinte de Chico Buarque, “Almanaque”, de 1981, representa a consolidação da retomada lírica.
A diferença do lirismo de Chico Buarque da década de 1960 para o dos anos de 1980 está na acidez das letras deste segundo momento. Se no início da carreira o compositor carioca usava-se da inocência e da pureza dos relacionamentos amorosos como mote musical, depois ele passou a explorar a ironia, as contradições afetivas, as brigas conjugais e o erotismo mais acentuado para escancarar os traumas de paixões frustradas.
Nesse sentido, “Eu Te Amo” é um ótimo exemplo dessa marca estilística. Enquanto seu título indica algo (união amorosa), o restante da canção vai para o lado oposto (desunião amorosa). Os versos “Como, se nos amamos feito dois pagãos/Teus seios ainda estão nas minhas mãos/Me explica com que cara eu vou sair/Não, acho que estás te fazendo de tonta/Te dei meus olhos pra tomares conta/ Agora conta como hei de partir?” e “Se nós, nas travessuras das noites eternas/Já confundimos tanto as nossas pernas/Diz com que pernas eu devo seguir/Se entornaste a nossa sorte pelo chão/Se na bagunça do teu coração/Meu sangue errou de veia e se perdeu” são de um humor negro ímpar. Minha parte favorita desta letra é o seu início: “Ah, se já perdemos a noção da hora/Se juntos já jogamos tudo fora/Me conta agora como hei de partir”. Simplesmente incrível!
Se a letra de “Eu Te Amo” ficou à cargo de Chico Buarque, a melodia foi uma responsabilidade exclusiva de Tom Jobim. Nota-se, pelo piano e pelos arranjos da música, o estilo sereno, limpo e forte (passional) do mestre da Bossa Nova. Em 1980, Tom, que já entrava na fase final de sua carreira, também tinha lançado um novo disco. “Terra Brasilis” foi seu antepenúltimo álbum. Neste disco duplo, ele traz duas outras parcerias com Chico Buarque: “Olha Maria” e “Sabiá”.
Como é maravilhoso ouvir as criações dos dois maiores gênios musicais do Brasil. Agora dizer qual deles foi maior, me parece quase impossível. Neste Fla-Flu musical eu não entro não! Prefiro ouvir “Eu Te Amo”, que completa, em 2020, 40 anos de existência.
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