É verdade que o Carnaval combina mais com viagens, descanso, bloquinhos, azaração, pegação e desfiles de escolas de samba. Porém, esta época é também ótima para quem deseja pegar um cineminha. Entre um e outro evento tipicamente carnavalesco, os foliões podem, por que não, assistir aos filmes em cartaz nas telonas do nosso país. Em 2020, as boas opções se acumulam. Além dos títulos interessantes que entram agora no circuito comercial, como “De Quem é o Sutiã” (The Bra: 2018), “O Jovem Ahmed” (Le Jeune Ahmed: 2019) e “Uma Vida Oculta” (A Hidden Life: 2019), podemos ainda conferir quase todos os títulos que brilharam na última cerimônia da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles, como “1917” (2019), “Parasita” (Gisaengchung: 2019) e “Coringa” (Joker: 2019). É ou não é um programa melhor do que ver os desfiles das escolas de samba, hein?!
Pensando assim, fui, no último final de semana, ao Espaço Itaú de Cinema do Shopping Bourbon Pompéia para conferir “Jojo Rabbit” (2019), o longa-metragem vencedor da estatueta de melhor roteiro adaptado do Oscar deste ano. Esta comédia dramática concorreu em outras cinco categorias: melhor filme, melhor atriz coadjuvante (Scarlett Johansson), melhor figurino, melhor montagem e melhor direção de arte. Lançado no Brasil há três semanas e orçado em US$ 14 milhões, “Jojo Rabbit” foi dirigido pelo neozelandês Taika Waititi, de “Thor - Ragnarok” (2017), “Uma Fuga para a Liberdade” (Hunt For The Wilderpeople: 2016) e “O que Fazemos nas Sombras” (What We Do in the Shadows: 2014). Não é errado afirmar que este novo trabalho representa, até aqui, o ponto alto da carreira do neozelandês. O filme tem em seu elenco principal Roman Griffin Davis, Thomasin McKenzie e Scarlett Johansson, além da participação em cena do próprio Taika Waititi.
A grande ousadia de “Jojo Rabbit” é misturar o holocausto e o nazismo com um roteiro cômico. Brincar com temas tão delicados ou satirizar tragédias humanas é normalmente algo arriscadíssimo, algo que quase todos os cineastas evitam adentrar. Afinal, há uma linha tênue entre a graça e a grosseria. A última vez que um humor deste tipo foi bem-feito tinha sido com “A Vida é Bela” (La Vita e Bela: 1998), obra-prima do italiano Roberto Benigni que conquistou três estatuetas do Oscar (melhor filme, melhor trilha sonora de drama e melhor ator – Roberto Benigni). Ou seja, o risco tem duas facetas: pode exterminar reputações quando a receita desanda ou pode render bons prêmios quando os ingredientes aparentemente incompatíveis acabam se harmonizando com êxito. No caso do filme de Taika Waititi, podemos dizer que o cineasta neozelandês foi profundamente feliz na execução de sua difícil receita narrativa.
O enredo de “Jojo Rabbit” se passa na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Jojo Betzler (interpretado por Roman Griffin Davis) é um menino tímido, medroso e sonhador que mora com sua mãe, Rosie Betzler (Scarlett Johansson). O pai desapareceu há algum tempo. Os boatos dizem que o patriarca dos Betzler era um grande covarde e, por isso, fugiu para não precisar seguir para a frente de batalha. Apesar de ainda pequeno, Jojo é um nazista fanático. O garoto sonha em se tornar um soldado do Terceiro Reich para matar os inimigos e dizimar os judeus. Seu fascínio por Adolf Hitler é tamanho que o menino tem como amigo imaginário o próprio führer (Taika Waititi). O Hitler imaginário de Jojo é quem o incentiva a se tornar um grande nazista e a ingressar na Juventude Hitlerista.
Entretanto, as pretensões do protagonista vão por água abaixo depois de um final de semana lamentável. Ao lado de outras crianças, Jojo Betzler participou de um acampamento militar destinado a jovens nazistas - uma espécie de grupo escoteiro que ensina os princípios básicos da sobrevivência na floresta e do confronto no campo de batalha. Nessas atividades, a covardia e a inaptidão de Jojo para a guerra ficaram mais que evidentes, gerando piadas e zombarias por parte dos outros meninos. De tão medroso, ele foi apelidado de Rabbit (coelho). Tentando provar seu valor, Jojo Rabbit acabou se acidentando gravemente. Uma granada explodiu perto dele. Sequelado, o menino voltou para a casa, onde precisará passar por uma longa recuperação médica.
Como sua mãe está sempre fora de casa, Jojo fica muito tempo sozinho, o que aprofunda sua relação com o amigo imaginário. Um dia, sem querer, o garoto descobre uma menina judia escondida em um cômodo de sua casa. Elsa (Thomasin McKenzie) é uma adolescente que está fugindo da perseguição na Alemanha e foi ocultada ali por Rosie, a mãe de Jojo. O que o garoto deve fazer: denunciar a invasora ou aceitar sua presença ali? Se ele usar a razão e pender para o lado do fanatismo político, deverá relatar a presença da inimiga para as autoridades nazistas. Se ele usar a emoção e pender para o lado afetivo, deverá conviver com a jovem.
