No sábado retrasado, dia 19, ocorreu o lançamento oficial de “A Peste das Batatas” (Pomelo), romance de estreia de Paulo Sousa. Este livro é uma sátira muito engraçada e extremamente inteligente sobre a realidade político-social brasileira. Através de uma narrativa que se aproxima intimamente do realismo fantástico, o autor apresenta os dramas contemporâneos dos agricultores do Vale das Batatas, região fictícia de alguma zona rural no rincão do Brasil. A partir de um belo dia (não tão belo assim!), suas plantações são afetadas por uma peste inexplicável e bastante agressiva, que transforma todas as batatas em sal de cozinha. Para piorar ainda mais o quadro, a praga se alastra rapidamente pelo país inteiro, tornando este tubérculo um artigo raro em nosso território. Como os brasileiros se comportarão sem o tão querido alimento em sua mesa? Esse drama agrícola-culinário acaba resvalando até nas eleições presidenciais, deixando os políticos de Brasília angustiados. Esse é o pontapé inicial de uma trama ágil, envolvente e com um subtexto riquíssimo. Sutilmente, Paulo Sousa trata de inúmeros males da nossa sociedade, como a corrupção, a injustiça social e a violência. Incrível!
Apesar de chegar só agora às livrarias nacionais, “A Peste das Batatas” foi publicado originalmente, em outubro de 2018, no formato de ebook. Naquela oportunidade, a obra de Sousa participou da 3ª edição do Prêmio Kindle de Literatura. Apesar de não ter conquistado o troféu principal, o romance chamou a atenção dos editores da Pomelo, editora recém-lançada e dedicada exclusivamente à literatura brasileira contemporânea. Assim, esta história ganhou, no finalzinho de 2019, uma merecida versão impressa. Para tal, ela passou por revisões e melhorias ao longo do último ano (algo natural em se tratando de publicações em papel). Sousa, portanto, faz o caminho traçado por muitos escritores de sucesso do século XXI: publicam de forma independente em ebook e, a partir daí, são descobertos por editoras do mercado tradicional.
Por falar em Paulo Sousa, ele nasceu na cidade de São Paulo, em 1986, e atua como jornalista, empresário do setor de Comunicação e escritor. Quem acompanha o Bonas Histórias já deve estar familiarizado com o autor. Sousa produziu, em 2016, a série de contos/novela “Histórias de Macambúzios”, disponível na coluna Contos & Crônicas. Confesso que sou fã desta narrativa sobre a fictícia Armação dos Búzios, cidade do litoral fluminense que é palco de males e dramas tipicamente brasileiros. Desde então, Sousa se destaca por agrupar em seu texto muito humor, críticas sociais e sacadas perspicazes. Assim, suas tramas são ao mesmo tempo criativas, emocionantes e engraçadíssimas.
Apesar das narrativas de “Histórias de Macambúzios” serem ótimas, nota-se uma grande evolução na literatura de Paulo Sousa com a chegada de “A Peste das Batatas”. Apesar de ser apenas a sua estreia nos romances, nota-se um autor maduro, com um estilo ficcional ousado e com muita coisa para nos dizer. Como primeira narrativa longa, esta obra está acima da média. Não é errado apontar Sousa com um dos promissores nomes da literatura paulistana deste momento. Admito que estou curioso para ver os seus próximos passos na carreia ficcional.
A trama de “A Peste das Batatas” começa em setembro de 2018. Omar Salgado é um pequeno produtor do Vale das Batatas que passa por sérias dificuldades financeiras. O bataticultor mora e trabalha na propriedade deixada pelo pai, falecido há alguns anos. Omar é casado e tem duas filhas pequenas. Sua família anseia pelos empréstimos federais prometidos pelo governo, mas que nunca chegam para os Salgado. Por isso, Omar odeia todos os políticos, vistos como corruptos e insensíveis às necessidades do povo. Sem o dinheiro que lhe fora apalavrado, Omar não sabe como fará para plantar a próxima safra de batatas, seu único ganha pão (desculpe-me pelo trocadilho involuntário).
