O discurso, o nono elemento da narrativa, é, de certa forma, uma extensão natural dos dois componentes anteriores: a narração e a linguagem. O discurso, segundo o estudo da narrativa, é a representação e/ou o registro das falas das personagens no contexto ficcional. Ele expõe as vozes individuais das pessoas (como elas se expressam e como se comunicam entre si) em uma história (GANCHO, 2014, p.37). Em outras palavras, o discurso é a forma escolhida pelo autor para marcar as expressões verbais das personagens (fala, interjeições, pensamentos, inquietações, resmungos, suspiros) no texto literário (MOISÉS, 2014, p. 143). É sobre esse tema que vamos discutir hoje na Teoria Literária, coluna do Bonas Histórias que estuda, nesta temporada, os elementos da narrativa.
Em um romance, é possível distinguir a fala do narrador da manifestação das demais personagens do enredo. Enquanto esta é estudada aqui, no discurso, aquela é investigada no item narrador (sétimo componente dos elementos da narrativa –apresentado nesta coluna em julho). Dessa maneira, há uma divisão clara entre o relato do narrador (às vezes, ele também é uma das personagens da trama) e a fala das demais personagens (GANCHO, 2014, p. 37).
Importante não confundir o discurso com a linguagem (item da narrativa debatido no mês passado). Enquanto o discurso mergulha nas estruturas de como as falas das personagens são registradas para o leitor, a linguagem considera outros componentes textuais (o tipo de código linguístico, o tipo de linguagem, o sentido da mensagem e as variantes linguísticas do idioma).
Além disso, não podemos confundir o termo discurso, aqui empregado, com a análise do discurso, disciplina da linguística voltada para a interpretação e a compreensão textuais (DUARTE & BOVO, 2014, p.8). Os conceitos da análise do discurso são fundamentalmente empregados quando a análise literária possui um escopo retórico e uma abrangência microscópica.
Existem três tipos de discurso que podem ser empregados pelo romancista em seu texto: o discurso direto, o discurso indireto e o discurso indireto livre (GANCHO, 2014, p. 37-44).
1. Discurso Direto:
O discurso direto é caracterizado pelo registro integral da fala da personagem no texto, sem que haja qualquer interferência do narrador ou uma interpretação por parte dele. Nesse caso, aquilo que foi dito na ficção é expresso literalmente na narrativa. O leitor tem acesso as palavras exatas que saíram das bocas das personagens.
Há várias maneiras de se utilizar o discurso direto em um romance. Uma delas é por meio do uso do travessão. Normalmente, o travessão é precedido de um verbo de elocução (dizer, falar, perguntar, retrucar, comentar) e a pontuação com os dois-pontos. Em outros momentos, principalmente em diálogos, as falas das personagens são registradas automaticamente após o travessão ou entre aspas, sem a necessidade do verbo e dos dois-pontos. Há também a possibilidade do verbo de elocução, assim como a citação da personagem que se manifesta, vir no meio da fala, separada por vírgulas ou por travessões.
No clássico infantil Alice no País das Maravilhas, do inglês Lewis Carroll, predomina-se o discurso direto. Repare como isso acontece na cena a seguir, quando a protagonista, Alice, passeia pelo jardim, já no mundo fantasioso onde caíra. Ela então se depara com três cartas de baralho, cujos nomes são os números que ostentam. As cartas colorem as roseiras do lugar, trabalhando ao mesmo tempo como pintoras e jardineiras:
Alice [...] aproximou-se para observar melhor e, assim que chegou perto dos jardineiros, ouviu um deles dizer:
- Cuidado, aí, Cinco! Não espirre tinta em cima de mim desse jeito!
- Não pude evitar - disse Cinco zangado - Foi o Sete que bateu no meu cotovelo.
Ouvindo isso, Sete levantou os olhos e falou:
- É isso aí, Cinco! Sempre pondo a culpa nos outros.
- É melhor você fechar a boca - aconselhou Cinco - Ontem mesmo ouvi a Rainha dizer que você deveria ser decapitado.
- Com que finalidade? - perguntou aquele que havia falado primeiro.
- Isso não é absolutamente do seu interesse, Dois! - respondeu Sete.
- É sim! É do interesse dele - disse Cinco - E eu vou lhe dizer: foi porque Sete levou para a cozinheira batatas de tulipa, ao invés de batatas de comer.
Sete jogou o pincel no chão e estava começando a dizer:
- Pois bem, de todas as coisas mais injustas... - quando seus olhos casualmente depararam com Alice, que os observava sentada. Ele se calou imediatamente e os outros a viram também. Juntos os três se curvaram com elegância, para cumprimentar Alice.
- Será que vocês poderiam me dizer, por favor - disse ela um pouco tímida -, por que estão pintando essas rosas? (2009, p. 91-93).
