[No canto esquerdo do palco, a banda toca Se Quiser Fumar Eu Fumo Se Quiser Beber Eu Bebo. Quando o apresentador do Talk Show Literário, que está atrás de sua mesa no centro do auditório, faz com a mão direita o gesto enfático de uma tesoura em funcionamento, os músicos interrompem imediatamente a canção].
Darico Nobar: Boa noite, fãs da boa literatura! É muito prazeroso ter mais uma vez a companhia de vocês nesta nova temporada do nosso programa. Sim, o Talk Show Literário já entra em seu quarto ano. Incrível, né? E hoje, vamos receber a visita de Lia Ribeiro, a personagem de Pornopopéia, um dos romances brasileiros mais emblemáticos do século XXI. [Ele se levanta para receber sua convidada. A plateia aplaude a entrada da moça]. Seja bem-vinda, Lia. [O cumprimento é um beijo rápido no rosto]. Tudo bem?
Lia Ribeiro: Brigada. Vô levando, né? [Acompanhando o apresentador, ela se senta ao sofá]. Enquanto támos vivos, o negócio é ir empurrando com a barriga, não é mesmo?
Darico Nobar: Gostaria de começar nosso bate-papo perguntando pelo Zeca. Por onde ele anda?
Lia Ribeiro: E eu é que sei por onde anda aquele merda?!
Darico Nobar: Mas você não é a esposa dele?
Lia Ribeiro: Desde quando o Zé Carlos dá satisfação pra a mulher e o filho? Aquele folgado deve tá agora na mesa de um boteco com um monte de bêbado cheirando pó e falando: ô vida escrota do caralho; tô fudido, mermão; e meu negócio não é publicidade, é cinema. Ou deve tá fudendo com uma vagabunda que não vale nadinhadenada. Aquele lá não tem jeito, Darico. É caso perdido.
Darico Nobar: Ufa, que alívio! [Coloca as palmas das mãos no peito]. Juro que pensei que o Zeca tivesse morrido. Fico feliz de saber que ele está bem.
Lia Ribeiro: Puta que pariu! Desde quando um sujeito cheio de dívidas, alcóolatra, que passa a noite entupindo o cu de drogas, viciado em sexo, que tem como profissão a vagabundagem explícita e que é procurado pela polícia por homicídio, tráfico de drogas e estupro de menor pode tá bem? Hein? Me diga.
Darico Nobar: Ao menos ele está vivo. É o que eu quis dizer.
Lia Ribeiro: Sei lá, cacete! Acho que tá.
Darico Nobar: Como assim você acha? Você não tem certeza?!
Lia Ribeiro: E alguém tem certeza de alguma coisa da vida ordinária que o Zé Carlos leva?
Darico Nobar: Você falou recentemente com Zeca, sabe que ele não morreu, né?
Lia Ribeiro: Do jeito que aquele idiota cheira, qualquer hora morre mesmo.
Darico Nobar: Quando foi a última vez que vocês se falaram?
Lia Ribeiro: Deve fazer uns onze ou doze anos. Não me lembro...
Darico Nobar: Ah?! Ele não fala com você há tanto tempo assim?!
Lia Ribeiro: Não só não fala como também não escreve nem aparece. Pelo visto, cê não conhece ele porra nenhuma, né? Quando aquele fiadaputa some, ele esquece de mim, do Pedro, da produtora, das contas de casa e da putaquepariu.
Darico Nobar: Você não deixou recado, não tentou falar com ele?
Lia Ribeiro: E adianta o catso?! Ele nunca retorna minhas ligações e não deve ver imeio há uma década.
Darico Nobar: Se ele está sumido, por que, então, você acha que ele está vivo?
Lia Ribeiro: Se tivesse morrido, teria aparecido rapidim. Só assim mesmo pra aquele cachorro vadio aparecer. Como não dá as caras, deve tá vivinho da silva por aí. Se não estiver rodando um filme maluco na Índia nem estiver em férias em Ubatuba, estará em mais um bacanal interminável com as putas do centro de São Paulo.
