“Bacurau” (2019) pode ter sido o filme brasileiro de terror mais comentado do ano, mas o melhor longa-metragem nacional deste gênero em 2019 é sem dúvida nenhuma “Morto Não Fala” (2019). Arrisco-me a dizer que esta produção rivaliza com “Border” (Gräns: 2018) como o melhor terror que vi nos cinemas de janeiro para cá. Se o filme sueco ganha em suspense, em criatividade e em ousadia narrativa, o brasileiro é campeão em amedrontar a plateia e em criar um clima permanente de desespero. Se você é do tipo (como eu) que gosta de ficar arrepiado(a) e de sentir muito medo na sala de cinema, este título é imperdível. Confesso que saí de sua sessão um tanto atordoado (isso é positivo, tá?).
Assisti a “Morto Não Fala” na última terça-feira, dia 12. Aproveitei a 20ª edição do Projeta Brasil da rede Cinemark, que exibe uma série de filmes nacionais por preço promocional, para colocar em dia as novidades do cinema brasileiro. Entre muitas comédias escrachadas, cinebiografias musicais, produções religiosas, documentários futebolísticos e filmes infantojuvenis de qualidade discutível, é possível achar algumas pérolas. Dos lançamentos recentes, “Morto Não Fala” é a melhor opção, ao lado de “Hebe - A Estrela do Brasil” (2019), “Simonal” (2019) e “Maria do Caritó” (2019). Dos clássicos disponíveis, “Carlota Joaquina, Princesa do Brasil” (1995) é a alternativa mais interessante.
Em cartaz no circuito nacional desde a segunda semana de outubro, “Morto Não Fala” foi dirigido por Dennison Ramalho, de “O ABC da Morte 2” (2013), e foi roteirizado pelo próprio diretor, por Cláudia Jouvin e por Jorge Furtado. No elenco estão Daniel de Oliveira (um dos mais premiados atores do cinema brasileiro nas duas últimas décadas), Fabiula Nascimento, Bianca Comparato, Marco Ricca, Cauã Martins e Annalara Prates. O filme foi produzido pela Globo Filmes com o apoio da produtora Casa de Cinema de Porto Alegre.
“Morto Não Fala” é baseado em um conto de Marco de Castro, jornalista que trabalhou por muito tempo como repórter policial em São Paulo. Das suas visitas frequentes ao IML (Instituto Médico Legal) no final da década de 1990 e no início dos anos de 2000, surgiu a ideia de produzir uma trama em que o médico legista tivesse o dom paranormal de conversar com os mortos. Em 2004, Castro publicou sua história no blog Casa do Horror. A trama caiu rapidamente no gosto de Dennison Ramalho, cineasta fanático por narrativas de terror. Contudo, a dupla precisou esperar por uma década e meia até a Globo Filmes apoiar a adaptação do conto em roteiro cinematográfico e, depois, transformá-lo em um longa-metragem.
O filme de Dennison Ramalho foi exibido no Festival do Rio e no Cinefantasy (Festival Internacional de Cinema Fantástico) deste ano. Além de sua estreia nos cinemas brasileiros, “Morto Não Fala” também foi lançado nas telas da Rússia e do México.
Nesta trama, Stênio (interpretado por Daniel de Oliveira) é o assistente do médico legista do IML da cidade de São Paulo. Trabalhando no período da noite/madrugada, o rapaz tem a função de limpar os corpos e prepará-los para o velório e o enterro do dia seguinte. Quando o médico solicita, ele também auxilia na realização das autópsias. Naquele ambiente fúnebre, Stênio guarda um segredo que nunca compartilhou com ninguém. Ele possui o dom paranormal de ouvir os mortos. Dessa maneira, enquanto faz seu trabalho no IML, ele conversa com os defuntos. Ouvindo os lamentos dos mortos, o assistente sabe de segredos impublicáveis de criminosos da cidade e de pessoas comuns da periferia paulistana.
Um dos que confidencia os pecados realizados em vida é Sujo, irmão de um perigoso traficante. O jovem diz que foi morto em uma emboscada encomendada por um bando rival. Por isso, Sujo pede que Stênio conte ao irmão criminoso quem foram os responsáveis pelo seu assassinato. Só assim, poderá ser vingado. Ciente de que não pode misturar os assuntos dos vivos com os dos mortos e não querendo se meter em confusão, Stênio recusa o pedido do falecido.
Casado com Odete (Fabiula Nascimento), com quem tem dois filhos (interpretados por Cauã Martins e Annalara Prates), Stênio vive em constante atrito com a esposa. Na verdade, é ela quem briga sempre com ele. Odete acusa o marido de ter um trabalho nojento, de não ganhar o suficiente e de obrigar a família a viver de forma precária na periferia. A animosidade entre o casal só aumenta quando um amigo de infância de Stênio morre. Na conversa no IML, o falecido confidencia que Odete traí Stênio com Jaime (Marco Ricca), o dono da padaria do bairro. O assistente de legista, então, passa a seguir a esposa e descobre a traição.
Com muita raiva de Jaime, Stênio tem uma ideia aparentemente genial para se vingar do homem que está transando com sua mulher. Ele sobe o morro para falar com o irmão de Sujo. Aí, ao invés de dedurar o bando rival pelo assassinato do irmão do traficante, conforme ocorreu de verdade, ele acusa o dono da padaria pelo crime. O irmão de Sujo e sua gangue partem ávidos para matar Jaime. O problema é que justamente na noite em que eles escolhem para cometer o assassinato, Odete está junto com o amante. Eles são mortos friamente no meio da rua, para horror dos vizinhos, amigos e parentes.
