A terceira obra de Noah Gordon que analisamos neste Desafio Literário é "O Físico" (Rocco). Neste romance histórico, o escritor norte-americano mostrou a força de seu trabalho ficcional ao construir uma trama emocionante sobre Robert Jeremy Cole. O rapaz inglês do século XI, órfão e pobre, era obcecado pela vontade de se tornar médico, algo quase impossível na Europa Medieval. “O Físico” é até hoje o maior sucesso de Gordon. Best-seller internacional, a publicação caiu rapidamente no gosto dos leitores europeus, principalmente na Espanha, Alemanha e Itália, onde vendeu milhões de cópias. Curiosamente, o livro demorou para deslanchar nos Estados Unidos, terra natal do autor (suas vendas não ultrapassaram os 10 mil exemplares nos primeiros anos).
Lançado em 1986, “O Físico” é o quarto livro do norte-americano e o primeiro título da “Trilogia da Família Cole”. Empolgado com o êxito comercial e de crítica desta obra na Europa, Noah Gordon resolveu dar continuidade a saga da família de seu mais famoso protagonista. “Xamã” (Rocco), publicado em 1992, e “A Escolha da Dra. Cole”, de 1995, são, respectivamente, a segunda e terceira parte da trilogia dos Cole. Não à toa, esses três são os títulos mais populares do autor.
Há dez anos, os direitos comerciais de “O Físico” foram vendidos para uma produtora cinematográfica alemã. Assim, em 2013, chegava às telonas o longa-metragem homônimo com a história de Robert J. Cole. Com cinco milhões de espectadores, o filme do diretor Philipp Stölzl teve boa bilheteria principalmente na Europa. Mais uma vez, essa história foi ignorada nos Estados Unidos: a produção alemã não chegou a entrar nos cinemas norte-americanos, sendo lançada no país apenas recentemente em DVD.
Em 2016, um musical inspirado nessa trama foi lançado na Espanha. “El Médico El Musical” foi uma das peças mais premiadas no país ibérico nas últimas décadas. Para se ter uma ideia do seu êxito, o musical recebeu 11 prêmios da Broadway World, uma espécie de Oscar do setor, entre eles o de Melhor Musical da temporada. “El Médico El Musical” também foi um grande sucesso de público: com filas gigantescas para comprar seus ingressos e casa sempre cheia por alguns anos.
No Brasil, a publicação da versão nacional deste livro de Noah Gordon no final da década de 1980 foi marcada por erros crassos em sua tradução. O maior deles está justamente em seu título. A versão original da obra se chama “The Physician”, que em inglês significa “o médico”. Por isso, em Portugal, o romance foi nomeado corretamente como “O Médico de Ispahan”. Aí, o tradutor brasileiro, Aulyde Soares Rodrigues, inventou de colocar o título de “O Físico” (teria ele caído em um falso cognato?!). A polêmica estava criada! Afinal, não há nenhum físico (nem citação a essa palavra) em quase seis centenas de páginas do romance. Depois da enxurrada de críticas, a editora brasileira responsável pela tradução até tentou justificar o injustificável: o físico seria a forma como os médicos medievais eram chamados em sua época. A explicação não colou. Não há registros históricos sobre essa versão alternativa. Ou seja, a emenda saiu pior do que o soneto.
Para piorar mais o caso, o subtítulo do livro ainda estampa: “A epopeia de um médico medieval”. Não é preciso ser especialista em literatura para saber que epopeia é um gênero literário bem distinto do romance. O correto aqui seria o uso do termo “saga” ao invés de “epopeia”. Por essas, a tradução do “O Físico” para o português brasileiro se tornou uma das maiores derrapadas da literatura nacional. Na certa, o leitor pensa: “Se logo na capa temos tantos erros de tradução, o que não devo encontrar dentro do livro...?!”. A preocupação é totalmente válida!
O enredo de “O Físico” começa em Londres, em 1021. Robert Jeremy Cole, chamado simplesmente de Rob, é um menino de 9 anos com um dom especial. Na Inglaterra medieval, ele se torna órfão de mãe e pai. Momentos antes dos pais morrerem, o garoto descobre que eles não vão sobreviver. Ao tocar as mãos nas pessoas, Rob sente se eles vão viver ou não. O dom inexplicável assusta o menino. Porém, o protagonista não tem tempo para compreender o que está acontecendo com ele. Assim que os pais morrem, sua família é dividida. Cada irmão é entregue para uma pessoa diferente. No caso de Robert J., ele é dado para Henry Croft, um barbeiro-cirurgião solteiro que viaja pelo país vendendo tônicos fajutas, realizando pequenos shows de mágica e malabares e tratando os doentes pobres. Barber, como o barbeiro-cirurgião é mais conhecido, precisa de um ajudante e Rob é escalado para tal. Assim, começam as viagens do menino pela Inglaterra.
