Darico Nobar: Boa noite, Brasil!
Plateia: Booooa nooooite!
Darico Nobar: Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, informo que o Talk Show Literário já está no ar. [A vinheta do programa entra na tela. Depois de dez segundos, a imagem volta ao palco]. Nosso convidado de hoje é uma personagem rodrigueana. Com vocês: Doutor Camarinha! [O entrevistado entra sob aplausos].
Doutor Camarinha: Obrigado. [Ao se sentar, desabotoa o segundo botão do paletó. Por ser gordo e ter as mãos pequenas, tem dificuldade]. Boa noite a todos.
Darico Nobar: Tudo bem, Doutor Camarinha?
Doutor Camarinha: Não tão bem como Vossa Excelência. Mais ou menos.
Darico Nobar: Gostaria de iniciar nossa conversa perguntando se o senhor não se arrepende de ter revelado ao Sr. Sabino o que viu em seu consultório na véspera do casamento de Glorinha.
Doutor Camarinha: Ora pipocas. Por que me arrependeria?
Darico Nobar: Porque a partir daí ocorreram sucessivas tragédias familiares...
Doutor Camarinha: Vamos pôr os pingos nos is. A pouca vergonha dos Uchoa Maranhão passa longe de mim. Onde já se viu tanto assédio, incesto, mulher com mulher, homem com homem, feminicídio, voyeurismo, suruba, pedofilia, traição conjugal, prostituição, estupro, desfloramento antes do casamento, ménage, troca-troca, onanismo e sadomasoquismo em uma só família. Hem? A maioria dos casos é anterior às minhas revelações. Ou isso ainda é perversão pornográfica ou sou mesmo um démodé.
Darico Nobar: Portanto, o senhor não tem qualquer responsabilidade sobre os acontecimentos envolvendo o Sr. Sabino e sua filha?
Doutor Camarinha: Não faço questão de dizer coisas desagradáveis, mas eu precisava alertar meu amigo para a sem-vergonhice do seu futuro genro.
Darico Nobar: Você está se referindo ao beijo na boca de Teófilo, o noivo de Glorinha, em José Honório, seu assistente?
Doutor Camarinha: Os canalhas estavam de afetação embaixo do meu teto. O Zé Honório era como se fosse meu filho. Mas agora acabou, ele morreu para mim.
Darico Nobar: Pelo que entendi, o senhor considera uma traição o fato de seu funcionário ser gay [cruza os braços]. É isso?!
Doutor Camarinha: Escuta aqui, Darico. O negócio é o seguinte: a pederastia está comendo solta e eu não posso concordar [tira o lenço e enxuga as mãos; também limpa o rosto e a nuca]. Em Copacabana, os pederastas pingam do teto, escorrem das paredes. Não há o mínimo de pudor. Até nas favelas está virando moda. Sim, senhor, nas favelas! É na classe baixa, média e alta. Está tudo infiltrado, não escapa rato.
Darico Nobar: O doutor sabe que hoje em dia homofobia é crime?
Doutor Camarinha: Isso aqui o que é? [Ao mexer a xícara que estava junto à mesinha ao seu lado descobre sozinho a resposta]. Água? Água não! Não tem uísque? Quero uísque. [O apresentador faz um sinal para alguém da produção trazer o que foi solicitado ao convidado]. O que estava falando mesmo? Ah, sim. Ninguém nesse país enxerga o óbvio. Os pederastas estão destruindo o Brasil. A fome mata, a corrupção empobrece e a violência desestabiliza a sociedade. Mas a pederastia é a nossa autodestruição. Ainda bem que não tenho esse problema lá em casa. Dou graças a Deus de meu filho ser macho pra burro! Por ele, ponho a mão no fogo.
Darico Nobar: Seu filho é casado?
Doutor Camarinha: Não [pigarreia]. O Carlos Eduardo morreu solteiro. Desastre de automóvel. Como dizem, enfiou os cornos dentro do poste. Isso faz anos. O rapaz não era mau. Às vezes brigávamos, mas quem nunca brigou com o filho? Hem? O importante é que era macho. Dia e noite, o telefone não parava em casa. Eram mulheres chamando. Solteiras, casadas e até meninas. Como se apaixonavam por ele! A Glorinha que o diga... Visito seu túmulo quase todo dia. Sabe, prefiro um filho morto e macho do que um filho vivo e pederasta. [Algumas vaias já podem ser ouvidas no auditório].
Darico Nobar: Meu Deus, quanto preconceito!
Doutor Camarinha: Conversa, conversa. É mil vezes melhor uma filha puta do que um filho puto!
Plateia: Uhhhhhhhhhh!
Doutor Camarinha: Tudo isso é sórdido demais! E falo mais: estamos mais preparados para a gravidez precoce da filha solteirona do que para a pederastia do filho.
Plateia: Uhhhhhhhhhhhhhhhhh! [As vaias aumentam de intensidade e se tornam ensurdecedoras].
Darico Nobar: Calma pessoal, por favor [gesticula com as palmas das mãos].
Alguém na plateia: Enrustido! [Todos riem do grito, menos o convidado que se mantém sério e indiferente às críticas].
Darico Nobar: Doutor Camarinha, vamos mudar um pouco o rumo da nossa conversa. Se não o programa de hoje não terminará bem... [A última frase foi dita baixinho]. Falemos da profissão de médico. O senhor acha correto um ginecologista revelar para os amigos os segredos do seu consultório.