No dia seguinte, os corpos de Jaime e Odete são levados ao IML. Stênio tem uma nova discussão com a esposa. Ela não o perdoa por ter sido o responsável por sua morte. E promete vingança. É o início do horror na casa do assistente de legista. O espírito da mulher de Stênio passa a persegui-lo incansavelmente. Odete está com tanta raiva que não poupará nem os próprios filhos. Ela não aceita a morte e, principalmente, que sua família viva feliz na sua ausência.
Como um ótimo filme de terror, o principal mérito de “Morto Não Fala” está em assustar a plateia. Em quase duas horas de sessão, o clima de tensão e angústia é quase que constante. O público fica com os olhos grudados na tela e com o coração na mão na maior parte do tempo. Admito que cheguei a me arrepiar em algumas cenas mais fortes.
Outra característica positiva deste longa-metragem é que ele traz boas reviravoltas na trama. A história tem um belo roteiro (bem amarrado e redondinho) e apresenta um conflito extremamente original, principalmente na sua primeira metade. É verdade que depois, na metade final da produção, a criatividade dá lugar à clássica narrativa de terror: um espírito persegue a família indefesa em uma casa mal-assombrada. Acho que já vi isso um milhão de vezes. Mesmo com cenas manjadas de Poltergeist, de perseguições de almas penadas e de confrontos com corpos possuídos, o resultado é espetacular. A união de uma pegada mais ousada no começo com elementos convencionais do gênero no desfecho mostra-se acertadíssima.
Confesso que gostei dos efeitos especiais de “Morto Não Fala”. Como nunca vi um cadáver falar fora do cinema (e nem quero!), achei verossímeis (do ponto de vista visual/cinematográfico) as cenas em que os mortos conversam com o protagonista (a sensação de estranhamento é natural e é fruto mais da proposta ousada do enredo do que de possíveis equívocos na maquiagem e na inserção de elementos gráficos). Esse recurso ajuda substancialmente na criação do clima gore. Não faltam também sague, corpos em decomposição, cadáveres e órgãos por todos os lados. A fotografia do filme também é fundamental para a criação do clima de pavor. Filmado principalmente em ambientes fechados, quase claustrofóbicos, à noite, em takes próximos às personagens e com uma textura acinzentada, “Morto Não Fala” é uma produção bem acima da média.
Se você olhar exclusivamente para a narrativa de “Morto Não Fala”, encontrará algumas boas surpresas. Por exemplo, quase todas as personagens do filme são figuras esféricas. Isso se aplica até mesmo aos filhos de Stênio e Odete e aos colegas de IML do assistente de legista. Incrível descobrir essa riqueza por trás das pessoas retratadas nesta trama. Ninguém é totalmente bonzinho e ninguém é completamente ruim. Todos são falíveis e têm seus lados mais obscuros. Apenas Lara (interpretada por Bianca Comparato) é uma personagem plana. E essa característica é totalmente justificada (diria até mesmo que necessária) dentro da história.
A atuação dos atores merece nossos elogios. Daniel de Oliveira continua em uma fase exuberante. Se ele não for o principal ator brasileiro da atualidade, na certa estará entre os três melhores. Seu desempenho irretocável é acompanhado pelas ótimas e experientes Fabiula Nascimento e Bianca Comparato. Marco Ricca dá o tom certo para Jaime e os jovens Cauã Martins e Annalara Prates não comprometem (Martins chega até a surpreender positivamente em alguns momentos, roubando a cena). Gostei também do elenco de apoio. Várias personagens coadjuvantes entram e saem da trama o tempo inteiro e os atores secundários não prejudicam o ritmo e a narrativa da história.
O único aspecto que chama a atenção pelo lado negativo é o excesso de sotaque gaúcho dos atores coadjuvantes. Mais da metade desses profissionais veio evidentemente do Rio Grande do Sul. Vale lembrar que a história se passa em São Paulo. Aí o expectador se pergunta no meio da sessão: teria havido uma invasão gaúcha na capital paulista nos últimos anos?! Falo sobre isso com a tranquilidade de quem morou mais de um ano no Rio Grande do Sul e de quem adora a cultura, o povo e o sotaque gaúcho. Porém, em uma trama como esta, essa opção causa um ruído desnecessário. “Por que tantas personagens do Rio Grande?”, pode-se questionar o público mais atento (sem encontrar uma justificativa para isso dentro da própria história). A explicação passa longe do conflito ficcional. Como a produtora Casa de Cinema de Porto Alegre apoiou a produção da Globo Filmes, ela trouxe vários atores da sua cidade natal para gravar em São Paulo. Não teria sido melhor, então, ambientar o filme em Porto Alegre, hein? Aí faria mais sentido.
Apesar dessa pequenina derrapada, “Morto Não Fala” é um longa-metragem de terror espetacular. Prepare-se para viver fortes emoções. Se você gosta do gênero e aguenta o tranco, não pode perder esse título. O filme permanece sendo exibido em algumas salas de cinema da cidade de São Paulo. Como já faz mais de um mês que foi lançado, não deve permanecer muito tempo em cartaz. Por isso, corra para vê-lo. Vale a pena assisti-lo mesmo fora da promoção do Projeta Brasil.
Assista, a seguir, ao trailer de “Morto Não Fala”:
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