[O sexteto musical toca Tarantella Napoletana. A plateia acompanha a canção batendo palmas. O apresentador, no centro do palco, atrás de sua mesa, esboça acompanhar a sincronia sonora. Porém, ele para, toma um gole de água de sua caneca e espera o encerramento da música, que não demora].
Darico Nobar: Boa noite, Brasil! O Talk Show Literário de hoje começou em ritmo italiano. Che Bello [fecha os dedos da mão direita, ergue o pulso e balança-o enfaticamente]! E para não perdermos o clima da terra do meu nonno e da minha nonna, vamos chamar ao palco um dos italianos mais antigos da literatura brasileira. Ele imigrou para o Brasil no início do século XX e mora, desde então, na cidade de São Paulo. Com vocês: Cav. Uff. Salvatore Melli! [O público aplaude o convidado enquanto ele caminha ao sofá posicionado ao lado da mesa do entrevistador].
Salvatore Melli: Buena sera! [Envergonhado, o senhor de barba rala e de cabelos brancos acena para a plateia em sinal de agradecimento à receptividade]. Ciao, Sr. Darico [entrevistado e apresentador se cumprimentam com um aperto de mãos]. Molto piacere in conoscerlo.
Darico Nobar: Ciao, seu Salvatore. Obrigado por vir ao nosso programa. Gostaria de começar perguntando como está o casamento de Adriano e Tereza Rita. Eles estão bem? Continuam casados?
Salvatore Melli: Una bellezza da vedere! Rita é una bravissima ragazza, dedicada, amorevole e trabalhadora. Não tinha como un matrimonio como este não dar certo, capisce? Driano ama moltissimo la sua principessa. [Acende um charuto]. Eles sono molto felizes.
Darico Nobar: Interessante! Achei que pudessem ter problemas com os sogros... Digo, com os pais de Tereza Rita. É sabido que eles não eram muito favoráveis ao casório da filha com o seu filho, né?
Salvatore Melli: Sì, principalmente il portoghese. No inizio, porca miseria, il moglie do conselheiro José Bonifácio parlava: “Filha minha não casa com filho de carcamano!”; e “Minha menina não namora com o palestrino da feira!”. Non solo se casou como Tereza Rita teve cinque carcamaninhos de mio Driano [apoia as costas no sofá e solta uma gargalhada que parece sair da barriga]. Quasi tutti estão lavorano con me na feira. Sono buene braços para o lavoro.
Darico Nobar: O Adriano continua como gerente da fábrica que o senhor montou com o conselheiro?
Salvatore Melli: Oh, no [balança o charuto para os lados indicando a resposta negativa]. A fábrica da Rua Barra Funda faliu há molto tempo. Quasi tutte negócios dos vecchi italiani já fecharam le porte. Não foi apenas a minha fábrica. As Indústrias Matarazzo, a Quitanda Tripoli Italiana, a oficina do Ugo, a G. Gasparoni & Filhos, o cafezal Santa Inácia, o Armazém Progresso de São Paulo, a Banca Francese ed Italiana per l'America del Sud e o Salão Mundial non esistono più. Un vero peccato!
Darico Nobar: O que aconteceu com sua fábrica?
Salvatore Melli: Uh, doutor, mi pare... mi pare que la società entre portoghese e italiani non pode funzionare. Acqua e vino non se misturam. Faccio negócio com brasileiro, até com ebrei, ma no faccio nunca mais società com il portoghese.
Darico Nobar: Por isso o senhor continua com a banca de batatas na feira?
Salvatore Melli: Certo. Ora nostras bancas estão espalhadas por tutta São Paulo. É una cosa di famiglia, cosa da una vera famiglia italiana, capisce? Non pode andare storto.
Darico Nobar: O senhor continua à frente dos negócios?
Salvatore Melli: No. Non sono più abbastanza grande per quello. Ora que cuida de tutto é o Driano, mio buon figlio. Ele está aqui oggi, seu Darico.
Darico Nobar: Onde? [Olha para a plateia procurando alguém]. Chame-o aqui, por favor. Gostaria de falar com ele também.
Salvatore Melli: Subito! Driano! [Olha para um rapaz sentado no auditório]. Vieni qui que o doutor quer parlarti. Andiamo! [O filho se levanta e vai até o palco].
Darico Nobar: Muito prazer. [Os dois se cumprimentam]. Sente-se ao lado do seu pai, Adriano. Aí mesmo. Estamos conversando um pouco sobre as coisas de sua família, sobre os negócios de vocês. Vamos falar agora um pouco sobre o local onde vocês moram. Diga-me, Adriano, São Paulo hoje é uma cidade muito diferente daquela que vocês conheceram no início do século XX?
Adriano Melli: Êta salame de mestre! Nasci e cresci em uma época em que as chaminés das fábricas apitavam. Os bondes bamboleavam. Os salões de dança eram um bolo tremelicante. A gurizada jogava bola de capotão no pavimento. As meninas de ancas salientes, umas tetéias, riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. Os professores da Faculdade de Direito citavam Rui Barbosa na escadaria para os transeuntes. O Palmeiras era Palestra e seu estádio se chamava Parque Antártica. Ser acendedor da Companhia de Gás e cobrador de lotação eram profissões respeitadas. Peixe se pegava no Rio Tietê porque o Pinheiros era muito longe. Assassinatos e crimes graves, quando aconteciam, eram notícias de primeira página nos diários. Carrocinhas de padeiro derrapavam nos paralelepípedos da Rua Sousa Lima. Passavam cestas para a feira do Largo do Arouche. Garoava na madrugada roxa.
Darico Nobar: Quanto saudosismo!