Doutor Camarinha: Olha.... [Apanhou o copo e bebeu de uma vez só, com uma sede bruta; já que o uísque não chegou, foi de água mesmo]. Depende. Do que você está falando exatamente? [Limpa os lábios com o lenço].
Darico Nobar: De ética profissional.
Doutor Camarinha: Sou um médico de princípios. Não examino nenhuma cliente, não faço certos exames, sem a presença da enfermeira. Não gosto. Não acho certo.
Darico Nobar: E revelar os segredos das pacientes. Pode?
Doutor Camarinha: Consultório não é sacristia e o trabalho do ginecologista não está sob sigilo como a confissão ao monsenhor [tira do bolso o maço de cigarro; pega um para si e oferece outro para o apresentador]. Caporal Amarelinho. Destronca peito.
Darico Nobar: Obrigado [balança a mão negativamente].
Doutor Camarinha: Saiba decisão. Isso aqui é mata-rato. Vício indecente [procura algo mais no bolso]. Onde está a merda do isqueiro? Nunca acho. [O apresentador oferece prontamente uma caixa de fósforos. Assim que a pega, o entrevistado acende o cigarro]. Obrigado. Olha aqui [muda o tom de voz, demonstrando mais agressividade]. Também cumpri meu dever como amigo do Sabino [dá a primeira tragada]. Antes de ser médico de família, sou médico da família. Fui à imobiliária contar o que eu sabia. Mas ele é o pai. A decisão do que fazer com a bicha imunda do genro é dele.
Darico Nobar: Doutor Camarinha, o que o senhor acha do episódio da...
Doutor Camarinha: Só mais uma coisa [põe a mão no ombro do entrevistador e fala inflamado]. Eu não revelei segredo nenhum das minhas clientes. O cúmulo, o cúmulo. Só falei para meu amigo o que um futuro integrante da família dele estava fazendo com meu funcionário. O pai tem o direito de saber sobre a pederastia do genro. Do jeito que você fala parece que fiquei revelando o desfloramento prematuro de minhas clientes.
Darico Nobar: Entendi. Não precisa se exaltar. Por falar na família Uchoa Maranhão, o que o doutor pode dizer sobre o Sr. Sabino?
Doutor Camarinha: Sabino sempre foi um homem de bem.
Darico Nobar: E o que seria um homem de bem em sua opinião?
Doutor Camarinha: Como já dizia o saudoso Nelson Rodrigues, o homem de bem é o gângster da virtude.
Darico Nobar: Definição interessante. E a Glorinha? O que você pode falar sobre ela?
Doutor Camarinha: É a moça mais linda que já vi em toda a minha vida. Entre Glorinha e Ava Gardner, prefiro cem vezes Glorinha. Eu a queria como nora. [Olha para os dois lados de maneira impaciente].
Darico Nobar: O que foi?
Doutor Camarinha: Cadê o garçom? Não mandou trazer o uísque? O garçom sumiu. Quero minha bebida.
Darico Nobar: Um momento, doutor Camarinha. Sua esposa me pediu para não servir bebida alcoólica para o senhor durante a entrevista. E estou respeitando o pedido dela. Você sabe que não pode beber. Se bebe, dá vexame.
Doutor Camarinha: Cafajestada! Mulher nenhuma sabe guardar segredo [atira o cigarro quase inteiro para longe]. Conta tudo às amigas, às vizinhas, às criadas. Mulher não tem caráter. Onde já se viu falar sobre meus pileques para um jornalista. É óbvio total que na primeira oportunidade ele ia expor minha intimidade em cadeia nacional.
Darico Nobar: Não fale assim da sua esposa, doutor. É para o seu bem.
Doutor Camarinha: Ela faz isso de pirraça, pensa que não sei. A brasileira é a melhor mulher do mundo porque tem bunda. E pensar que me casei com uma que não tem.
Darico Nobar: O senhor parece ter a mania de ofender gratuitamente as pessoas. Por quê?
Doutor Camarinha: Darico, você quer dizer que eu sou um pulha. Hem? Espalha para todo mundo que eu sou um pulha. É isso o que você quer?
Darico Nobar: Não tinha pensado no termo pulha. Mas acho o senhor muito moralista. E, às vezes, bastante indelicado [por alguns segundos, os dois ficam em silêncio pensando a respeito]. Uma última pergunta para finalizarmos nossa entrevista. O casamento de Glorinha e Teófilo deu certo? Tenho uma curiosidade danada para saber.
Doutor Camarinha: E desde quando um casamento dá certo? Os matrimônios felizes são aqueles em que os noivos não chegam ao altar.
Darico Nobar: Pessoal, esse foi Doutor Camarinha, personagem clássica da nossa literatura [plateia aplaude timidamente]. Obrigado pela sua presença nesta noite.
Doutor Camarinha: Sou eu quem agradeço a lembrança. Chau.
Darico Nobar: Fãs do Talk Show Literário, voltaremos no mês que vem com mais uma entrevista ao vivo e exclusiva para vocês. Até lá e boa noite! [Vinheta de fechamento da atração entra na tela].
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O Talk Show Literário é o programa de televisão fictício que entrevista as mais famosas personagens da literatura. Assim como ocorreu nas três primeiras temporadas, neste quarto ano da atração, os convidados de Darico Nobar, personagem criada por Ricardo Bonacorci, são os protagonistas dos clássicos brasileiros. Para acompanhar as demais entrevistas, clique em Talk Show Literário. Este é um quadro exclusivo do Blog Bonas Histórias.
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