O quinto livro de José Saramago que será analisado neste mês no Bonas Histórias é “Ensaio Sobre a Cegueira” (Companhia das Letras). Li este romance no último final de semana para o Desafio Literário de abril. A obra é apontada como o trabalho mais famoso do escritor português. Traduzido para dezenas de idiomas, o drama dos cidadãos atingidos por uma epidemia de cegueira branca foi adaptado para o cinema, em 2008, pelo diretor brasileiro Fernando Meirelles, de “Cidade de Deus” (2002) e “O Jardineiro Fiel” (The Constant Gardener: 2005). Um filme baseado em um romance de Saramago é uma exceção à regra, pois o autor sempre se recusou a ceder os direitos dos seus livros para os cineastas.
A repercussão desta narrativa existencialista junto ao público e à crítica foi tão positiva que muitos consideram esta obra fundamental para a escolha de José Saramago para o Prêmio Nobel de Literatura de 1998. Vale lembrar que ele já era um dos principais escritores da língua portuguesa quando o livro chegou às livrarias europeias. No ano de seu lançamento em Portugal e no Brasil, Saramago conquistou o Prêmio Camões, o mais importante da comunidade lusófona.
Publicado em 1995, “Ensaio Sobre a Cegueira” é o nono romance de Saramago. Esta obra inaugura uma nova fase da literatura do português: as das tramas atemporais e desenvolvidas em locais indeterminados e os enredos que debatem filosoficamente questões da sociedade capitalista e da essência humana. Saem de cena as narrativas históricas e entram os dramas em tom de parábola. Depois de “Ensaio Sobre a Cegueira”, vieram os romances “Todos os Nomes” (Companhia das Letras), de 1997, “A Caverna” (Companhia das Letras), de 2001, “O Homem Duplicado” (Companhia das Letras), de 2002, “Ensaio Sobre a Lucidez” (Companhia das Letras), de 2004, e “As Intermitências da Morte” (Companhia das Letras), de 2005. O “Conto da Ilha Desconhecida” (Companhia das Letras), pequena narrativa de 1997, também pode ser incluída nessa lista de títulos existencialistas.
A produção de “Ensaio Sobre a Cegueira” coincide com a mudança de José Saramago para a Ilha de Lanzarote, nas Canárias. Este foi o primeiro romance do autor na nova residência. Há quem considere a maior profundidade filosófica da nova fase da literatura do autor ao isolamento que ele encontrou em Lanzarote, a região mais inóspita e desabitada do arquipélago espanhol no Oceano Atlântico. A saída de Portugal deu-se em parte pelas constantes e pesadas críticas que Saramago estava recebendo dos seus compatriotas. Uma parte dos portugueses não conseguia aceitar a antirreligiosidade e o antipatriotismo do escritor, questões que quase sempre respingavam em seu texto literário.
O enredo de “Ensaio Sobre a Cegueira” se passa em uma cidade indeterminada e em uma época não especificada. Em um final de tarde, os carros param em um semáforo para aguardar a luz verde. Quando ela surge, quase todos os veículos partem. Menos um. Mesmo diante das buzinas e dos xingamentos, o automóvel permanece parado. Parece ser uma cena corriqueira de uma metrópole, mas o episódio precipita acontecimentos trágicos. As pessoas se aproximam do carro inerte e aí descobrem que seu motorista não pode mais dirigir. Ele está cego. Sua cegueira apareceu de repente, enquanto olhava para as luzes do semáforo. Porém, ao invés de ver tudo escuro, ele vê tudo branco. O impasse é resolvido quando um voluntário resolve levar o motorista cego para a casa. Assim, o trânsito na via é liberado.
Ao chegar em sua residência, o homem que acabou de perder a visão agradece a solidariedade de quem o guiou até ali. Quando a esposa do cego chega, o marido explica o que aconteceu com ele. Desesperados, o casal vai até um oftalmologista para saber o que está se passando. Contudo, ao procurarem o carro que tinha sido estacionado, descobrem que foram roubados. O rapaz que guiará o cego até a casa aproveitou-se da situação para cometer o furto. Sem veículo, o casal precisa pegar um táxi.
No consultório do oftalmologista, o médico faz alguns exames e descobre que aparentemente não há problema nenhum com os olhos do cego. Os mecanismos da visão estão perfeitos. O doutor não entende como alguém pode ficar cego de uma hora para outra. Intrigado com o caso, ele começa a pesquisar sobre a misteriosa doença assim que chega em sua casa naquela noite. Ao acordar no dia seguinte, uma surpresa desagradável o deixa desesperado. O médico também está cego. Ao invés de ver tudo escuro, ele vê tudo branco. Como isso é possível?!
