Fernanda Torres surpreendeu o público e o mercado editorial ao lançar, em novembro de 2013, “Fim” (Companhia das Letras), seu primeiro romance. Afinal de contas, não é todo dia que assistimos a uma conceituada atriz da televisão, do cinema e do teatro se enveredar em uma nova carreira. E como escritora, Fernanda se mostrou tão talentosa quanto nas telas e no palco. Para se ter uma ideia do quão exitosa foi essa estreia na literatura, “Fim” foi finalista do Prêmio Jabuti de 2014, o mais importante do país. Além disso, a obra tornou-se um best-seller nacional, ficando, em 2014, no posto de oitavo livro ficcional mais comercializado no Brasil. A vendagem do romance já chegou à casa dos seis dígitos, uma marca para poucos autores brasileiros. Nada mal para quem iniciava na literatura ficcional próxima de completar 50 anos de idade, né?
Se alguém pensou que a estreia apoteótica de Fernanda Torres poderia ter sido sorte de estreante, a escritora carioca mostrou o quão sólido era seu novo trabalho com as duas publicações seguintes. “Sete Anos” (Companhia das Letras), coletânea de crônicas de 2014, e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores” (Companhia das Letras), romance de 2017, receberam muitos elogios da crítica especializada e agradaram em cheio os leitores. Para muita gente, Fernanda Torres é atualmente uma das mais originais vozes da literatura brasileira contemporânea. Principal prova do carisma e da receptividade dos livros de Fernanda foi suas apresentações na FLIP, Feira Literária Internacional de Paraty. A autora arrematou uma pequena multidão para vê-la e ouvi-la todas as vezes em que compareceu ao evento. Para conhecer um pouco desse trabalho da artista carioca, li nesta semana “Fim”. E admito, desde já, que fiquei encantado com a força de sua narrativa e com a beleza do seu texto.
O enredo deste romance se passa na cidade do Rio de Janeiro e acompanha o dia da morte de cinco amigos: Álvaro, Sílvio, Ribeiro, Neto e Ciro. Cada um deles faleceu em uma época, entre agosto de 1990 e abril de 2014, mas todos tinham em comum as desilusões amorosas. O grupo de amigos se conheceu na juventude e permaneceu junto, entre brigas e afastamentos, até o final. Enquanto narram o último dia de vida, as personagens fazem um balanço de suas existências.
Álvaro era morador de Copacabana. Impotente, melancólico, racista e egoísta, ele se separou da esposa, Irene, após ser traído por ela. Do quinteto de amigos, foi o que mais viveu (e o único que não gostava de sexo). Aos 85 anos de idade, foi atropelado na porta de casa após mais uma visita ao médico. Sílvio era o imoral da turma. Hedonista, gostava de drogas, bebidas e orgias. Abandonou a esposa e os filhos para viver na boemia e na putaria. Aos 75 anos, morreu de overdose quando pulava o Carnaval na Cinelândia. Sofria de Parkinson, mas não gostava de tomar os remédios que os médicos receitavam. Ribeiro era o esportista. Aos 80 anos, ainda frequentava diariamente a praia e jogava vôlei com os amigos. Fã de Viagra, gostava de tirar a virgindade das mocinhas. Amou Suzana, uma namorada gaúcha, até ela o trocar por Sílvio. Sofreu um infarto enquanto tomava banho em casa e se preparava para um encontro romântico. Há quem diga que sua morte foi culpa do Viagra que tomou algumas horas antes.
