Li, neste final de semana, “Sejamos Todos Feministas” (Companhia das Letras), o primeiro ensaio feminista de Chimamanda Ngozi Adichie. A autora nigeriana publicou, anos mais tarde, um segundo livro nesta linha: “Para Educar Crianças Feministas” (Companhia das Letras). Com essas duas obras, Adichie se tornou uma das mais importantes porta-vozes do movimento feminista tanto na África quanto nos Estados Unidos. Por isso, muitos leitores conhecem a escritora mais como uma engajada militante do que como uma romancista de talento. Esse tipo de visão está totalmente equivocado!
Como vimos até aqui no Desafio Literário, o trabalho ficcional de Chimamanda Ngozi Adichie é espetacular. “Hibisco Roxo” (Companhia das Letras), “Meio Sol Amarelo” (Companhia das Letras), “No Seu Pescoço” (Companhia das Letras) e “Americanah” (Companhia das Letras), obras analisadas neste mês no Bonas Histórias, são impecáveis e merecem ficar em primeiro plano em qualquer debate. Para mim, Chimamanda Ngozi Adichie está mais para Virginia Woolf do que para Simone de Beauvoir.
Conhecendo o talento literário de Adichie, iniciei a leitura de “Sejamos Todos Feministas” com uma elevada expectativa. Best-seller internacional, este livro é apontado por muita gente como um dos principais títulos do feminismo moderno. Admirador da causa, não resisti à tentação de conhecer seu conteúdo. Acreditei que encontraria um ponto de vista original, sensível e sagaz sobre esse tema. E qual foi minha surpresa ao ficar profundamente decepcionado com o que encontrei. “Sejamos Todos Feministas” é uma das publicações mais fraquinhas que li nos últimos anos. Chega a ser assustador saber que há uma multidão que admire este livro e que o coloque como leitura de cabeceira. Meu Deus, pare o mundo que eu quero descer!
O principal problema de “Sejamos Todos Feministas” está na maneira rasa, preconceituosa e restrita como o assunto é conduzido pela autora. Acreditei que Chimamanda Ngozi Adichie fosse falar mais de feminismo do que de machismo (esses temas estão intimamente correlacionados, mas ainda sim são totalmente diferentes). E achei também que, uma vez abordando o machismo, a autora fosse questioná-lo do ponto de vista moderno, do século XXI. Porém, ela fala olhando para sociedades onde a mulher não tem qualquer representatividade social. A impressão é que discutimos esse problema sob a ótica medieval. Ou seja, não poderia haver um discurso mais retrógado e incompatível com a realidade das cidades mais cosmopolitas do planeta. É uma pena! Juro que esperava muito mais de uma escritora tão lúcida, bem articulada e profundamente inteligente.
Publicado em 2014, “Sejamos Todos Feministas” é uma adaptação de uma palestra homônima que Adichie ministrou na Nigéria em dezembro de 2012. Filmado, o discurso da autora viralizou na Internet poucas semanas depois. O vídeo já tem mais de 2 milhões de acessos. Beyoncé ficou tão encantada com as palavras de Chimamanda Ngozi Adichie que resolveu musicá-la. O resultado é a canção “Flawless”. Barack Obama, na época presidente dos Estados Unidos, convidou a escritora para um bate-papo sobre racismo e empoderamento feminino. Agora, você entendeu o porquê da minha alta expectativa, né? Este livro se tornou um ícone pop, admirado por estrelas de primeira grandeza da política e do show business norte-americano.
Com apenas 64 páginas, “Sejamos Todos Feministas” é um livretinho. Seu tamanho reduzido foi o primeiro choque negativo que tive. “Como um assunto tão importante pode se limitar a tão poucas páginas?”, pensei com meus botões. É possível ler esta obra em menos de 40 minutos (levei meia hora para concluí-la e li tudo em uma batida só). Na introdução, Adichie explica o convite feito pelo irmão e pelo melhor amigo para realizar a palestra (que ela não pôde recusar). Depois, ela fala com orgulho da sua condição de feminista inveterada. Na sequência, a autora aponta os vários episódios de machismo que viu ou vivenciou desde que era pequena. E, por fim, ela exalta a importância do empoderamento feminino.
Diante desse enredo, fica até difícil criticar uma publicação tão politicamente correta como esta, né? Contudo, apesar de saber que serei duramente (e talvez até eternamente) criticado pelas feministas mais reacionárias, não posso omitir minha insatisfação. Eu li este livro com a promessa de ver “um ensaio preciso e revelador” que trata do “significado de ser feminista no século XXI” e que justifica o porquê “o feminismo é essencial para libertar mulheres e homens” (trechos entre aspas foram extraídos da orelha da obra). E não foi isso que encontrei. Pelo contrário. O feminismo de Chimamanda Ngozi Adichie é mais século XIX do que anos 2000.
Ao invés de falar do machismo que vivenciou nos Estados Unidos, o país mais poderoso do mundo e que exporta seu estilo de vida para o restante do planeta, ou que presenciou na Europa durante suas viagens, a escritora se limita a colocar o dedo nas feridas da sociedade nigeriana, uma das mais retrógradas do planeta. É como se uma iraniana reclamasse da situação feminina no mundo usando como referência o que acontece no país dos Aiatolás. “Como assim?!”, nos perguntaríamos indignados. A vida de uma mulher no Irã é, ainda bem, muitíssimo diferente da de uma mulher nos Estados Unidos, no México, no Brasil, na Noruega ou no Japão. O machismo de lá é diferente do de cá. Infelizmente, a Nigéria é uma nação, do ponto de vista das mulheres, mais próxima às ditaduras e às monarquias muçulmanas do que ao mundo ocidental.