O oftalmologista compreende, então, se tratar de uma doença contagiosa. Com a ajuda da esposa, ele liga para o Ministro da Saúde para informar sobre a possibilidade de uma epidemia. Rapidamente, o governo age. As pessoas contaminadas pela Cegueira Branca devem ser isoladas em um local escolhido pelas autoridades. A quarentena é necessária para proteger os habitantes que ainda estão saudáveis. O lugar selecionado para abrigar os cegos é um manicômio há muito tempo desativado. O primeiro a ser levado para lá é o médico que comunicou a doença/peste para o governo. Não querendo deixar o marido sozinho naquela situação delicada, a esposa do médico finge estar cega também para acompanhá-lo. Assim, os dois seguem para a quarentena em uma ambulância.
No manicômio, o casal é informado que deverá permanecer dentro do prédio o tempo inteiro, que será protegido por homens do Exército. Os cegos não poderão sair de lá nem interagir com os soldados do lado de fora. Em compensação, receberão alimentos, água e artigos de primeira necessidade enquanto viverem ali. Aos poucos, novos cegos chegam ao local para fazer companhia ao médico e à sua esposa. No primeiro grupo de residentes aparecem o primeiro cego, aquele motorista que ficou parado no semáforo, e algumas pessoas que estavam no consultório do médico naquele fim de tarde (uma moça de óculos escuros que estava com conjuntivite, um garotinho estrábico e a enfermeira). Também chegam ao manicômio um velho com uma venda preta nos olhos (ele está com catarata) e o ladrão de carro (o homem que roubou o primeiro cego). Todos foram contaminados pela Cegueira Branca.
Os primeiros dias de segregação são de caos completo. Sem enxergar, os novos residentes do manicômio têm dificuldades para realizar as atividades básicas do dia a dia. Além disso, as promessas do Exército não são cumpridas integralmente. Há atrasos no envio de comida, de água e dos artigos de primeira necessidade. Para completar o drama, os cegos precisam encarar as desavenças naturais do convívio humano. O primeiro cego não gosta de saber que o homem que o roubou está ali ao seu lado. A moça de óculos escuros reage com violência ao ser apalpada por um desconhecido. Entretanto, as coisas só irão piorar à medida que mais e mais pessoas chegarem ao local. Quando o manicômio ficar superlotado de cegos, os problemas serão multiplicados.
O que já era ruim, pode ficar ainda pior. Uma gangue de residentes armados tentará tomar o poder e se apropriar dos alimentos e de todos os pertences dos colegas. Aí, a situação ficará insustentável. A mulher do médico, a única que mantém inexplicavelmente a visão intacta, precisará organizar uma revolta para por fim à tirania do grupelho de homens maldosos.
“Ensaio Sobre a Cegueira” é um romance de 312 páginas. Apesar de ter um tamanho considerável, ele é o segundo menor em número de páginas entre as obras analisadas no Desafio Literário deste mês. Apenas “Caim” (Companhia das Letras), último romance de Saramago, é menor (tem 176 páginas). “Memorial do Convento” (Companhia das Letras), “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (Companhia das Letras), “A Jangada de Pedra” (Companhia das Letras) e “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” têm em média 400 páginas. Por isso, consegui ler “Ensaio Sobre a Cegueira” em dois dias. Comecei sua leitura na sexta-feira à tarde e a concluí no sábado à noite. Para um romance saramaguiano, trata-se de uma leitura acelerada.
O que chama atenção logo de cara neste livro é o seu caráter de parábola. Não temos durante a trama nenhuma definição de onde e de quando sua história se passa. Além disso, nenhuma personagem tem nome próprio. Todas as figuras retratadas são associadas a uma característica física, profissional, social ou de vestimenta. Temos, assim, o médico, a esposa do médico, o menino estrábico, a moça de óculos escuros, o velho da venda, o primeiro cego, a esposa do primeiro cego, o ladrão de carro, a velha do primeiro andar, o cão de lágrimas. Esses são elementos típicos das parábolas, narrativas alegóricas com forte caráter moral.
O segundo aspecto forte de “Ensaio Sobre a Cegueira” é a riqueza de seu subtexto. O autor diz muitas coisas de maneira indireta. A perda de visão é apenas um pretexto para que elementos existencialistas da condição humana sejam discutidos. Temas como liberdade, autonomia, impotência, traição, violência, poder e abandono estão no cerne da trama. Além disso, são bastante discutidas as noções como liderança e governo. Percorrer as páginas do romance é adentrar em uma reflexão profunda e inteligente do que nos faz humanos. Encontrar o significado simbólico de cada elemento dessa história é um dos desafios do leitor.
