Nesse comecinho de ano, os cinemas brasileiros recebem uma overdose de produções sobre os meandros nada admiráveis do jornalismo norte-americano. São três títulos em cartaz neste momento nas salas do nosso país: “O Escândalo” (Bombshell: 2019), “O Caso Richard Jewell” (Richard Jewell: 2020) e “Um Lindo Dia na Vizinhança” (A Beautiful Day in the Neighborhood: 2019). O primeiro trata do ruidoso caso de assédio sexual que abalou, em 2016, a Fox News, uma das principais emissoras de televisão dos Estados Unidos. O segundo aborda o papel dos veículos de comunicação no episódio do atentado à bomba nos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996. E o terceiro descreve o comportamento dos jornalistas encarregados de entrevistar, em 1998, um célebre apresentador de programas infantis da década de 1960.
É verdade que mostrar o lado sombrio da imprensa não é algo assim tão novo na sétima arte. Do clássico “A Montanha dos Sete Abutres” (Ace in the Hole: 1951) ao contemporâneo “O Abutre” (Nightcrawler: 2014), não faltam exemplos de filmes com esse tipo de enredo. O que chama a atenção dos três lançamentos deste ano é o uso de casos reais para ancorar suas narrativas cinematográficas. De certa forma, todos repetem os passos de “Spotlight - Segredos Revelados” (Spotlight: 2015), que surpreendeu o público e a crítica ao conquistar o Oscar de 2016 nas categorias Melhor Filme e Melhor Roteiro Original.
Para conferir a qualidade dos novos longas-metragens, fui ao Reserva Cultural no final de semana passado para assistir a “O Escândalo”. Dirigido por Jay Roach, do bom “Trumbo - Lista Negra” (Trumbo: 2015) e do inesquecível “Entrando Numa Fria” (Meet the Parents: 2000), e escrito por Charles Randolph, roteirista do ótimo “A Grande Aposta” (The Big Short: 2015) e do bom “A Intérprete” (The Interpreter: 2005), “O Escândalo” teve orçamento de US$ 32 milhões. No elenco principal, o trio feminino formado por Charlize Theron, de “Casal Improvável” (Long Shot: 2019), Nicole Kidman, de “Grace de Mônaco” (Grace of Monaco: 2014) e Margot Robbie, de “Era Uma Vez Em... Hollywood” (Once Upon A Time...in Hollywood: 2019) e “Golpe Duplo” (Focus: 2015), teve a companhia do experiente John Lithgow, de “Dívida de Honra” (The Homesman: 2014). É inegável que se trata de um time de primeiro nível de Hollywood. Esta produção concorre ao Oscar em três categorias: Melhor Atriz (Charlize Theron), Melhor Atriz Coadjuvante (Margot Robbie) e Melhor Maquiagem.
“O Escândalo” retrata os dias conturbados de julho de 2016 na Fox News, canal de notícias extremamente conservador da TV a cabo norte-americana. Comandada há mais de uma década por Roger Ailes (interpretado por John Lithgow), a emissora é a joia do império do magnata das comunicações Rupert Murdoch (Malcolm McDowell). O prestígio da Fox News é tão grande que Ailes se tornou uma das figuras mais poderosas do cenário político dos Estados Unidos. Não há candidato à Presidência da República que não precise se alinhar ao comandante do canal. Se Roger Ailes é tão respeitado fora dos muros da sua emissora, não é difícil imaginar como ele é tratado pelos jornalistas que ocupam um gigantesco prédio em Nova York. Ele é um quase Deus para os funcionários da companhia, capaz de levar alguém ao estrelato repentino ou à demissão sumária.
Os dias de fama, glória e poder de Roger Ailes são abalados pela denúncia de assédio sexual feita por Gretchen Carlson (Nicole Kidman). Ao ser demitida da Fox News, a jornalista que apresentava um programa no horário nobre na emissora expôs o comportamento pouco decoroso do comandante do canal com as mulheres. Segundo Carlson, Ailes e os principais executivos da empresa incorporaram na cultura organizacional a prática do assédio. Assim, era impossível para uma jornalista bonita passar ilesa pelos olhos e pelas mãos dos chefes. Se elas não colaborassem, não poderiam crescer profissionalmente.