As preocupações do agricultor só aumentam quando uma peste misteriosa invade a região do Vale das Batatas. De repente, as batatas começam a sumir. Elas se transformam em sal de cozinha, aterrorizando produtores e comerciantes. O pânico se alastra rapidamente pelo país. Consumidores das grandes cidades passam a ter medo de se alimentar com esse produto. Eles acham que serão contaminados com um mal desconhecido. Os demais fazendeiros passam a culpar os bataticultores como se eles fossem os principais culpados pelo caos que se instala na agricultura brasileira. Se as coisas já estavam difíceis para Omar antes da peste, depois elas se tornam um pesadelo de proporções gigantescas.
Sem ninguém para recorrer, Omar Salgado vai até a Universidade Federal do Vale das Batatas para falar com seu amigo Jameson Playfair Lindley. Doutor Jameson, como o cientista é mais conhecido, é um dos mais conceituados especialistas em batatas do Brasil e, quem sabe, do Mundo. Todo o seu trabalho acadêmico teve como tema os tubérculos. Ele chegou até a prever uma reação parecida à transformação das batatas em sal (na sua tese, contudo, a transformação era em açúcar). Por isso, o doutor fica estarrecido com o que descobre previamente sobre a peste.
Não à toa, Jameson rapidamente é convocado às pressas pelo ministro da Agricultura, Maldos Bagos, e pelo Presidente da República, José Vlad da Silva. Cientes da capacidade técnica do cientista, os principais políticos de Brasília colocam o Doutor Jameson no posto de Presidente da Comissão de Urgências Tuberculares. Por ser época de eleição presidencial, a Comissão recebe recursos ilimitados para resolver o problema que aflige diretamente os bataticultores e indiretamente todos os brasileiros. Inicia-se uma corrida para a cura da peste antes que os eleitores nacionais cheguem perto das urnas, o que ocorrerá impreterivelmente em outubro de 2018.
Conseguirá Jameson Playfair Lindley resolver o grande problema do desaparecimento das batatas em solo brasileiro? Não apenas o futuro de sua carreira acadêmica dependerá de uma solução rápida e eficiente para a praga das batatas como os destinos de Omar Salgado e do país inteiro estão ligados ao trabalho do doutor. Uma vez com tanto poder em mãos, Jameson mostrará uma faceta que deixará Omar bastante assustado (e decepcionado). Talvez, o cientista que preside a Comissão de Urgências Tuberculares não seja o herói que almejamos (mas que nosso país tem no momento).
Gostei muito de “A Peste das Batatas”. Com 192 páginas, o romance está dividido em 44 capítulos. Dá para lê-lo tranquilamente em duas noites. Foi o que fiz neste comecinho de janeiro. A obra de Paulo Sousa tem um prefácio de Joaquim Botelho, escritor, jornalista e crítico literário que presidiu a União Brasileira de Escritores entre 2010 e 2015. E, ao final, o livro tem um posfácio desenvolvido pelo humilde crítico que escreve este post. Sim, eu já tinha lido “A Peste das Batatas” algumas vezes no ano passado. As primeiras leituras foram como editor (também trabalho na Editora Pomelo e participei ativamente do projeto editorial desta obra). Ou seja, sou suspeitíssimo para falar dela (sei disso e não nego!). E as últimas leituras foram para desenvolver a seção final da obra.
Eu até poderia escrever uma nova crítica sobre este livro de Paulo Sousa que conheço tão bem, mas preferi apresentar no post de hoje do Bonas Histórias o texto que produzi em seu posfácio. Afinal, ele resume bem minha impressão. Segue, a seguir, este material para leitura:
Absurdos Reais
Paulo Sousa acerta em cheio ao fazer de seu romance de estreia uma sátira do Brasil contemporâneo. Como reza a cartilha do bom texto satírico, “A Peste das Batatas” coloca o dedo nas feridas sociais e aponta os absurdos da realidade da política nacional. E o tom crítico de sua narrativa vem acompanhado de uma combinação quase sempre infalível: bom humor, intertextualidade literária e reflexões acuradas sobre os meandros da vida cotidiana dos brasileiros.