Adriano Melli: E falo mais, Darico. O povo pegava-se em discussão sobre qual dos dois era o melhor - Friedenreich ou Feitiço. Na Rua Oriente, a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro ou de casamento. Os chapéus enfeitavam os cavalheiros. Meninas enlaçadas passeavam na calçada. O lampião de gás piscava pra elas. A locomotiva fumegando no carrinho de mão apitava amendoim torrado. O Brodo passava cantando. Buick era automóvel da moda. Todo domingo tinha baile na Sociedade Beneficente e Recreativa do Bexiga. Por falar no bairro, o Armazém Progresso de São Paulo era célebre por causa dos seus anúncios ousados. Enterro era procissão. O Juventus da Mooca era clube de massa. E jogo de bocce era esporte sério, rendia reportagens na Gazeta Esportiva, que era ainda suplemento, não jornal.
Darico Nobar: Qual era o seu lugar favorito da São Paulo no início do século XX?
Adriano Melli: O Centro de São Paulo. A Rua Barão de Itapetininga era um depósito sarapintado de automóveis gritadores. As casas de modas despejavam nas calçadas as costureirinhas que riam, falavam alto, balançavam os quadris como gangorras. A Praça da República e o Largo Santa Cecília, atrás da igreja, eram roteiros dos enamorados aos domingos. No Largo Municipal, o pessoal evoluía entre as cadeiras do bar e as costas protofônicas de Carlos Gomes para divertimento dos desocupados parados aos montinhos.
Darico Nobar: Que lindo relato, Adriano! Suas palavras davam uma ótima ambientação para um romance histórico. Você já pensou em ser escritor, produzir livros?
Adriano Melli: Eu prefiro as matérias jornalísticas, Darico. Entre os jornais e os livros, opto pelo artigo de fundo ao prefácio. E entre os contos e as crônicas, sou mais o segundo.
Darico Nobar: Também adoro as crônicas e não passo um dia sem ler jornal. Acho que somos espécimes em extinção [os três homens no centro do palco riem]. Diga-me outra coisa, Salvatore. Por que muitos imigrantes italianos continuam falando sua língua natal mesmo já estando há décadas no Brasil?
Salvatore Melli: Per Bacco, doutor! Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem. Muitas palavras sono uguali. Portoghese e italiano sono línguas sorelle. Tutti paulistanos capiscono. No Brás, na Mooca, no Bexiga, na Barra Funda, na Pompeia, na Vila Romana, parlamos soli assim. Se o signore quiser, posso tentar cambiare. Io resto à sua disposição. Ma pense bem! Credo que os cariocas podem capire.
Darico Nobar: Sim, conseguimos entendê-lo perfeitamente, meu amigo. Todo brasileiro que se preze já fez um curso básico e informal de italiano ao assistir as novelas da Rede Globo e ao ouvir Peppino di Capri e a Rita Pavone. Não se preocupe. No meu caso, sou paulistano da Lapa. Nasci ouvindo e falando o paulistanês, bello!
Salvatore Melli: Pelo menos parlamos mezzo a mezzo - mezzo portoghese e mezzo italiano. Pior são os coreani e giapponesi da Liberdade, que non capiamo niente. Impossibile parlare com eles.
Darico Nobar: A língua natal é uma das principais referências culturais e sociais de um indivíduo. Não dá para abandoná-la completamente.
Salvatore Melli: Mi ricordo do amico Tranquillo Zampinetti, barbiere da Rua do Gasômetro. Conheceu o Zampinetti, mio caro signore?
Darico Nobar: Não pessoalmente. Apenas ouvi falar dele.
Salvatore Melli: Il barbiere Zampinetti tinha um desgosto, povero! Digusto patriottico e domestico. Lorenzo e Bruno, bambini ingrati, não queriam saber de parlare italiano. Non brincando. A casa dele era sempre in guerra. Zampinetti urlato com Lorenzo. “Stai attento que ti rompo la faccia, figlio d'un cane sozzaglione, che non sei altro!”. Porque taliano urla sempre, brasileiro parla. Só de sentire o pai, Lourenzo ficava brasileiro jacobino, de cantare o hino nacional com as mãos no cuore. Il ragazzo era il più irritante e rispose. “Pode ofender que eu não entendo!”. Cada surra che ho appena visto.
Darico Nobar: Depois de tantos anos no Brasil, o que o senhor acha que falta ao nosso país, seu Salvatore?
Salvatore Melli: La gente já parlava lá no Centro Político do Brás - do que la gente bisogna no Brasil, bisogna mesmo, é d'un buono governo, mais nada!
Darico Nobar: Concordo em número, gênero e grau, seu Salvatore. Pessoal, espero que vocês tenham gostado do programa de hoje [olha para a tela da câmera 3]. O episódio de hoje do nosso talk show foi uma homenagem aos ítalo-brasileiros de São Paulo.
Adriano Melli: Já acabou?! Nossa Senhora, como passou rápido.
Darico Nobar: Entrevista boa é assim – o tempo voa. Obrigado por terem vindo, seu Salvatore e Adriano.
Adriano Melli: Somos nós quem agradecemos, Darico.
Salvatore Melli: Addio a tutti. [Acena para a plateia, que aplaude os convidados].
Darico Nobar: Na semana que vem, voltaremos com mais uma entrevista ao vivo e exclusiva com uma grande personagem da literatura brasileira. Não percam os próximos episódios do Talk Show Literário, o melhor programa da televisão brasileira. Até lá!
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O Talk Show Literário é o programa de televisão fictício que entrevista as mais famosas personagens da literatura. Assim como ocorreu nas duas primeiras temporadas, neste terceiro ano da atração, os convidados de Darico Nobar, personagem criada por Ricardo Bonacorci, são os protagonistas dos clássicos brasileiros. Para acompanhar as demais entrevistas, clique em Talk Show Literário. Este é um quadro exclusivo do Blog Bonas Histórias.
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