Considerei “Jojo Rabbit” um filme espetacular. Se você for assisti-lo pensando exclusivamente em sua parte cômica, poderá sair um pouco frustrado da sessão cinematográfica. Afinal, o filme é engraçadinho, mas não é uma produção que o leve a ficar com os olhos molhados de tanto rir. Seu maior mérito está no conflito dramático do protagonista mirim. É aí que o longa-metragem de Taika Waititi ganha em beleza, em força narrativa e em grandiosidade.
Quando digo que “Jojo Rabbit” não é um filme tão engraçado assim, não estou dizendo que não haja humor. Há sim bastante comicidade, com cenas que rendem boas gargalhadas. Só estou falando que não é nesse ponto que reside seus principais méritos. Na primeira parte das suas quase uma hora e cinquenta minutos de sessão, “Jojo Rabbit” apela mais para o humor pastelão, para a inocência pueril do seu personagem principal e para a caricatura. O filme de Taika Waititi lembra muito, assim, “Meu Pequeno Nicolau” (Le Petit Nicolas: 2010) e “As Férias do Pequeno Nicolau” (Les Vacances du Petit Nicolas: 2014). O ponto alto desta primeira parte está nas cenas do acampamento militar para os jovens nazistas. Hilário!
Na segunda parte do longa-metragem (iniciada após a descoberta da jovem judia na casa de Rosie e Jojo), o humor passa a ser mais sutil, inteligente e sensível, além de dar espaço para o crescimento substancial do teor dramático do enredo. Não à toa, é aqui que o filme se torna magnífico. É preciso delicadeza e astúcia para compreender o que está se passando na casa dos Betzler e, principalmente, para entender o drama de pequeno Jojo.
Ou seja, se no começo de “Jojo Rabbit” temos uma comédia dramática, no fim assistimos a um drama cômico. O conflito de Jojo Betzler é, no final das contas, de natureza sentimental-psicológica. Até onde a concepção ideológica e a projeção social de alguém pode sobrepor a concepção humana e a natureza íntima do indivíduo?! O longa-metragem de Waititi é, sob essa ótica, simplesmente maravilhoso.
Outra questão que merece ser elogiada neste filme é a forma sutil e extremamente delicada como algumas questões narrativas mais fortes e chocantes são apresentadas ao público. Ao invés de escancarar as tragédias de um jeito sensacionalista, a câmera de “Jojo Rabbit” adquire um tom inocente e infantil (compatível com a mentalidade do protagonista – um menino puro e sonhador). O ápice dessa forma indireta de filmar os acontecimentos cruéis é a cena do enforcamento na praça da cidade. Descobrimos a identidade das vítimas por detalhes de sua roupa. Incrível! Compreender o que Rosie Betzler faz tanto fora de casa também exige a montagem de um pequeno e simples quebra-cabeça narrativo. De certa forma, o expectador vivencia um pouco a experiência de uma criança. Na infância, muitas vezes, os pequenos e as pequenas acabam descobrindo sozinhos o que está se passando ao seu redor, pois ninguém quer explicar as partes difíceis e cruéis do mundo dos adultos.
Tão interessante quanto o criativo roteiro de Waititi é a maneira fantástica como o cineasta produziu seu filme. Tecnicamente, “Jojo Rabbit” é impecável. Sua trilha sonora é ótima, seu figurino e sua recriação histórica saltam aos olhos, a fotografia merece elogios, seu ritmo cinematográfico é excelente e a direção conseguiu imprimir características bem próprias a esta produção. A combinação desse conjunto de fatores impacta positivamente a experiência do expectador (e explica as várias indicações do longa-metragem ao Oscar de 2020, tanto nas categorias técnicas quanto na de melhor filme).
Se já não sobrassem elogios para Taika Waititi e para “Jojo Rabbit”, ainda temos uma atuação magistral do elenco principal. Scarlett Johansson rouba a cena em todos os momentos em que aparece na telona. Vivendo o melhor momento de sua carreira - as duas indicações ao último Oscar provam isso: como melhor atriz principal em “História de Um Casamento” (Marriage Story: 2019) e melhor atriz coadjuvantes em “Jojo Rabbit” -, ela confere charme, graça e uma profundidade psicológica absurda à sua personagem. Se Rosie parece inicialmente fútil, desleixada com o filho, indiferente ao paradeiro do marido e presa eternamente ao mundo da lua, o decorrer do filme mostrará uma nova e surpreendente faceta da mãe de Jojo. Assim, ela se assemelha um pouco com Guido, personagem mítico de Roberto Benigni.
E a atuação fenomenal de Scarlett Johansson não está isolada neste filme. Roman Griffin Davis e Thomasin McKenzie estão ótimos e conseguem, apesar da pouca idade, encantar a plateia. É a jovem dupla de atores a responsável por fazer a roda dramática do filme girar. E o Hitler de Taika Waititi está engraçadíssimo, por mais caricato que seja.
“Jojo Rabbit” é um filme ótimo e merece ser visto. Por mais que as salas de cinema tenham sido invadidas, nas últimas semanas, por uma overdose de títulos bélicos - “1917”, “Meu Nome é Sara” (My Name Is Sara: 2019) e “Uma Vida Oculta” -, ainda sim o longa-metragem de Waititi se destaca por sua originalidade e ousadia. Vale a pena embarcar nas aventuras imaginárias e nos dramas reais de Jojo Betzler.
Assista, a seguir, ao trailer de “Jojo Rabbit”:
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