Para começo de conversa, é impossível não dar boas risadas com os dramas genuínos de Omar Salgado, do Doutor Jameson Playfair Lindley e dos demais habitantes do fictício Vale das Batatas. Através do deboche, da ironia, do sarcasmo, do exagero e da caricatura, o autor revela uma trama que mistura elementos extremamente verossímeis com um cenário um tanto apocalíptico. A sensação é que as personagens desta obra foram extraídas ora das páginas dos jornais ora dos rincões do nosso país. Parte da graça desta leitura está em perceber a relação simbiótica entre a ficção e a realidade.
Para o leitor mais atento e com bom repertório, o texto engraçado de Sousa descortina uma intrincada rede de referências literárias que vão de Albert Camus (A Peste) a Rubem Fonseca (Passeio Noturno). É aí que "A Peste das Batatas" ganha em força narrativa e em charme. Se a camada mais superficial do texto agrada ao público que busca apenas uma leitura recreativa e divertida, por outro lado a camada mais profunda do livro esconde boas discussões de cunho filosófico. Por isso, não se atenha apenas à leveza e ao humor do romance. Mergulhe nas entrelinhas e procure as incontáveis pérolas que só os mais sagazes autores conseguem produzir. Sutileza é o nome do jogo praticado por Paulo Sousa. Ele trata de assuntos sérios e bastante delicados com um verniz de deboche e com uma aura de amenidade.
Por exemplo, a corrupção é algo exclusivo dos políticos brasileiros ou é uma característica da nossa sociedade como um todo? Para responder à questão tão espinhosa, Paulo Sousa cria um protagonista com um perfil mais próximo do anti-herói do que do herói tradicional. Doutor Jameson é egoísta, orgulhoso, ganancioso, hedonista e, por que não, corrupto. Diria até que ele é “sutilmente” corrupto (seria essa uma marca da nossa cultura?). Em muitos momentos, o cientista está mais preocupado com sua reputação, com sua carreira e, principalmente, com as mordomias recebidas do governo federal do que com o bem-estar da população brasileira.
Jameson é tão larápio, tão larápio que chega ao ponto de roubar o protagonismo do romance de Omar, um pobre coitado enganado por todos (até pelo autor do livro). Sem dúvida nenhuma, esse é o lance mais incrível da "A Peste das Batatas". Sim, Omar Salgado é uma vítima não apenas dentro do romance de Paulo Sousa, mas também em relação à sua estrutura narrativa. É surpreendente notar a materialização desse crime literário! A migração do texto de terceira pessoa do singular para a primeira pessoa do singular passa por esse processo de usurpação da formação do herói. Não à toa, Jameson sente-se tão culpado em relação ao amigo no final da narrativa. Juro que fiquei refletindo cá com meus botões: se ele faz isso com um amigo, imagine o que não é capaz de fazer com as outras pessoas, hein?
Se por um lado Doutor Jameson exerce o posto de anti-herói da trama, não dá para terminar a leitura de "A Peste das Batatas" sem refletir um pouco sobre o papel exercido por Omar. O pequeno proprietário rural do Vale das Batatas é, de certa maneira, uma versão atual e mais instruída (diria classe média) de Fabiano, personagem clássica de Graciliano Ramos. Tanto Omar (agora) quanto Fabiano (no passado) sofrem/sofreram com a tirania dos poderosos e com a injustiça das engrenagens sociais do seu país - essas as verdadeiras vilãs da história. Naturalmente, o leitor se solidariza com uma figura trabalhadora, oprimida e de coração puro que não consegue alcançar o que é seu por direito.