Neto era moreno e veio de uma família pobre. Conservador, tímido e honrado, cresceu na vida na base de muito estudo e de muito trabalho. Diferentemente dos amigos, se manteve fiel à esposa, Célia, sem jamais se separar dela. Célia odiava Álvaro, Sílvio, Ribeiro e Ciro, assim como era odiada pelo grupo por sua caretice. Neto viveu até os 62 anos, quando ficou abalado com o falecimento precoce de Célia, por quem nutria uma mistura de ódio e amor. Ciro, por sua vez, era o galã da turma. Bonitão, culto e carismático, ele mexia com o coração de todas as mulheres por onde passava. Advogado e morador de Copacabana, Ciro casou-se com Ruth, uma linda moça que conheceu em uma festa. Após dez anos juntos em um casamento que causava inveja a todos, Ciro entrou em uma crise existencial grave. Ele não queria mais permanecer fiel ao lado de Ruth. Assim, passou a traí-la com todo o Rio de Janeiro, deixando a esposa desesperada. Morreu após uma cirurgia para extração de um câncer no cérebro.
Enquanto acompanhamos o dia derradeiro dos cinco protagonistas, somos levados a vários momentos decisivos de suas vidas. Através da mescla de flashbacks com lembranças das personagens principais e as opiniões de terceiros, assistimos aos dramas conjugais, as incertezas quanto ao legado deixado, aos sonhos frustrados e os medos que perseguiam o quinteto de amigos durante toda a vida. Assim, a trama do livro aborda não apenas a finitude do grupo, mas também suas juventudes e a fase de maturidade. O romance de Fernanda Torres traz um retrato bem-humorado, ácido e corajoso de homens nascidos entre o final da década de 1920 e o comecinho dos anos de 1940, geração classificada pelos psicólogos e sociólogos como dos Veteranos ou Tradicionais.
“Fim” tem 208 páginas e está dividido em seis partes. As cinco primeiras são dedicadas a cada um dos protagonistas do romance. Por isso, são nomeadas, respectivamente, de “Álvaro”, “Sílvio”, “Ribeiro”, “Neto” e “Ciro”. A sexta e última parte, intitulada de “O Próximo”, apresenta o prólogo da obra, com uma visão rápida do que restou após a “partida” do grupo de amigos. Li este livro em duas noites nesta semana (comecei na segunda-feira e o concluí já na terça). Como a leitura é agradável, devorei suas páginas. Não devo ter gastado mais do que oito horas ao todo para percorrer seu texto de ponta a ponta.
O que mais gostei neste livro de estreia de Fernanda Torres? É difícil responder a esta pergunta. São vários os elementos encantadores de “Fim”, além de algumas boas surpresas que nos são reservadas. Para começo de conversa, adorei a construção das personagens masculinas do romance. Vale a pena ressaltar que normalmente não é fácil para um escritor escrever sobre pessoas do sexo oposto. Contudo, Fernanda foi sublime ao descrever não apenas um, mas cinco (CINCO!) protagonistas masculinos. Se isso não é um trabalho ficcional brilhante, não sei mais o que é. Os dramas, os discursos e os conflitos destes homens são bastante verossímeis. A impressão que se tem é que a autora carioca entrou realmente na cabeça desses indivíduos fictícios para extrair o que mais os incomodava. Incríveis e memoráveis as construções dessas personagens.
As figuras femininas também são muito bem descritas. Assim como ocorre com os homens, as mulheres de “Fim” são pintadas com tintas negativas. A sensação é que não há mocinhos nem mocinhas (heróis) nesta trama, apenas vilões. Todos são indivíduos egoístas, carentes emocionalmente, solitários e completamente perdidos no mundo (uma antítese às características típicas da geração Tradicional). Como consequência, o grande inimigo de todas as personagens (tanto as masculinas quanto as femininas) parece ser o casamento e o relacionamento monogâmico. A prolongada e enfadonha união conjugal é capaz de destruir até mesmo o amor genuíno entre os casais. Se não falei até agora que “Fim” possui uma narrativa com forte pegada corrosiva, fique aqui esse registro.