Mais recentemente, uma nova prática do registro do discurso direto passou a ser empregada pelos romancistas. Ela é marcada pela colocação das falas das personagens no meio do texto, sem que haja qualquer separação dessas palavras com as descrições das ações e os relatos do narrador. Um bom exemplo de autor que se vale desse recurso é o português José Saramago. No romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, as personagens conversam e agem sem qualquer sinalização explícita por parte do escritor de quem é o responsável por aquele discurso. Cabe ao leitor fazer essa separação/interpretação. Saramago utiliza-se apenas de vírgulas e de letras maiúsculas, quando julga necessário, para construir as frases.
No criativo e original romance Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, é possível ver algo parecido. Nessa cena, uma milícia repressiva procura e captura, pelas casas das cidades, crianças pequenas, pois elas são vistas como pessoas subversivas. Repare a forma como o discurso direto foi aplicado aqui:
Em grupos paravam diante das portas.
? Tem criança nesta casa.
. Tem.
? Quantos anos.
. Um.
. Traga (2001, p. 248).
2. Discurso Indireto:
O discurso indireto é caracterizado pela apresentação das falas das personagens por meio do narrador. É ele quem faz a mediação do que foi expresso originalmente e do que chega efetivamente aos olhos/ouvidos do leitor. Assim, há uma interferência do narrador, que interpreta ou julga a fala da personagem a partir do seu ponto de vista. O discurso indireto é marcado pelo uso das palavras do narrador em detrimento às palavras e expressões genuínas das personagens. Por isso, não é necessário o uso de aspas ou travessão.
O livro Os Sertões, clássico de Euclídes da Cunha que narra a Guerra de Canudos, é marcado pelo pouco uso dos diálogos. Quando eles acontecem, há o predomínio da utilização do discurso indireto. Afinal, trata-se essencialmente da descrição do jornalista Euclídes da Cunha, então correspondente do jornal O Estado de São Paulo, para os fatos ocorridos no final do século XIX no interior da Bahia. No trecho a seguir, é possível ver o uso recorrente do discurso indireto. Nessa cena, uma criança, com menos de nove anos, oriunda de Canudos, impressiona os soldados e os policiais com sua habilidade no manuseio das armas de fogo:
Observou, convicto, entre o espanto geral, que a Comblé não prestava [...]. Tomou-a; manejou-a com perícia de soldado pronto; e confessou, ao cabo, que preferia a manulixe, um clavinote de talento. Deram-lhe, então, uma Mannlicher. Desarticulou-lhe agilmente os fechos, como se fosse aquilo um brinco infantil predileto. Perguntaram-lhe se havia atirado com ela, em Canudos. Teve um sorriso de superioridade adorável (2010, p. 258).
3. Discurso Indireto livre:
O discurso indireto livre é um meio-termo entre os discursos direto e o indireto, apresentando um pouco das características dessas duas modalidades. Assim, ele utiliza-se de expressões e de palavras típicas das personagens (como feito pelo discurso direto), mas não deixa de inserir a mediação, a interpretação ou os julgamentos do narrador (como ocorre no discurso indireto).
Normalmente, o discurso indireto livre é usado para transcrever pensamentos ou falas ocorridas fora de diálogos, principalmente quando a personagem está sozinha ou se expressa para si mesma enquanto executa uma ação. A vantagem dessa modalidade de discurso é que se evita o emprego das palavras "que" e "se" (típicas do discurso indireto), além da exclusão do verbo de elocução.
O romance Vidas Secas é pontuado pela presença do discurso indireto livre. No trecho a seguir, é possível notar como Graciliano Ramos utilizou essa modalidade discursiva, misturando as palavras ditas pelas personagens com palavras escolhidas pelo narrador para pontuar as falas. A cena em questão ocorre em uma cela prisional, após Fabiano, o protagonista, ter sido detido injustamente por um policial:
Fabiano ouviu o falatório desconexo do bêbado, caiu numa indecisão dolorosa. Ele também dizia palavras sem sentido, conversava à toa. Mas irou-se com a comparação, deu murradas na parede. Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Quem mal fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando como escravo. Desentupia o bebedouro, consertava as cercas, curava os animais - aproveitava um casco de fazenda sem valor. Tudo em ordem, podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? (1982, p. 35-36).
No próximo mês, será a vez de analisarmos, na coluna Teoria Literária, o décimo elemento da narrativa: a textualidade. Não perca as novidades de novembro do Bonas Histórias.
Bibliografia:
BONACORCI, Ricardo. Análise Literária dos Romances de Rubem Fonseca - Investigando a Nova Literatura Brasileira. Projeto de Iniciação Científica. Varginha: Centro Universitário do Sul de Minas (UNIS-MG), 2019.
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12a ed. São Paulo: Global, 2001.
CARROLL, Lewis. Aline no País das Maravilhas. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
DA CUNHA, Euclídes. Os Sertões. Volume II. Coleção Abril Clássicos. São Paulo: Abril, 2010.
DUARTE, Elaine & BOVO, Ana Paula. Guia de Estudo Análise do Discurso. Varginha: GEaD-UNIS-MG, 2014).
GANCHO, Cândida Vilares. Como Analisar Narrativas. 9a ed., Série Princípios, São Paulo: Ática, 2014.
MOISÉS, Massaud. A Análise Literária. 19a ed. São Paulo: Cultrix, 2014.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 1982.
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