Os assédios sexuais na Fox News aconteciam sistematicamente. Tais crimes ocorreram no passado com Megyn Kelly (Charlize Theron), uma das jornalistas mais famosas do país, e são ainda protagonizados no presente, como provou a jovem Kayla Pospisil (Margot Robbie). Para estarrecimento do público, as denúncias de Gretchen Carlson dividem os funcionários da Fox News. Há quem defenda cegamente Roger Ailes e há quem o condene. O destino do mandatário da emissora passará pela postura corajosa das vítimas deste tipo de violência. Revelar publicamente um caso de assédio nunca é fácil nem indolor. Se as atuais e ex-funcionárias se unirem, terão alguma chance de fazer justiça. Do contrário, Ailes sairá impune e, o que é pior, continuará molestando suas jornalistas.
“O Escândalo” é um bom filme. Seu principal mérito é apresentar didaticamente os episódios reais que jogaram luz aos casos de assédio sexual que inundaram a indústria de cinema e da televisão dos Estados Unidos em 2016. Não à toa, o movimento do Me Too iniciou-se exatamente aí. Se as denúncias contra Charles Randolph, um dos principais cineastas do mundo, foram noticiadas com mais estardalhaço no exterior, os episódios envolvendo Roger Ailes acabaram ocupando apenas algumas notas da imprensa internacional. Daí a importância deste filme de Jay Roach e Charles Randolph. Um caso tão terrível e emblemático como este não poderia ser esquecido ou pouco divulgado.
O maior ponto positivo de “O Escândalo” está na criação de um clima permanente de tensão e de angústia que ultrapassa a linha divisória da tela. A plateia fica sensivelmente incomodada com os acontecimentos encenados pelas personagens, o que evidencia a força desta história. Há algumas cenas extremamente constrangedoras que expõem o quanto é repugnante o assédio. Nesse sentido, as escolhas dos cineastas foram brilhantes. Ao mesmo tempo que não se furtam em mostrar momentos profundamente delicados da rotina da Fox News, eles deixam outros mais constrangedores nas entrelinhas (o que não diminui o inconformismo do público e das personagens). Note a ausência de trilha sonora em algumas passagens do filme, o que potencializa a tensão dramática.
Outro aspecto primoroso desta produção é a mistura acertada entre realidade e ficção. As principais personagens (Gretchen Carlson, Megyn Kelly, Roger Ailes e Rupert Murdoch) são figuras verídicas. Ao lado delas, há criações fantasiosas, como Kayla Pospisil, que simboliza um conjunto grande de vítimas reais de Ailes. Essas personagens inventadas contribuem para o desenrolar minimamente harmonioso da trama. Contudo, o que torna a junção entre realidade e ficção tão bem-feita em “O Escândalo” é a inserção de cenas reais da cobertura televisiva e das aparições de políticos famosos (como Donald Trump, por exemplo). Quando isso acontece, há a sensação de estarmos vendo um documentário e não um filme comercial. Assim, a distinção entre as duas linhas da realidade desaparece completamente. Incrível isso.
Não é possível elogiar “O Escândalo” sem falar da atuação magistral do seu elenco principal. Charlize Theron e Margot Robbie, até então conhecidas mais pelas suas belezas estonteantes e por escolhas profissionais mais comerciais do que artísticas, conseguem, enfim, papéis à altura de seus talentos. Elas estão simplesmente sensacionais. Enquanto Charlize Theron está parecidíssima com a Megyn Kelly real e mantém um alto nível do início ao fim, Robbie protagoniza duas cenas antológicas. Impossível não ficar encantado com suas atuações impecáveis. O mais legal é notar que Nicole Kidman e John Lithgow não ficaram muito atrás de Charlize Theron e Margot Robbie quando o assunto é qualidade cênica.