Vejamos, então, se o país africano não está mais próximo das sociedades medievais do que do mundo moderno. Segundo Adichie, o acontecimento mais importante da vida de suas conterrâneas ainda é o casamento. Uma vez casadas, elas devem cuidar da casa e dos filhos. Trabalhar fora nem pensar. Sexo antes do matrimônio é pecado. Mulher desacompanhada não entra em restaurantes, bares, hotéis e casas noturnas. Em muitas regiões, nem estudar elas podem. Sejamos honestos: você imagina esta rotina hoje em dia para uma jovem de 20 ou 30 anos em qualquer país ocidental? Difícil, né?
Os casos trazidos em “Sejamos Todos Feministas” são de um machismo extremo. Por isso, o feminismo que a autora prega me parece ultrapassado. A maioria dos episódios que ela relata não acontecem com tanta frequência nas sociedades mais arejadas: guardador de carro não agradece a gorjeta dada pela mulher porque aquele dinheiro não teria sido ganho por ela; professora não convoca meninas para serem monitoras de classes; garçons não saúdam as mulheres, só os homens nos restaurantes; segurança de hotel acha que todas as mulheres desacompanhadas são prostitutas; mulher não pode ter uma carreira porque acaba competindo com o marido; etc. Isso tudo soa tão século XIX, tão primeira metade do século XX.
Nem por isso, o machismo desapareceu no ocidente. Ele está lá sim, senhor. Isso é evidenciado, por exemplo, nos menores salários recebidos pelas mulheres, no baixo índice de mulheres nos cargos de direção, na maior quantidade de horas que elas passam realizando trabalhos domésticos e na epidemia de feminicídios que alguns países estão vivenciando (o Brasil é um deles). Adichie fala sobre isso? Não! Quando muito, ela tangencia o assunto. Ela prefere discorrer sobre o tabu da virgindade para as mulheres solteiras, falar da importância de não se almejar apenas um bom matrimônio, aconselhar sobre a necessidade de se completar os estudos e apontar para a necessidade de se ter um trabalho remunerado fora de casa. Coisas tão óbvias, mas tão óbvias que me parece surpreendente o livro despertar a atenção nos leitores ocidentais. Se realizar essas coisas banais da vida moderna é ser feminista, felizmente já vivemos um feminismo pleno em grande número de cidades da Europa e nos Estados Unidos.
Contaminada com essa visão antiga e extremamente preconceituosa da sociedade nigeriana, Chimamanda Ngozi Adichie comete grandes derrapadas. Em determinada passagem do ensaio, ela fala: na adolescência, os garotos nigerianos roubam dinheiro dos pais porque tem que pagar sozinhos a conta do restaurante quando saem com as garotas (?!?!?!). Então, se a conta fosse dividida esse problema não aconteceria?! Logo no início do livro, a escritora se diz uma “feminista feliz e africana que não odeia homens e que gosta de usar batons e salto alto para si mesma e não para os homens” (?!?!?!). Então quer dizer que a maioria das feministas são infelizes, brancas, odeiam os homens, não se arrumam e não tem autoestima?! Para completar a coletânea de maluquices, na parte final da obra, há a insinuação de que as mulheres gastam mais tempo se arrumando por causa do machismo (?!?!?!). Precisa ter estômago para ouvir tanta besteira.
Por outro lado, Adichie acerta em cheio ao comentar que os homens normalmente não veem o machismo da sua sociedade e de seus próprios comportamentos. Também acerta ao apontar os medos e as inseguranças deles para com o feminismo. E lista alguns pontos preocupantes na criação de meninos e de meninas que só agravam a cultura da desigualdade de gêneros. É uma pena que esses elementos mais sagazes fiquem restritos a um pedaço pequeno do texto e que não sejam tão bem explorados.
“Sejamos Todos Feministas” é um ótimo livro para quem vive em sociedades de machismo 1.0 (Irã e países muçulmanos que emulam os hábitos medievais) e de machismo 2.0 (Nigéria e muitas nações africanas que ainda são fortemente patriarcais). Agora, dizer que este título é leitura fundamental para quem vive em sociedades de machismo 3.0 (países latino-americanos) e de machismo 4.0 (Estados Unidos e Europa) me parece um absurdo (note, que, infelizmente, não há sociedade isenta de machismo). Adichie fala única e exclusivamente para suas conterrâneas. O texto deste ensaio não tem a força que imaginei para representar o drama vivenciado atualmente por milhões de mulheres nos centros mais cosmopolitas do planeta.
Minha grande frustração em relação a “Sejamos Todos Feministas” não diminui meu apreço pela literatura de Chimamnda Ngozi Adichie. A nigeriana continua sendo uma das grandes autoras da ficção contemporânea. Curiosamente, ela fala mais e melhor sobre alguns problemas sociais em seus romances e em seus contos do que em seus ensaios. É algo parecido ao que constatei no portfólio de Lya Luft, para ficarmos com um exemplo brasileiro, e de Xinran, um exemplo internacional.
No próximo sábado, dia 25, retornarei ao Desafio Literário para comentar “Para Educar Crianças Feministas” (Companhia das Letras), o segundo ensaio feminista da escritora nigeriana. Minha curiosidade é saber se Adichie irá cometer os mesmos equívocos de “Sejamos Todos Feministas” ou se trará uma visão mais moderna e plural do feminismo e do machismo. Essa resposta estará aqui no Bonas Histórias em quatro dias. Até lá!
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