Darico Nobar: Seu ponto de vista até faz sentido. Não seria surpresa mesmo.
Lia Ribeiro: Hã-hã. O que não faz sentido é o tipo de vida que o Zé Carlos leva.
Darico Nobar: Ele sempre foi assim?
Lia Ribeiro: Quando a gente se conheceu, ele era mais ou menos normal. Até trabalhar o Zeca trabalhava. Os vídeos pornôs que produzia naquela época pela Khmer devem ter mexido com algum parafuso na cachola dele. [Depois de alguns segundos em silêncio, continua]. O maior problema do meu marido é que ele sempre foi muito influenciável, muito sociável. Os amigos dele são péssimas influências pra qualquer um. O Ingo é o pior. Quando entra numa bebedeira ou numa suruba regada à ácido e à cocaína, quem é a primeira pessoa que ele chama? O Zeca. E o bobão vai. Mas tem também o Nissim, o Miro, o Zuba, o Alê, o Naldo. Essa turminha é barra-pesada!
Darico Nobar: Naldo? Esse eu não conheço.
Lia Ribeiro: Claro que cê conhece. Foi ele quem começou essa viadice toda.
Darico Nobar: O Zeca é realmente muito sociável. Contudo, não me parece uma pessoa lá muito influenciável.
Lia Ribeiro: Cê acha que eu tô exagerando é o cacete, mas ele é sim vítima dos trogloditas que só sabem beber, cheirar e fuder. O único que não consegue aconselhar o Zé Carlos é o pobre do Leco. Se meu irmão conseguisse transmitir 10% da sua seriedade ao maldito, todos os problemas do meu casamento tariam resolvidos.
Darico Nobar: Se você pudesse alterar uma coisa, só uma, no comportamento do Zeca, o que seria?
Lia Ribeiro: Mudaria tudo. Aquele maluco precisava nascer de novo pra ficar minimamente direito.
Darico Nobar: Entendo, mas se você pudesse começar com algo. O que seria?
Lia Ribeiro: Acho que a alimentação. Onde já se viu alguém comer bacon e ovos todo santo dia! O colesterol dele deve tá lá nas alturas. Juro que não entendo a biologia humana. Era pra o Zé Carlos já ter tido um piripaque há caras, não é possível. E a culpa disso é da Terezinha, aquela sonsa de araque.
Darico Nobar: Da Terezoca?
Lia Ribeiro: Ela tem uma quedinha, ou seria quedona, pelo Zé Carlos, não é possível. Ela faz tudo pra agradar o lesado. Aí já viu: tranqueira gordurosa no almoço e na janta todo dia. E deve ser a Terezinha quem compra a comida com o dinheiro dela.
Darico Nobar: Vamos falar agora sobre o Pedrinho. Quantos anos ele tem?
Lia Ribeiro: Completou dezesseis no mês passado.
Darico Nobar: Imagino que o garoto deva sentir muita a falta do pai, né?
Lia Ribeiro: O Pedro se acostumou a viver sem o pai. Quem sempre desempenhou esse papel foi o Leco. Graças a Deus, meu filho é hoje super independente, não fica de mimimi esperando pelo pai aparecer. Sai, namora e às vezes passa o final de semana inteiro longe de casa. Pelo jeito que chega na segunda-feira, suspeito que já começou a beber. Que adolescente hoje que não se embriaga na balada? O menino só fica triste quando falam merdas do pai. O Zé Carlos tem lá seus defeitos, reconheço, mas tem bom coração. Nem eu que sou calma aguento ouvir as maldades que contam do meu marido na rua.
Darico Nobar: O que andam falando dele, Lia?
Lia Ribeiro: Cê sabe como é a boca do povo, Darico. Eles não perdoam. Na maioria das vezes, eles até falam a verdade. Sei que meu marido não é anjinho nem aqui nem na China. Mas, por favor, não vá na orelha do Pedro falar o que o pai aprontou. Aí é maldade.
