O quarto livro deste Desafio Literário é “Americanah” (Companhia das Letras), o maior sucesso comercial de Chimamanda Ngozi Adichie. É verdade que antes da publicação desta obra a escritora nigeriana já havia conseguido encantar a crítica literária. Suas três narrativas anteriores, “Hibisco Roxo” (Companhia das Letras), “Meio Sol Amarelo” (Companhia das Letras) e “No Seu Pescoço” (Companhia das Letras), receberam vários prêmios internacionais e colocaram o nome da autora como um dos principais de sua geração. Contudo, Adichie ainda não era uma artista best-seller capaz de vender milhões de exemplares nas livrarias. Este patamar ela só alcançou com “Americanah”. O romance sobre o drama amoroso de uma imigrante nigeriana tornou-se um grande sucesso de vendas nos Estados Unidos e, depois, na Europa. Várias personalidades famosas como Beyoncé e o ex-presidente Barack Obama não se cansaram de expressar sua admiração por “Americanah” e pelo trabalho de Chimamanda. Era o início da fase dourada da carreira de Adichie.
Além do êxito junto aos leitores, “Americanah” também recebeu elogios e prêmios da crítica literária. O romance foi considerado pelo jornal New York Times como uma das dez melhores publicações daquele ano. O livro também conquistou o National Book Critics Award na categoria Melhor Ficção. Esta é a principal honraria literária conquistada por Chimamanda Ngozi Adichie até agora. Para completar, recentemente os direitos de adaptação desta obra para o cinema e para a televisão foram vendidos para Lupita Nyong’o, atriz vencedora do Oscar em 2014. As gravações da versão cinematográfica da história de Adichie já estão rolando e a previsão de lançamento do filme é para o ano que vem.
Publicado em maio de 2013, “Americanah” não apenas alcançou o reconhecimento do público e da crítica como também se tornou um ícone cultural contemporâneo. Chimamanda Ngozi Adichie aborda sabiamente em sua narrativa muitas questões relevantes dos tempos atuais: migração interplanetária, racismo, empoderamento feminino, desigualdade social, diferenças étnico-religiosas, choque cultural, corrupção nos países subdesenvolvidos e busca pela identidade perdida diante de tantas mudanças recentes. A força dramática desta história e de seus protagonistas é tanta que muito possivelmente estamos diante de um futuro clássico literário. Não me surpreenderia se daqui a dez, vinte ou cinquenta anos as pessoas ainda estiverem comprando esta obra nas livrarias.
O enredo de “Americanah” começa com a ida de Ifemelu ao cabelereiro. A protagonista é uma nigeriana da etnia igbo que vive há treze anos nos Estados Unidos. Ela foi bolsista da Universidade de Princeton e atualmente trabalha como blogueira. “Observações Diversas sobre Negros Americanos (Antigamente Chamados de Crioulos) Feitos por Uma Negra Não Americana” é o famoso blog de Ifemelu que trata do comportamento da sociedade norte-americana em relação às pessoas negras. Sim, esse título gigantesco é o nome do blog! Ifemelu mora há três anos com Blaine, um professor universitário de Yale. O casal mora em New Haven. Contudo, a moça é apaixonada por Obinze, seu primeiro namorado. Obinze é um rico empresário de Lagos. Ele é casado com Kosi e tem uma filha pequena. Ifemelu e Obinze não se veem desde que ela deixou a Nigéria e foi morar nos Estados Unidos. Ele permaneceu em seu país natal. A distância afastou os antigos namorados.
As recordações e os sentimentos sobre o antigo namorado vêm com força agora que Ifemelu está de passagem comprada para a Nigéria. Ela decidiu abandonar a vida na América e regressar em definitivo para Lagos. Por isso, ela vai ao cabelereiro. Ela quer estar linda quando chegar à sua terra natal. Será que ela reencontrará Obinze? Como ele irá se comportar com a sua volta? O relacionamento deles será igual ao que foi quando ela partiu? Será que Blaine abandonará também o sonho norte-americano e irá morar com ela na Nigéria? Se isso acontecer, como ela fará em relação ao que sente por Obinze? Essas dúvidas percorrem a mente de Ifemelu enquanto a cabelereira trabalha por horas em seu cabelo.
Ao invés de avançar na trama, “Americanah” retorna ao passado. As partes II, III e IV do romance explicam detalhadamente os desencontros amorosos de Ifemelu e Obinze. Assim, o leitor fica sabendo da vida do casal de protagonistas desde a época em que eles eram adolescentes. Em seguida, a história percorre os tempos em que eles foram para a universidade em Lagos e quando Ifemelu decidiu imigrar para o exterior. Depois são narradas a trajetória de Ifemelu em seus treze anos de Estados Unidos e a vida de Obinze depois que sua namorada partiu. Somente na parte V da obra voltamos ao presente e acompanhamos o desencadeamento do retorno de Ifemelu à Nigéria.
