Há um grupo de escritores que não consegue produzir trabalhos ruins. Esse tipo de artista é imune ao que chamo de obras insípidas e inodoras. Pelo menos é essa a impressão na perspectiva dos seus leitores mais fiéis. Quando alguns de seus livros não saem como supúnhamos, ou seja, ficam abaixo da média do portfólio do autor, ainda sim eles conseguem provocar reações positivas. A quantidade de acertos destas publicações sempre supera em muito a de equívocos. Obviamente, não são livros para entrarem para a história da literatura ou para serem lembradas em um futuro próximo. Mesmo assim, conseguem angariar a admiração momentânea do público, transformando-se em uma excelente leitura recreativa.
Nesse grupo seleto, o de escritores que dificilmente erram a mão, está Marcelo Rubens Paiva. Ou você conhece algum texto ruim dele, hein?! Eu sinceramente desconheço. Até hoje, tudo o que ele produziu, seja na crônica, na dramaturgia ou no romance, me impressionou positivamente. Não à toa, Rubens Paiva é considerado um dos principais autores brasileiros vivos e um ícone de sua geração.
Estou falando sobre ele, hoje, no Bonas Histórias, porque li recentemente “O Orangotango Marxista” (Alfaguara), o décimo sexto livro do escritor paulistano. Na minha opinião, a obra deixa muito a desejar, principalmente se for comparada a “Feliz Ano Velho” (Alfaguara), história autobiográfica lançada em 1982, “Blecaute” (Mandarim), romance de 1986, e “Malu de Bicicleta” (Objetiva), drama familiar de 2003. Por outro lado, “O Orangotango Marxista” está muito longe de desagradar os leitores. Seu texto é engraçado, sua narrativa é inteligente, os debates propostos são de alto nível e as reflexões geradas são bastante interessantes. Assim, mesmo não sendo o melhor trabalho de Rubens Paiva, este romance ainda apresenta ótimos predicados que justifiquem sua compra e sua leitura.
Publicado em abril de 2018, “O Orangotango Marxista” nasceu de uma ideia que seu autor teve após visitar o zoológico de Americana, cidade do interior de São Paulo. O estabelecimento fica em frente à casa do sogro de Marcelo Rubens Paiva. Ao percorrer as jaulas do zoológico, o escritor pôde acompanhar o marasmo e a melancolia da vida dos animais ali aprisionados. Dessa forma, surgiu a proposta de narrar esse drama do ponto de vista de um macaco enjaulado. Juntamente com um contundente manifesto ecológico, o escritor inseriu em seu texto doses saborosas e ácidas de críticas sociais, comportamentais e políticas. Ao invés de ser observado pelos homens no zoológico, o narrador-protagonista do romance é quem observa o ser humano de uma posição privilegiada. O resultado é um retrato bem-humorado e, ao mesmo tempo, desalentador dos hábitos de nossa espécie.
“O Orangotango Marxista” é, como já disse, o relato em primeira pessoa de um macaco (seu nome não é informado ao longo da trama) que foi trazido ao nosso país após ser capturado em uma floresta de Bornéu, ilha do sudeste asiático. Separado ainda pequeno da mãe, o orangotango foi enviado ainda criança para o interior de São Paulo para ser usado em pesquisas comportamentais de símios. A bióloga responsável pelos estudos com o animal foi Kátia, uma universitária tímida e bonita. Os dois rapidamente estabeleceram uma relação de amizade e respeito.
Por sorte (ou azar) do destino, orangotango pôde, de dentro de sua jaula, assistir às aulas de alfabetização de crianças humanas, que eram ministradas na sala ao lado do laboratório. Assim, a personagem principal do romance acabou aprendendo a linguagem oral e escrita dos homens. Uma vez alfabetizado, porém mantendo sigilo sobre essa sua habilidade, o orangotango passou a escapar durante as noites do laboratório para ler livros, jornais e revistas disponíveis em uma biblioteca próxima. Dessa maneira, se tornou um exímio leitor, principalmente de filosofia. Além de ter ficado fascinado pela história do Batman, por horóscopo e pela prática do sexo entre os humanos, o orangotango se apaixonou por sua tratadora, Kátia. Apesar da moça transar em sua frente com um professor, o jovem macaco caiu de amores pela bióloga.
Com o intuito de agradar cada vez mais sua amada, o orangotango passou a mostrar o quanto era inteligente, destacando-se em todos os testes feitos pela pesquisadora. O resultado foi uma aproximação maior entre os dois. Certo dia, ao receber carinho de Kátia, o macaco já adolescente não se conteve e ejaculou na moça. O ato foi visto como ofensivo pelos acadêmicos e o animal foi expulso do laboratório. A partir de então, ele foi levado para um zoológico em outra cidade do interior de São Paulo, onde deveria ficar em exposição em uma pequena jaula. Ali, ele seria alvo da observação das famílias de humanos, uma rotina para lá de entediante.
Na nova morada, o narrador, enfim, entendeu o sofrimento dos seus colegas animais. A falta de liberdade era o pior pesadelo que alguém poderia passar. Utilizando-se dos conceitos de Darwin e de Marx, ele passou a se identificar como um orangotango marxista darwinista, alguém que queria a revolução em respeito à evolução das espécies. Como consequência, esperava derrubar o sistema opressor do qual os animais eram subjugados. A revolta do orangotango começou com a morte de Fidel, gorila que era a estrela do zoológico e o único que não aceitava as imposições ditatoriais dos humanos. O carismático bicho foi morto por seus tratadores cruéis. Ao testemunhar tamanha barbaridade, o orangotango resolveu, enfim, colocar seu plano revolucionário em prática.