Para contrabalancear o tom pessimista da história, somos brindados com um texto divertido e leve, além de muito bem escrito. O humor de suas páginas oscila entre a ironia e o humor negro, ambos na medida certa. Há também várias passagens com forte carga poética, o que torna a experiência de leitura ainda mais incrível. “Fim” é aquele tipo de romance que possui uma prosa bem trabalhada, onde cada linha parece ter sido pensada e lapidada em nome da estética literária. Incrível o resultado deste livro.
Quanto ao seu conteúdo, a obra aborda com coragem o desbunde dos anos de 1960, quando os jovens da época se lançavam de cabeça à vadiagem e aos prazeres mundanos. A vida para os personagens de “Fim” era uma eterna festa regada com muita bebida, droga e sexo. Ao mesmo tempo em que os excessos traziam prazeres imediatos, eles também vinham carregados de frustrações, melancolias e solidão. A engrenagem paradoxal só alimentava a busca por mais emoções hedonistas, que por sua vez, provocavam um gosto de mais amargura e de infelicidade, em uma bola de neve crescente e interminável.
Também gostei muito da ousadia narrativa proposta por Fernanda Torres. Seu romance mistura capítulos em primeira pessoa com capítulos em terceira pessoa. Os relatos pessoais são feitos pelos cinco protagonistas. Cada um tem a oportunidade de extravasar seus pensamentos, seus sentimentos e suas opiniões em algum momento. O efeito mais imediato dessa multiplicidade de focos narrativos é uma visão mais abrangente e imparcial da trama. Outra ousadia de “Fim” foi a produção de um romance sem um conflito definido. Acompanhamos com muita curiosidade o desespero de cinco homens que caminham para a morte, mas não conseguimos identificar rapidamente qual é o conflito central do livro. Espetacular esse expediente! Trata-se de uma escolha ao mesmo tempo arriscada (a chance de dar errado é enorme) e brilhante (pois foi muito bem executada por Fernanda Torres, enriquecendo consideravelmente a experiência de leitura).
O único aspecto que não gostei foi do desfecho do livro (a sexta parte, “O Próximo”). Sinceramente, não entendi a relevância da narrativa olhar com atenção para duas personagens secundárias do romance (Maria Clara e Padre Graça) no momento de encerramento. Seriam as duas figuras a antítese do quinteto de protagonistas, responsáveis por construir nas páginas finais os valores morais e emocionais da nova geração? Pode até ser, mas isso não ficou claro em nenhum momento (ao menos para mim). A falta de compreensão da relevância dos dois capítulos derradeiros me deixou bastante intrigado. Seria um erro da autora ao estender sua narrativa desnecessariamente e/ou eu que não tive a capacidade de elucidar a importância das páginas finais?
Outro ponto que me causou alguma estranheza (que está longe de ser uma falha narrativa, que fique bem claro) foi a desconexão entre alguns capítulos e as partes em que eles estavam inseridos na obra. Explico melhor: capítulos da parte de “Ribeiro” e “Neto” acabaram falando pouco das personagens em foco naquele momento (Neto e Ribeiro, respectivamente) e trataram mais dos protagonistas que viriam mais tarde (por exemplo, Ciro). Não entendi o porquê desse deslocamento. Para mim, pareceu que os capítulos foram colocados nas partes erradas (quebrando a ordem das demais seções do livro).
Apesar dessas leves derrapadas, “Fim” é indiscutivelmente um romance com R maiúsculo. Sua narrativa é engraçada, profunda e interessantíssima. A combinação da trama tragicômica com um texto com um refinamento incomum transforma a experiência de leitura em algo bastante agradável. Mergulhar nas maluquices e nos devaneios do grupo de amigos do Rio de Janeiro é tão prazeroso para o leitor quanto é angustiante para os protagonistas do livro. Minha única dúvida é saber se Fernanda Torres é melhor como escritora ou atriz. Difícil responder a essa questão. “Fim” parece ser o início de uma carreira longa e bem-sucedida na literatura. Ainda bem! Novos nomes são sempre bem-vindos à ficção brasileira.
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