As cenas de assédio são um capítulo à parte neste filme. Elas foram muito bem escolhidas e, principalmente, encenadas. Parte da sensação de incômodo absoluto da plateia passa pela visualização concreta da violência contra as funcionárias da Fox News. Respire fundo e segure-se na poltrona nestes momentos! É preciso sangue-frio e estômago forte para encarar os atos criminosos de Roger Ailes.
Para completar, o caos instalado na emissora de TV com a explosão das acusações de assédio acontece em meio à corrida presidencial dos Estados Unidos. Assim, ao mesmo tempo em que é um veículo de comunicação, a Fox News (e seus jornalistas) também viram notícias (em uma inversão de papéis). Destaque para a aparição de Donald Trump e de seus seguidores no contexto desta história (o que prova que as posturas machistas, misóginas, violentas e assediadoras não se limitam à Fox News nem ao universo do jornalismo).
O final de “O Escândalo” é magistral, com um sabor agridoce (cuidado: aí vai um pequeno spoiler). Se por um lado se faz justiça no desenlace, por outro a “justiça” não é tão justa assim (repare no valor das indenizações conferidas pelo Grupo Fox às vítimas e aos culpados). Quem melhor explica ao espectador o que virá pela frente é a personagem de Margot Robbie. A atitude final de Kayla Pospisil escancara o quão difícil é mudar a cultura de uma empresa (mudam-se as peças, mas permanecem as velhas práticas...).
Apesar dos vários pontos positivos, “O Escândalo” também tem uma série de elementos negativos. O principal deles é quanto às falhas no foco narrativo. A trama é apresentada do ponto de vista de três personagens femininas. Essa escolha aparentemente acertada é muito mal executada. A visão tripla torna a narrativa desconexa, confusa e empobrece consideravelmente a história. Não há qualquer lógica neste expediente.
O que dizer, então, da apresentação didática de Megyn Kelly sobre a estrutura e a dinâmica da Fox News nas cenas iniciais do filme, hein? Lamentável! Ela fala olhando para a câmera e repassando diretamente ao público a rotina de trabalho em sua empresa. Tal recurso, popularizado por Woody Allen, é totalmente descabido no contexto da narrativa criada por Charles Randolph.
Também é complicado esperar uma narrativa rica com personagens planas. Muitas figuras são caricatas e sem qualquer nuance psicológico. Isso acontece tanto no lado das vítimas quanto dos criminosos. Não há qualquer contradição em suas atitudes, o que torna a história unidimensional. Neste sentido, “Não Mexa com Ela” (Isha Ovedet: 2018), filme do israelense Michal Aviad que aborda o assédio no ambiente de trabalho, é muito mais rico e interessante.
Por falar em “Não Mexa com Ela”, “O Escândalo” não mostra as consequências psíquicas nem clínicas do assédio para as mulheres vítimas deste crime (algo que o filme israelense faz brilhantemente). A impressão que se tem é que os problemas decorrentes deste crime são meramente profissionais, o que é um grande engano. Para piorar, o bullying praticado por Donald Trump e pelos seguidores do então candidato Republicano a Megyn Kelly são insistentemente explorados, inclusive com suas consequências para a vida pessoal da jornalista. Aí, o espectador se pergunta: por que mostrar isso e não os desdobramentos do assédio à vida das mulheres?! Não dá para entender essa escolha.
É inegável que o universo contraditório do jornalismo sempre rendeu ótimos filmes (e livros). Infelizmente, “O Escândalo” tem alguns tropeços narrativos que muito possivelmente irão excluí-lo da lista dos melhores desta temática. Mesmo assim, é enriquecedor assisti-lo. Um assunto tão relevante, delicado e, porque não assustador, precisa ser abordado e disseminado em nossa sociedade. Ainda mais porque sabemos que o assédio sexual no ambiente de trabalho não é uma exclusividade da indústria televisiva.
Assista, a seguir, ao trailer de “O Escândalo”:
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