Em nove anos ao lado de Barber, Rob aprende tudo sobre o ofício do amigo. Quando o Sr. Croft morre, em 1030, Robert J. herda automaticamente a carroça, o cavalo e os instrumentos de trabalho do cirurgião-barbeiro. Aos 18 anos, ele passa a trabalhar sozinho. O que poderia representar algo empolgante para o jovem acaba se transformando em uma profunda angústia. Sem conhecer à fundo a medicina, Rob se inquieta por não resolver os casos da maioria dos seus pacientes. A função de um cirurgião-barbeiro é, muitas vezes, ludibriar seus clientes ou, no máximo, aplacar um pouco a sua dor. Por isso, ele acalenta o sonho de se tornar médico de verdade, o profissional que realmente cura as doenças.
Com essa ambição, o rapaz faz uma longa jornada até Ispahan, na Pérsia. Lá há uma das melhores escolas de medicina do mundo, a Academia de Medicina de Ispahan. Na viagem que dura quase dois anos, Robert J. conhece Mary Margaret Cullen, filha de um criador de ovelhas escocês. Os dois se apaixonam na caravana que os leva da Germânia até Constantinopla. Mesmo sabendo que Mary é a mulher de sua vida, o rapaz não muda seus planos e segue sozinho, depois de Constantinopla, até seu destino. A vontade de se tornar médico é maior do que o anseio de se casar.
Uma vez em Ispahan, Rob descobre que não será fácil ser aceito na Academia. Para ingressar como estudante na tradicional instituição árabe, Rob precisa se passar por hebreu (a escola não aceita cristãos, apenas muçulmanos e judeus). Dessa forma, o jovem aprende tudo o que precisa da língua, da religião, da vestimenta, da alimentação e dos hábitos dos hebreus. Além disso, ele passa a se apresentar como Jesse ben Benjamin. Seu disfarce parece infalível.
Entretanto, mesmo com tudo isso, Jesse não é aceito na escola. É preciso ter a indicação de um ex-aluno para entrar no curso de medicina. Obviamente, o protagonista não conhece ninguém com essas características. Ao invés de desanimar, o inglês arruma coragem para desafiar as tradicionais regras da instituição que almeja adentrar. Será preciso muita ousadia e correr muitos riscos para ser aceito como estudante de medicina em Ispahan. Esta é a saga de Robert Jeremy Cole/Jesse ben Benjamin atrás do sonho de se tornar médico e de compreender o dom de prever se seus pacientes viverão ou morrerão através de um toque com as mãos.
Com 592 páginas, “O Físico” é dividido em sete partes (são 81 capítulos ao todo). Trata-se, obviamente, de um romance parrudo, que exige fôlego do leitor. Esta é a obra mais volumosa de Noah Gordon que vamos analisar neste mês no Desafio Literário. Precisei de três dias para concluir esta leitura. E saiba que esta história é realmente excelente, o que nos atrai a continuar grudados nas páginas do livro. Sem dúvida nenhuma, esta é uma das melhores publicações que li neste ano. Se eu já havia gostado muito de “O Rabino” (Rocco) na semana passada, confesso ter adorado, agora, “O Físico”. Se o primeiro é um ótimo romance, esta obra que estamos comentando hoje é ainda melhor: uma narrativa inesquecível, um típico drama sobre a formação do herói.
O que chama a atenção logo de cara em “O Físico” é a construção do ambiente/contexto medieval, época em que a trama se passa. A composição histórica feita por Noah Gordon é na maior parte das vezes muito bem-feita. As riquezas de detalhes sobre a vida nas cortes, o cotidiano das populações simples da Europa e do Oriente, a medicina medieval, os choques religiosos e as particularidades de cada crença são realmente impressionantes. A recriação do século XI é digna de intermináveis elogios. Na certa, o escritor norte-americano precisou realizar uma longa pesquisa histórica para chegar a este resultado.
A sensação deixada pelo romance é que várias de suas personagens são figuras verídicas (outra prova de excelência do trabalho ficcional de Gordon). Entretanto, apenas duas personagens do romance são efetivamente verídicas: Ibn Sina e Al Juzjani. Todas as demais são criações ficcionais. Há também detalhes pitorescos da rotina medieval, como o Jogo do Xá (uma espécie de xadrez persa), das modalidades esportivas típicas da realeza árabe (o principal deles é um que se parece com o polo, mas é muito mais violento) e das diferenças absurdas de desenvolvimento tecnológico, médico, humano e social do Ocidente (muito atrasado) e do Oriente (bem avançado).
Como já havia acontecido em “O Rabino” e “O Diamante de Jerusalém” (Rocco), “O Físico” é um romance ao estilo road story. O protagonista está sempre viajando. No começo, sua peregrinação é pela Grã-Bretanha como auxiliar de um barbeiro-cirurgião. Depois, ele parte para uma jornada intercontinental. Uma vez estabelecido em Ispahan, Rob continua viajando pelo Oriente Médio. O médico visita boa parte da Pérsia. No fim do livro (cuidado: aí vai um spoiler!), ele e sua família realizam uma nova excursão intercontinental. Esses constantes deslocamentos dão dinamismo e graça à trama.
