Há anos, sou um grande fã do trabalho de Ana Holanda, editora-chefe da Vida Simples. Desde a extinção da Bravo, a Vida Simples se tornou minha revista favorita. Por isso, foi uma grata surpresa quando soube que Ana Holanda tinha lançado um livro sobre a Escrita Afetuosa. O título desta obra é “Como Se Encontrar Na Escrita” (Rocco/Bicicleta Amarela). Conceito desenvolvido pela própria jornalista e aplicado com brilhantismo na Vida Simples, a Escrita Afetuosa incentiva a produção de textos mais pessoais, emotivos e viscerais seja na literatura quanto no jornalismo, na academia ou na esfera corporativa. Além do livro, a proposta da Escrita Afetuosa de Holanda tem sido transmitida pela autora em cursos oferecidos na The School of Life e em seminários pelo país.
Depois de muito adiar a leitura de “Como Se Encontrar Na Escrita”, foram quase dois anos de atraso, enfim, pude mergulhar nas páginas desta publicação. Aproveitei a calma do terceiro final de semana deste ano novo para entender a teoria da Escrita Afetuosa. Minha curiosidade fazia sentido. Até então, como leitor assíduo da Vida Simples, eu só conhecia o resultado prático desses conceitos. Porém, queria entender os segredos por trás da mágica. Queria descobrir os motivos por ter virado um fã incondicional dos textos deste periódico. Assim, passei o último sábado degustando as páginas da obra de Ana Holanda.
Admito que fiquei tão encantado com a leitura de “Como Se Encontrar Na Escrita” que resolvi não perder mais tempo. Produzi esta análise crítica sobre o livro ainda no domingo de madrugada. Para quem conhece meus hábitos matutinos entenderá o quão empolgado eu fiquei para passar a virada do sábado para o domingo escrevendo este post. Na minha visão, os leitores do Bonas Histórias não poderiam esperar nem mais um dia sequer para conhecer esta obra.
Publicado em 2018, “Como Se Encontrar Na Escrita” é o segundo livro de Ana Holanda, jornalista com passagens pelas redações dos principais veículos do país e que trabalha desde 2011 na Vida Simples. O primeiro livro de Holanda, “Minha Mãe Fazia” (Rocco/Bicicleta Amarela), é uma obra de receitas familiares que despertam as memórias de infância da autora. Ou seja, a publicação mistura gastronomia e crônicas pessoais, em mais um típico exemplo do uso da Escrita Afetuosa.
“Como Se Encontrar Na Escrita” nasceu da compreensão da jornalista-escritora de que ela era acima de tudo uma contadora de histórias. E as narrativas produzidas por Ana (e, depois, pelos integrantes de sua equipe na revista e, mais tarde, por seus vários alunos nas oficinas de escrita) tinham uma característica particular: elas eram conversas íntimas apresentadas com sensibilidade aos leitores. A Escrita Afetuosa, nas palavras da própria autora, é construída por textos que dialogam, marcam, tocam e afetam o outro, desencadeando sentimentos e gerando emoções. Para isso, o escritor (palavra aqui empregada para quem desenvolve textos, podendo ser essa pessoa um jornalista, um publicitário, um roteirista de TV, um cineasta ou um produtor de conteúdo) precisa usar palavras que vem direto da sua alma, das entranhas do seu ser. A base deste tipo de escrita é a narração intimista de episódios pessoais, que criam empatia no leitor. Só assim, é possível emocionar quem lê o texto. A Escrita Afetuosa é, portanto, um contraponto à escrita fria, impessoal e baseada em números, estatísticas e nas informações macroeconômicas.
Com 224 páginas, distribuídas em 10 capítulos, “Como Se Encontrar Na Escrita” descreve passo a passo as diretrizes da Escrita Afetuosa. Segundo Ana Holanda, em primeiro lugar, o autor precisa se mostrar sensível e atento ao mundo em que está inserido. Em outras palavras, ele deve navegar tanto pelo seu universo interior (emoções, pensamentos, crenças, medos, alegrias, etc.) quanto pelos aspectos externos da sua vida (o mundo em que habita e o das pessoas ao seu redor). A Escrita Afetuosa precisa ser visceral, vinda de dentro e feita com paixão. Assim como a vida, a produção de textos pressupõe intensidade. Escrever é viver. E ambos precisam ser atividades passionais.
Nesse sentido, não devemos ser racionais. Diferentemente do que é pregado em muitos ambientes sociais e profissionais, não devemos ser econômicos na exposição dos nossos sentimentos. Até mesmo nos materiais corporativos e nas matérias jornalísticas, o emprego de elementos emocionais é muito bem-vindo. É através da emoção do texto que o leitor conseguirá se conectar às palavras, às histórias e às mensagens transmitidas.
Porém, para liberarmos nosso lado emocional, precisamos, como escritores, entender primeiramente quem somos. Trata-se da descoberta efetiva do nosso “eu”. O “eu” aqui é nossa personalidade genuína, aquela por trás das máscaras sociais e psíquicas. Além de ser uma busca difícil (raramente realizamos essa procura), a exposição desnuda de quem somos é uma tarefa que exige muita coragem. Infelizmente, as pessoas não estão acostumadas a se expor e, principalmente, a expor seus sentimentos.
Quanto aos temas, os melhores enredos não estão no extraordinário e sim nos momentos simples da vida. Enxergar esses instantes é outro grande desafio para quem deseja trabalhar com a Escrita Afetuosa. É preciso sensibilidade para descobrir a poesia presente em nosso cotidiano e em nossas relações pessoais. As boas histórias podem estar em qualquer lugar e podem ser narradas por qualquer um. Para achá-las, é preciso garimpar. Belas histórias são como pedras preciosas, estão escondidas dos olhares distraídos das pessoas. Portanto, converse com todo mundo, caminhe bastante por aí e não se canse de observar com atenção o mundo.