“Americanah” é um romance parrudo. Ele possui 520 páginas, que estão divididas em sete partes. São ao todo 55 capítulos. Trata-se da obra mais extensa de Chimamanda Ngozi Adichie. Eu demorei quatro dias para concluir esta leitura. Ao chegar à última página do livro, confesso ter ficado com uma ótima impressão de sua narrativa. Realmente, este romance merece todos os prêmios, os elogios e a aclamação do público. Só não sei se essa é a minha obra favorita da autora. Ainda continuo preferindo “Hibisco Roxo”, um livro mais sensível e com um drama mais intenso. Contudo, isso é meramente a minha opinião/preferência pessoal.
Narrado em terceira pessoa, “Americanah” acompanha simultaneamente o casal de protagonistas. O narrador é do tipo observador, com capacidade para ler os pensamentos e as emoções de todas as pessoas em cena. Na primeira e na última parte do romance, o narrador fica colado ora em Ifemelu ora em Obinze. O revezamento é constante, capítulo a capítulo. Porém nas demais partes (II a VI), o narrador opta por ficar junto a uma dessas personagens ao longo de todos os capítulos da seção. Nas partes pares, acompanhamos a mocinha do livro, enquanto nas ímpares vemos as ações do mocinho.
Em relação à sua temática, “Americanah” é muito parecido às obras anteriores de Adichie. O conflito principal do romance está ancorado no choque cultural vivenciado por uma mulher negra que imigra da Nigéria para os Estados Unidos. As diferenças entre a América e a África são gritantes, apesar dos dois lugares falarem o mesmo idioma (o inglês). As roupas, a culinária, o sotaque, as palavras, o comportamento, os preconceitos, as crenças, a religião, as famílias e os relacionamentos são totalmente distintos de um local para outro. Para se adaptar à vida nos Estados Unidos, Ifemelu precisa incorporar a nova cultura. Apesar de seu esforço, ela é vista quase sempre como uma estrangeira. Ao retornar para Lagos, curiosamente, a protagonista passa a ser considerada por seus compatriotas uma norte-americana (no caso, uma americanah, termo dado pelos nigerianos a alguém que é mais parecido com um gringo do que com um nativo). Assim, temos uma crise grave de identidade. Afinal, quem é Ifemelu?!
Juntamente com o choque cultural e a crise de identidade da personagem principal, o romance de Chimamanda Ngozi Adichie aborda outros temas recorrentes da literatura da nigeriana: racismo, desigualdade econômica, corrupção, conflitos familiares, infidelidade conjugal, violência, imigração, preconceitos étnico-religiosos, efeitos da colonização europeia na África e cultura ancestral africana. A diferença aqui é que esses elementos típicos da realidade nigeriana e dos imigrantes africanos são inseridos em uma trama com forte intertextualidade pop. Temos muitas citações e passagens com grande riqueza musical, literária, televisiva, esportiva e política do ocidente. Esse recurso deixa o livro extremamente próximo aos leitores da cultura americano-europeia. Essa aproximação entre duas culturas (a ocidental e a africana) tão distintas dá um charme irresistível à narrativa.
Por falar em racismo, este é o romance mais contundente que já li sobre este assunto. A forma como Adichie aborda este tema e o insere naturalmente em sua trama é incrível. A sagacidade e a riqueza conceitual da autora são dignas de intermináveis elogios. A nigeriana é tão espetacular na apresentação do cenário do preconceito racial pelo mundo que ela consegue tecer uma visão abrangente até mesmo com o que ocorre no Brasil. Note o quão profunda e sábia é a análise da autora com o que vivenciamos em nosso país:
“(...) Então comecei a pensar em outras partes do mundo e em como seria viajar para lá quando se é negro. Tenho a pele bastante escura (...). Eu tinha lido que o Brasil é a meca das raças, mas, quando fui ao Rio, ninguém que estava nos restaurantes e hotéis caros se parecia comigo. As pessoas reagem de forma estranha quando eu vou para a fila da primeira classe no aeroporto. É uma reação de simpatia, como quem diz você está cometendo um erro, não pode ter essa aparência e viajar de primeira classe”.
Os quatro elementos mais positivos de “Americanah” são a verossimilhança da sua trama, a excelente construção das personagens principais, a mistura encantadora de crônicas à narrativa romanesca e o protagonismo de uma mulher negra e imigrante.