“O Orangotango Marxista” é um romance pequeno. Ele possui pouco mais de 110 páginas. É possível lê-lo tranquilamente em uma única tarde ou em duas noites consecutivas. Foi o que fiz neste comecinho de ano. Concluí integralmente a leitura desta obra na tarde de ontem, sexta-feira.
Como leitura de entretenimento, este novo livro de Marcelo Rubens Paiva é excelente. Ele possui muito humor, tem sacadas inteligentes e apresenta uma trama bem costurada. Para completar, ele faz uma crítica ácida à condição humana e aos hábitos modernos da nossa espécie. Por outro lado, o leitor mais experiente terá a sensação que já viu algo parecido em outros lugares (livros de outros autores e filmes antigos), além de ter a impressão de que há algumas fortes incoerências no discurso do narrador. Ou seja, apesar de ser um romance interessante, “O Orangotango Marxista” tem lá suas derrapadas.
O bom humor do texto está presente do início ao fim deste romance e é uma das marcas de Rubens Paiva, principalmente em suas crônicas publicadas há mais de quinze anos no jornal O Estado de São Paulo. O humor empregado pelo autor em sua trama é variado: ora é irônico e escrachado, ora é sutil e inteligente. A descrição do sexo praticado pelos homens, por exemplo, faz parte da primeira categoria, enquanto o ponto de vista político do protagonista enquadra-se mais no segundo tipo. Nos dois casos, o resultado é um inevitável riso.
Por falar no trabalho de Marcelo Rubens Paiva como cronista, temos aqui uma produção literária que conversa muito bem com este tipo de narrativa mais informal, direta e perecível. “O Orangotango Marxista” é um romance com fortes elementos das crônicas diárias dos jornais. Isso fica mais evidente quando notamos o quão preocupado está o autor em relatar a vida comum do homem moderno, dando ênfase aos seus dramas e aos seus comportamentos paradoxais. Impossível não se angustiar com as críticas à obesidade da população e ao vício pelos celulares, por exemplo. Como sou um apaixonado pelas crônicas, foi legal encontrar esse aspecto neste livro, de certa maneira um romance híbrido (formado, digamos, por 80% de prosa ficcional e 20% de narrativa das crônicas).
Ao mesmo tempo em que é muito bem-humorado, “O Orangotango Marxista” também possui um tom pessimista. A violência, as injustiças, as mazelas sociais, os crimes ecológicos e o descaso ambiental acabam muitas vezes se sobrepondo à ironia e à comicidade da história. Do ponto de vista do macaco que narra o romance, tanto a vida dos seus semelhantes (animais) quanto a existência dos seres humanos correm perigo frente ao comportamento caótico e insustentável das novas gerações de homens e mulheres. Este livro também pode ser encarado como um bom e original manifesto ecológico.
Ao mesmo tempo em que apresenta um texto leve e descontraído, Marcelo Rubens Paiva também acrescenta doses de filosofia e de análise sociológica à trama. As digressões filosóficas do narrador-protagonista enriquecem o romance e ajudam o leitor na compreensão da psicologia dessa inusitada personagem. Incrível. O macaco debate conceitos tipicamente humanos: amor, liberdade, razão, emoção e sentido da vida. Sem querer, o bichano questiona os valores centrais da identidade humana. Impossível não gostar desse paradoxo.
Só não considerei este livro como merecedor de estar na prateleira dos melhores trabalhos de Marcelo Rubens Paiva por dois motivos. Em primeiro lugar, há algo de déjà vu em seu enredo. Qualquer um que tenha lido “Um Relatório para a Academia”, de Franz Kafka, irá verificar as perigosas semelhanças entre as duas obras. O conto kafkiano de 1917 narra justamente a opressão humana do ponto de vista de um macaco que adquiriu as habilidades linguísticas dos homens. Colocar um animal como narrador fora das fábulas infantis também não é nenhuma grande novidade desde que Franz Kafka publicou, em 1915, sua angustiante novela “A Metamorfose” (Companhia das Letras). E o que dizer de um macaco que se apaixona por uma mulher? Para mim, isso é “King Kong” (1933), um clássico do cinema. E um símio que deseja promover uma revolução, hein? É muito “O Planeta dos Macacos” (1968) para o meu gosto.
O segundo desconforto que tive durante a leitura de “O Orangotango Marxista” foi sobre as contradições do relato do protagonista. Ora ele sabia em detalhes a vida dos humanos, ora não sabia aspectos banais, como uma palavra ou um termo mais exato. Como isso é possível? Ou a personagem havia realizado uma observação acurada da realidade humana ou não tinha condições para compreender aspectos corriqueiros da rotina dos homens. Posicionar a narrativa no meio termo me pareceu um tanto forçado, apesar de render algumas passagens bem engraçadas.
De maneira geral, entre um ou outro equívoco, “O Orangotango Marxista” é uma boa leitura. É legal ver os novos trabalhos de Marcelo Rubens Paiva sendo produzidos e lançados quase que anualmente. Apesar de ter gostado muito mais de “Ainda Estou Aqui” (Alfaguara), romance autobiográfico de 2015, e “Meninos em Fúria” (Alfaguara), outra narrativa autobiográfica de 2016, “O Orangotango Marxista” dá para o gasto (entenda-se: rende boas risadas e permite uma reflexão profunda e inteligente dos nossos hábitos).
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