Ana Holanda também diz que a Escrita Afetuosa não é apenas aquela sensível, poética. Ela também é a escrita que abraça, acolhe. E para isso, esses textos não podem ser feitos com palavras frias, intangíveis e incompreensíveis. Parte do acolhimento e da aproximação da Escrita Afetuosa com o leitor se dá pela escolha correta das palavras pelo autor. Cada termo e cada frase devem transmitir o sentido adequado e a intensidade necessária para quem lê. Curiosamente, palavras têm a capacidade tanto de nos aproximar quanto de nos afastar. A criação do efeito desejável passa necessariamente pela escolha exata dos termos e das expressões para cada situação específica.
Escrever não é apenas técnica, como estamos acostumados a ouvir nas faculdades de comunicação e nas oficinas literárias. Escrever também exige uma elevada dose de maturidade pessoal e de compreensão íntima. Encontrar a própria voz, por exemplo, é um dos grandes desafios de quem escreve. Descobrir as motivações por trás da escrita também. Cada pessoa tem suas temáticas preferidas e mais fortes. Por fim, Holanda diz que um texto não faz sentido se ele não toca os leitores. As palavras são agentes de transformação e precisam ser usadas para tal.
Adorei “Como Se Encontrar na Escrita”. Seus conceitos são originais e vão contra uma determinada corrente em voga no jornalismo. Na literatura e na publicidade, felizmente, as ditaduras da racionalidade, da imparcialidade e da frieza textual há muito tempo não existem.
O mais legal desta leitura foi ver a teoria por trás da prática. Como leitor da Vida Simples, eu apreciava os textos da revista, mas até então não havia parado para refletir sobre os motivos da minha adoração. Eu gosto de lê-la e pronto, pensava tacanhamente. Aí, de repente, Ana Holanda revela os segredos (não tão segredos assim) da Escrita Afetuosa. Ao longo dos capítulos deste livro, pude entender a proposta por trás da Vida Simples. E, então, tudo fez sentido. Muito interessante vivenciar esse processo de aprendizado.
Talvez para quem não conheça a Vida Simples ou não seja um leitor frequente do periódico, as revelações da autora em “Como Se Encontrar na Escrita” possam parecer banais. Até acredito que muitos leitores acabem chegando a essa conclusão (posição extremamente equivocada em meu ponto de vista). A simplicidade e a objetividade da teoria da Escrita Afetuosa não podem ser confundidas com vazio ou primitivismo conceitual. O que Ana Holanda fala é de uma profundidade e de uma relevância absurdas. Sua didática é excelente e merece ao menos ser analisada por quem produz conteúdo. Se depois você vai utilizar ou não as práticas da Escrita Afetuosa só o tempo dirá. O que não pode ser feito é ignorar seus conceitos e a relevância dos seus efeitos nos leitores.
Curiosamente, “Como Se Encontrar na Escrita” não é apenas um livro com um ótimo conteúdo. Ele também apresenta boas ilustrações e um projeto gráfico compatível com a proposta conceitual da obra. Os desenhos de Tiago Gouvêa são primorosos e embalam nossa leitura. Gostei também do tom didático da publicação. Ao final de cada capítulo, Ana Holanda propõe a realização de um exercício prático. A sensação é que o leitor está participando de uma oficina literária da autora.
O principal ponto negativo do livro é o excesso de matérias extraídas das revistas em que Ana trabalha ou trabalhou (Vida Simples e Bons Fluídos). Como leitor antigo das publicações da autora, achei extremamente cansativo ter que reler seus textos no livro. Alguns até dialogavam perfeitamente com a teoria apresentada. Outros, contudo, pareceram a mim mais encheção de linguiça do que boas exemplificações do que estava sendo abordado nas páginas da obra. Provavelmente quem não conheça a Vida Simples poderá até gostar desse recurso. Eu odiei. Senti que estava em um consultório médico relendo matérias de revistas muito antigas. Uma obra com essa envergadura merecia sim um texto mais exclusivo e original no momento da exemplificação conceitual.
Nesse sentido, também desaprovei os feedbacks dos participantes das oficinais de Escrita Afetuosa ministrados por Ana Holanda. Essa parte ocupa várias páginas do capítulo 9 da obra. Qual a relevância disso para o conceito apresentado neste livro? Sinceramente não vi uma utilidade prática. Para mim, pareceu muito mais uma propaganda do curso realizado pela autora do que uma contribuição teórica ao conceito por ela criado. Portanto, há muitas páginas que ou parecem publicidade de treinamentos da jornalista ou são matérias de reportagens antigas dela. Obviamente, ninguém compra um livro e investe seu tempo para ler algo deste tipo, né?
Mesmo com algumas pisadas na bola, “Como Se Encontrar na Escrita” é um livro que merece a leitura. Sinceramente, me arrependo de não o ter lido antes. Se soubesse que era tão bom e relevante, na certa teria mergulhado em suas páginas na época do seu lançamento. Como efeito colateral, o leitor mais empolgado ficará com vontade de realizar a oficina de Ana Holanda na The School of Life ou de assinar a Revista Simples. Não conheço ninguém que tenha feito o curso, mas sua proposta parece ser muito interessante. Quem tiver feito, por gentileza, avise-nos se ele é tão bom. Quanto à revista, repito mais uma vez: ela é a minha publicação favorita há alguns anos. Por sorte, após uma grande restruturação realizada na Editora Abril, o título foi salvo de ser cancelado. Ele acabou vendido para um grupo de empresários interessados na continuidade de sua publicação. Quem saiu ganhando foram os leitores.
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