Sobre a verossimilhança da história, temos um enredo tão real, mas tão real que a impressão que o leitor tem é de que o livro é em parte autobiográfico. Seria Ifemelu o alter ego de Chimamanda Ngozi Adichie? Essa é a pergunta que fazemos durante a leitura da obra. As semelhanças entre a trajetória da personagem ficcional e sua autora é notória, mas não podemos fazer essa relação diretamente. O que podemos assegurar de fato é que a trama é tão boa que parece ser verídica. Essa constatação só evidencia os méritos do trabalho literário de Adichie. Nesse sentido, até mesmo a citação às marcas durante a narrativa, obviamente um expediente arriscado e nem sempre agradável aos olhos dos editores e dos leitores, dá grande concretude à história.
Quanto às personagens, temos quase sempre figuras esféricas. Esse ponto fica evidente quando analisamos as características do casal de protagonistas. Tanto Ifemelu quanto Obinze são pessoas falíveis. Eles cometem vários equívocos e possuem defeitos visíveis. Ela, por exemplo, trai seus namorados, recorre à prostituição em determinado momento e aceita a posição de amante de um homem casado. Ele, por sua vez, sobe na vida ao se envolver em negócios obscuros, é deportado da Inglaterra no instante em que ia se casar de forma arranjada e não pensa duas vezes ao iniciar um relacionamento extraconjugal. São atitudes que normalmente não esperamos da heroína e do herói de um romance tradicional. Mesmo assim, continuamos torcendo e admirando este casal. Isso é maravilhoso! Os defeitos e as falhas das personagens acabam tornando-as até mesmo mais carismáticas. Afinal, os leitores sabem que não existe pessoas perfeitas e imunes aos erros.
Há também a sacada genial de colocar Ifemelu, uma mulher negra e imigrante, como protagonista do livro. Mesmo sendo esse o expediente corriqueiro da literatura de Chimamanda, essa prática infelizmente não é habitual na ficção comercial praticada nos Estados Unidos e na Europa. Por isso mesmo, a relevância dessa opção narrativa. Ela precisa ser elogiada e valorizada. Apesar da narrativa ser em terceira pessoa, temos acesso privilegiado ao ponto de vista da imigrante negra que precisa encarar o racismo e o machismo para subir na vida. Incrível!
Outra coisa que achei excelente foi a inserção de trechos dos posts do blog de Ifemelu no meio da narrativa. Assim, acompanhamos o conteúdo das crônicas de “Observações Diversas sobre Negros Americanos (Antigamente Chamados de Crioulos) Feitos por Uma Negra Não Americana”. Essa mistura de ficção e realidade só intensifica ainda mais a concretude da narrativa e a impressão de verossimilhança da trama. Além disso, acabamos nos envolvendo ainda mais com o romance quando lemos as impressões de Ifemelu sobre a sociedade norte-americana.
Gostei também do jogo temporal utilizado pela autora: presente-retorno ao passado-volta ao presente. Com isso, mostra-se logo de cara o conflito principal: medo da protagonista em regressar para seu país de origem. Na sequência, através de longos flashbacks, revela-se como a personagem principal chegou àquela condição. E, por fim, temos o desfecho. Essa divisão acentua o mistério e a dramatização da história.
Apesar de ser um excelente romance, “Americanah” tem lá seus problemas. O primeiro deles está em seu desfecho extremamente óbvio. O desenlace da trama é exatamente aquele que o leitor esperava ao final do segundo capítulo do livro. Uma história tão forte e emocionante quanto esta merecia sim um encerramento mais criativo e menos evidente. O principal defeito da obra, contudo, está em seu tamanho. O romance é mais extenso do que o necessário. Ele poderia muito bem ser reduzido em 1/4 ou mesmo em 1/3 sem que isso implicasse em perda de ordem narrativa. Talvez esse número excessivo de páginas tenha a função de potencializar o encontro dos protagonistas depois de tantos anos separados. Para o leitor, essa grande distância temporal é representada nas centenas de páginas lidas. Mesmo assim, um trabalho de edição (leia-se: enxugamento) não cairia mal a “Americanah”.
Terminado o debate dos três romances de Chimamanda Ngozi Adichie (“Hibisco Roxo”, “Meio Sol Amarelo” e “Americanah”) e de sua coletânea de contos (“No Seu Pescoço”), vamos agora analisar os dois ensaios da autora nigeriana. Assim, o Desafio Literário parte para a investigação de “Sejamos Todos Feministas” (Companhia das Letras) e de “Para Educar Crianças Feministas” (Companhia das Letras), as publicações mais recentes de Adichie. O primeiro post estará disponível no Bonas Histórias na próxima terça-feira, dia 21, e o segundo no sábado, dia 25. Não perca a continuação da análise da literatura de Chimamanda Ngozi Adichie, uma das autoras mais originais da atualidade.
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