Exatamente por isso, durante esta leitura me lembrei bastante do portfólio literário de Albert Camus, escritor e filósofo francês agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura de 1956. “Ensaio Sobre a Cegueira”, de certa forma, utiliza-se da dinâmica presente, por exemplo, em “A Peste” (Record), “O Estrangeiro” (Record) e “A Queda” (Record). Através de uma narrativa ficcional, debatem-se temas filosóficos profundos e interessantes. Para se chegar a este nível de compreensão, é preciso realizar uma leitura mais atenta e mais engajada do que aquela feita de forma recreativa.
Curiosamente, ao mesmo tempo em que José Saramago insere componentes existencialistas ao seu romance, a dinâmica de sua narrativa não perde em dinamismo. Paradoxalmente, ela até ganha em celeridade e graça. Comparado aos demais livros do escritor português, “Ensaio Sobre a Cegueira” é aquele que tem um texto mais direto e pontuado de ação desde o primeiro momento. Vale lembrar que a obra começa já com o surgimento da cegueira no motorista parado no semáforo (cena esta impecável!). Esse ritmo acelerado permanece até os últimos capítulos, quando aí a rotina das personagens provoca uma natural lentidão no relato. Portanto, não temos aqui grandes interrupções na narrativa (para a explanação conceitual do narrador) nem temos a inserção de novas tramas (que desviam a atenção do leitor), pontos presentes nos demais romances de Saramago que já analisamos no Bonas Histórias.
Além de toda essa bagagem conceitual que citamos, “Ensaio Sobre a Cegueira” ainda apresenta o estilo inconfundível e delicioso da prosa saramaguiana, apresentado pela primeira vez em “Levantado do Chão” (Companhia das Letras) e, depois disso, repetido em todos os romances do autor. Temos, assim, a pontuação típica de Saramago (uso de vírgulas no lugar dos pontos finais e de pontos finais no lugar de vírgulas, além da ausência total da exclamação e da interrogação), a incorporação dos diálogos à narrativa principal (sem o uso do travessão), parágrafos e frases gigantescos, a ironia presente em cada trechinho da história e um narrador onisciente e onipresente que exala bom humor. Não é possível algo ser mais Saramago que isso, não é mesmo?
Por falar no humor, repare como José Saramago consegue acrescentar graça e leveza ao seu texto, mesmo em meio a uma narrativa tão tensa e recheada de violência como esta. O narrador e até mesmo as personagens de “Ensaio Sobre a Cegueira” divertem os leitores ao comentar ditados populares e gírias, a maioria deles relacionados à cegueira e à falta de visão. É hilário! Perdi a conta de quantos ditados populares temos sobre esse tema. Além disso, vemos pequenas piadas e anedotas (humor negro, sim senhor!) sobre as situações delicadas passadas pelas personagens na trama.
Paralelamente ao humor, temos uma narrativa extremamente violenta e com uma pegada apocalíptica. Das obras de Saramago, achei essa a mais trágico-cômica de todas. Os momentos de violência (assassinatos, estupros, abandonos, traições, fome, miséria) e de escatologia atingem níveis intensos. A parte em que as personagens ficam presas no manicômio e são chantageadas pelo grupo criminoso representa o clímax do romance. Ali temos um retrato triste da essência humana. Como consequência, o leitor se vê diante da grande angústia que as personagens fictícias são tomadas. O que fazer naqueles momentos decisivos?
Outra questão que passa um pouco despercebida da maioria do público é que, enfim, temos uma protagonista do sexo feminino em um romance de José Saramago. E ela é forte, corajosa e destemida. A esposa do médico é a figura central nessa trama complexa e recheada de figuras contraditórias. É ela quem toma à frente e lidera seu grupo de amigos contra a dominação e a exploração de criminosos cruéis. Por ser a única pessoa que enxerga, ela é quem norteia as ações. Esta novidade se justifica porque, na maioria de suas narrativas, o escritor português acaba dando o protagonismo para personagens masculinas, deixando as figuras femininas em segundo plano. “Ensaio Sobre a Cegueira” é a exceção que só confirma a regra.
Apesar de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” continuar sendo minha obra favorita de José Saramago, não posso deixar de reconhecer a grandiosidade de “Ensaio Sobre a Cegueira”. Este livro possui uma história saborosa e inquietante. O leitor fica tenso durante boa parte da leitura, aguardando o que irá acontecer com aquelas personagens abandonadas pela sociedade. Junto com a tensão temos um conflito bem amarrado. Não à toa, este título se transformou em um dos principais representantes da literatura contemporânea da língua portuguesa. Lê-lo é uma tarefa obrigatória para quem deseja conhecer o que de melhor foi produzido por Saramago.
Para concluir as análises dos livros deste Desafio Literário, na próxima quinta-feira, dia 25, retorno ao Bonas Histórias para comentar “Caim” (Companhia das Letras), o último romance publicado em vida por Saramago. Não perca os novos posts deste estudo sobre a literatura de José Saramago.
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