Darico Nobar: Se o Zeca estiver nos assistindo agora, o que você gostaria de falar para ele?
Lia Ribeiro: Eu gostaria de dizer... [Olha para a lente da câmera e solta um suspiro barulhento. Seu rosto é enquadrado em um zoom pela câmera 2]. José Carlos, cê não quer voltar pra casa, tudo bem. Pelo menos envie o dinheiro da porra da escola do Pedro e do aluguel! Se vira, meu. Vende pó, dá o rabo, vende o Monza. O que eu quero é grana. Não sou mulher de malandro pra aguentar a barra sozinha.
Darico Nobar: Pessoal, é isso aí. O Talk Show Literário desta semana fica por aqui. [A plateia aplaude timidamente]. No próximo programa...
Lia Ribeiro: Ei, Darico, não vai me dizer que a entrevista já terminou?
Darico Nobar: Exatamente. Você não gostou?
Lia Ribeiro: Claro que não. Só falamos do Zé Carlos. Achei que cê tivesse me convidado pra falar de outras coisas. Se soubesse que o tema seria o puto, não teria vindo pra cá [Cruza os braços e fica olhando para o chão].
Darico Nobar: Desculpe-me, Lia. A curiosidade sobre o paradeiro e sobre os hábitos do José Carlos Ribeiro é grande. Não dá para chamá-la aqui e não perguntar nada sobre um dos grandes cineastas nacionais.
Lia Ribeiro: Grande, o quê?! Ele só fez um filme na vida, que é uma merda que ninguém nunca viu. E que título mais pau no cu é aquele: Holisticofrenia?!
Darico Nobar: Queiramos ou não, ele é também um dos grandes escritores brasileiros da atualidade. Pornopopéia é reconhecidamente um best-seller.
Lia Ribeiro: Claro que é um best-seller. A única coisa que interessa hoje em dia é putaria. Aí ninguém é melhor do que o Zé Carlos. Esqueça Machado de Assis, Jorge Amado e Graciliano Ramos. O rei da literatura, do ponto de vista da devassidão moral, é o meu marido. Que orgulho! [Seus olhos lacrimejam].
Darico Nobar: Desculpe-nos, Lia, se a decepcionamos.
Lia Ribeiro: Está bem. [Apesar do que diz, ela permanece visivelmente chorosa]. Já estou acostumada. Pelo menos cê não foi bater na minha porta perguntando por ele, como fazem quase todo dia a polícia, os traficantes, os diretores da Itaquerambu, o Zumba, os amigos pinguços, a galera da Cracolândia, os vendedores de lula, os jornalistas, o Leco, as putas da Augusta, a comunidade de pescadores de Porangatuba e a torcida do Flamengo. Outro dia até um traveco loiro, não me lembro o nome, Zola, Zulla, apareceu perguntando pelo Zequinha das mãos fogosas. Vê se dá pra criar um filho em um ambiente desse?
Darico Nobar: Pessoal, esta foi a incrível Lia Ribeiro! [Dessa vez, o público no auditório solta uma ruidosa salva de palmas, o que parece deixar a entrevistada um pouco menos desapontada. É possível até ver um sorrisinho tímido saindo de seu rosto]. Até semana que vem e boa noite a todos.
[Os microfones no centro do palco são cortados e a canção título do programa é imediatamente executada pelo quinteto musical. A imagem da câmera 1, que estava focalizando o apresentador e a convidada, começa a fazer um zoom out. Pouco a pouco é possível ver todo o auditório. De repente, a imagem desaparece].
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O Talk Show Literário é o programa de televisão fictício que entrevista as mais famosas personagens da literatura. Assim como ocorreu nas três primeiras temporadas, neste quarto ano da atração, os convidados de Darico Nobar, personagem criada por Ricardo Bonacorci, são os protagonistas dos clássicos brasileiros. Para acompanhar as demais entrevistas, clique em Talk Show Literário. Este é um quadro exclusivo do Blog Bonas Histórias.
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