A base do conflito deste livro é o choque religioso. Cristãos, judeus e muçulmanos até conseguem conviver minimamente, mas suas diferenças de crenças, de cultura e de hábitos impossibilitam a união saudável e harmônica entre eles. A impressão é que cada nuance religioso é motivo para muito preconceito e constante desavença. Não apenas as três religiões parecem se odiar, mas dentro delas há intrigas e ressentimentos. Por exemplo, os católicos ligados à Igreja Romana não se bicam com os integrantes da Igreja Ortodoxa. Os judeus e os muçulmanos também possuem, respectivamente, diferentes níveis de crença, que muitas vezes se traduzem em problemas internos e até mesmo em conflitos armados no âmago da própria religião. Uma coisa parece ser consenso: todos eles odeiam os ateus.
Uma grande diferença desta obra de Noah Gordon para as demais do autor norte-americano é que o judaísmo aqui é abordado por uma perspectiva diferente. O protagonista é um católico e não um hebreu. Ou seja, a visão sobre o judaísmo é mais externa do que interna (uma novidade na literatura de Gordon). Rob J. só conhecerá a crença e as tradições judaicas quando se tornar um adulto. E ele irá mergulhar nessa religião quando precisar se passar por um judeu. Além disso, há um aprofundamento nas particularidades do catolicismo e do islamismo. Não à toa, o protagonista acaba estudando não apenas o Torá como também o Novo Testamento e o Alcorão.
Como não poderia ser diferente, a Idade Média é retratada como um período extremamente violento e recheado de intolerâncias (políticas, sociais, religiosas e ideológicas). Isso é visualizado em aspectos banais do dia a dia das pessoas, como no lazer e no sexo. O esporte preferido do Ala Xá é, não por acaso, uma mistura de polo com futebol americano. Os jogadores muitas vezes saem seriamente feridos das partidas. E o sexo é normalmente uma prática brutal e de dominação, pouco relacionada ao amor entre duas pessoas.
Apesar de ser um romance excelente, “O Físico” possui alguns problemas de ordem narrativa. O principal deles, algo já detectado nos livros anteriores de Noah Gordon, é a respeito dos equívocos do foco narrativo. O narrador em terceira pessoa fica a maior parte do tempo grudado ao protagonista, Rob J. Cole. Até aí tudo bem. Porém, esse narrador gosta de abandonar a personagem principal e passa a acompanhar, em muitas oportunidades, outras personagens. Isso é um típico erro de foco narrativo. Essa mania de Gordon incomoda quem tem o mínimo de conhecimento sobre a teoria da narração ficcional.
Para piorar o quadro, o autor tem a mania de contar a vida quase inteira de várias personagens que vão surgindo no meio da trama. Essas longas digressões chegam a durar capítulos inteiros. Isso, por exemplo, acontece com Henry Croft. Achei desnecessárias essas imersões em figuras que não atuam como protagonistas do livro. Qual a utilidade de construir em detalhes a retrospectiva histórica de personagens secundárias? Juro que não sei.
Há também algumas passagens e cenas inverossímeis em “O Físico”. É difícil acreditar quem em pleno século XI, os cidadãos humildes sabiam o número de habitantes de cada cidade. Para isso acontecer, eram necessários a realização constante de censos populacionais e o estabelecimento de uma imprensa atuante (dois elementos inexistentes na Idade Média), além de um povo educado e intelectualizado. Por esses mesmos motivos, me parece quase inviável os súditos da época saberem os detalhes do que ocorria dentro das paredes dos palácios reais e os pormenores da geopolítica da época. E o que dizer da menção ao câncer, uma doença debatida corriqueiramente entre os médicos persas? Difícil de acreditar.
Apesar de um ou outro tropeço narrativo, “O Físico” ainda sim é uma obra excelente. Para quem gosta de sagas históricas, esse livro é imperdível. Noah Gordon pode não ser um escritor impecável (e qual autor é?), mas seus méritos superam infinitamente suas falhas (e dos seus tradutores). Terminei essa leitura realmente encantado com seu conteúdo. Não por acaso, este romance conquistou tantos admiradores pelo mundo e ganhou adaptações para o cinema e para o teatro.
Na próxima terça-feira, dia 18, retorno ao Blog Bonas Histórias para analisar o quarto livro do Desafio Literário de junho. A próxima obra de Gordon que vamos discutir é "Xamã" (Rocco), justamente o romance publicado em 1992 que dá continuidade a saga da família Cole. Não perca os demais posts da análise da literatura de Noah Gordon, um dos mais bem-sucedidos escritores norte-americanos da atualidade.
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