Outro ponto que chamou minha atenção em "A Peste das Batatas" é o seu desfecho catártico. Fiquei pensando se o desenlace do romance foi o resultado de um processo racional ou veio do subconsciente de Paulo Sousa. Sinceramente, acredito mais na segunda hipótese. Afinal, o escritor, como qualquer cidadão minimamente consciente das injustiças sociais em que está inserido, também tem necessidade de canalizar seus desejos e suas vontades para algum lugar. Ainda bem que, nesse caso, foi para a produção ficcional. Independentemente da discussão sobre o que é certo e o que é errado, atire a primeira pedra quem nunca pensou em agir como Omar Salgado na parte final deste livro!
Nesse sentido, lembrei das palavras de Sigmund Freud em "Obras Completas – Volume 8: O Delírio e os Sonhos na Gradiva, Análise da Fobia de Um Garoto de Cinco Anos e Outros Textos". No capítulo "O Escritor e a Fantasia", o pai da psicanálise relaciona o processo de criação literária ao ato das crianças de brincar. Assim, o autor ficcional constrói histórias que dão vazão aos seus sentimentos mais íntimos. É na (re)criação da realidade fantasiosa da literatura que ele canaliza um mundo como gostaria de ser ou age, na pele de suas personagens, como adoraria se comportar no mundo real.
O escritor faz o mesmo que a criança ao brincar; constrói um mundo de fantasia que leva bastante a sério, ou seja, dota de grandes montantes de afeto, ao mesmo tempo que o separa da realidade (...). Mas a irrealidade do mundo imaginário traz consequências importantes para a técnica artística, pois muitas coisas que, sendo reais, não poderiam dar prazer, podem proporcioná-lo no jogo da fantasia, muitas emoções que são dolorosas em si mesmas podem se tornar fonte de fruição para os ouvintes e espectadores do escritor (...). A meu ver, todo o prazer estético que o escritor nos propicia tem o caráter de um prazer preliminar desse tipo, e a autêntica fruição da obra literária vem da libertação de tensões da nossa psique. E talvez contribua para isso, em não pequena medida, o fato de que o escritor nos permite desfrutar nossas próprias fantasias sem qualquer recriminação e sem pudor (FREUD, 1908, 325-338).
Fazia um bom tempo que eu não lia uma obra cômica com tanto conteúdo crítico. Felizmente, "A Peste das Batatas" retoma um estilo que (não sei o porquê) foi preterido nas últimas duas décadas pela maioria dos autores brasileiros. De cabeça, recordo de títulos recentes de Reinaldo Moraes, Marcelo Rubens Paiva, José Roberto Torero, Jô Soares e Antônio Prata. Essas obras foram publicadas no século XX e dão continuidade à comédia na literatura nacional. Portanto, Paulo Sousa segue a tradição de escancarar os dramas do nosso país sob a ótica do bom humor - não há nada mais brasileiro do que rir de suas próprias desgraças.
Se olharmos mais para trás, Sousa caminha lado a lado com nomes como Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Lima Barreto, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Sob a perspectiva da segunda metade do século XX, diria que A Peste das Batatas dá prosseguimento ao legado de Campos de Carvalho, José Cândido de Carvalho, Ignácio de Loyola Brandão, Nelson Rodrigues, Márcio Souza, Ariano Suassuna, Luís Fernando Veríssimo, Millôr Fernandes, Eleonora V. Vorsky, Fernando Sabino, Diego Mainardi, João Ubaldo Ribeiro, Dalton Trevisan, Mário Prata e tantos outros que nos faziam morrer de rir sem deixar de transmitir mensagens contundentes sobre a realidade brasileira.
Esse é o meu posfácio da “A Peste das Batatas”. O livro está à venda no site de sua editora e em várias livrarias do nosso país. Esta publicação de Paulo Sousa é aconselhada para quem gosta de leituras críticas e inteligentes. Os dramas tragicômicos do Brasil são, infelizmente, um prato cheio para um autor astuto e competente na arte de nos fazer rir com o que há de mais sórdido em nossa realidade social. Parabéns, Paulo, pela ótima estreia!
Gostou deste post e do conteúdo do Blog Bonas Histórias? Se você é fã de literatura, deixe seu comentário aqui. Para acessar as demais críticas, clique em Livros. E aproveite para curtir a página do Bonas Histórias no Facebook.