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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

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Livros: Memorial do Convento - O primeiro sucesso internacional de José Saramago


O Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago

O Desafio Literário de abril começa com o primeiro sucesso internacional de José Saramago. Quando “Memorial do Convento” (Companhia das Letras) foi publicado, o escritor português era um nome que despontava no cenário literário de seu país natal como uma boa promessa. “Levantado do Chão” (Companhia das Letras), seu romance precedente, conquistara o Prêmio Cidade de Lisboa. Assim, o autor até então desconhecido ganhara, enfim, o reconhecimento do público leitor e o respeito da crítica literária nacional. Curiosamente, isso aconteceu quando Saramago já estava próximo de completar 60 anos. Contudo, só foi com “Memorial do Convento”, seu quarto romance, que o escritor se tornaria famoso também fora das fronteiras portuguesas. Estava pautado o começo de uma trajetória artística que culminaria com o recebimento do Prêmio Nobel de Literatura em 1998.

Lançado em outubro de 1982, “Memorial do Convento” pode ser considerado a obra de afirmação de José Saramago. Utilizando o estilo literário implementado dois anos antes em “Levantado do Chão” (que seria sua marca registrada a partir de então), uma temática com forte tom de denúncia social (característica deste início de carreira), e elementos fantasiosos (ingrediente fundamental da fase seguinte, a da “Crítica à Realidade”), Saramago tornava-se, ao mesmo tempo, um best-seller e um escritor com uma literatura bem peculiar (combinação extremamente difícil de ser obtida). “Memorial do Convento” foi traduzido para dezenas de idiomas e ganhou mais de meia centena de edições. Em 1990, Azio Corgi, compositor italiano de prestígio, criou a ópera “Blimunda”. O espetáculo foi inspirado na protagonista feminina deste romance.

O enredo de “Memorial do Convento” se passa em Portugal entre 1711 e 1730. D. João V, o rei lusitano, faz uma promessa ao frei António de S. José. Se D. Maria Ana Josefa, a rainha, conseguir parir um filho dentro de um ano, o monarca irá construir, em agradecimento a Deus, um convento franciscano em Mafra. E graças à providência divina ou a um esperto arranjo entre os mortais, ela dá à luz, dentro do prazo estipulado, a uma menina batizada de Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara. O reino e a família imperial são só alegria. E como é um rei de palavra, D. João V não mede esforços para cumprir sua promessa. Empolgado com a empreitada que ele mesmo criou, o monarca aumenta, de tempos em tempos, a dimensão da sua construção. Os religiosos ficam maravilhados com tamanha sorte e com a benevolência real. D. João V quer que o convento se torne maior do que a basílica romana. Por isso, nasce em Mafra um campo de trabalho de dimensões vultuosas. Milhares de trabalhadores são convocados e infinitos recursos são dispensados para a obra.

José Saramago

Enquanto a família real portuguesa leva uma existência regada a extravagâncias e a luxos incalculáveis, no meio do povo simples vivem Baltasar Mateus, apelidado de Sete-Sóis, e Blimunda de Jesus, apelidada de Sete-Luas. O casal vive junto apesar de não ter se casado na Igreja. Baltasar é um ex-soldado que perdeu a mão esquerda no campo de batalha. Blimunda é uma vidente que, ao ficar em jejum, consegue ver dentro do corpo das pessoas. A dupla trabalha para Bartolomeu Lourenço, padre nascido no Brasil que sonha em construir uma máquina voadora. Ele conseguiu o patrocínio real para sua invenção, apelidada de Passarola. À medida que a confecção da máquina avança e se torna mais e mais concreta, aumentam também os perigos de Bartolomeu Lourenço e de seus funcionários se tornarem alvos da ira do Santo Ofício. Vale lembrar que no século XVIII, a Igreja não pensava duas vezes antes de atirar seus inimigos nas fogueiras da Inquisição.

“Memorial do Convento” possui 408 páginas. Elas estão distribuídas em 25 capítulos. Precisei de três dias para concluir esta leitura. Comecei o livro no sábado passado e o finalizei nesta segunda-feira à noite. Esta não foi a primeira vez que li esta obra. Há cerca de cinco anos já tinha lido sua história. Por isso, desta vez, não encontrei muitas novidades de ordem narrativa. Esta trama de Saramago ainda estava viva em minha mente, apesar de meia década depois da leitura inicial (o que já é um primeiro sinal da ótima qualidade deste texto).

As principais características de “Memorial do Convento” são: a criação de dois planos narrativos distintos (família real e o casal Baltasar-Blimunda), a mistura de personagens reais e fictícios, o tom de denúncia social, a crítica contumaz à Igreja, o cenário de grande violência, o uso de muitas ironias, o texto bastante descritivo e com quebras na trama principal, a inserção de elementos fantasiosos à história, o narrador em terceira pessoa onipresente e onisciente e a narrativa construída segundo o estilo José Saramago.

Livro Ensaio Sobre a Cegueira

Como já tinha sido feito em “Levantado no Chão”, “Memorial do Convento” possui dois planos narrativos opostos: o dos poderosos e o dos oprimidos. Ambos andam paralelamente. O leitor vê as decisões destemperadas tomadas por D. João V e, depois, as consequências disso para o casal de protagonistas Baltasar e Blimunda (e para o restante da população portuguesa). Essa dicotomia entre realidades tão diferentes é interessantíssima. De um lado temos a riqueza, o luxo, o conforto e o poder quase ilimitado do rei. Do outro, assistimos à pobreza, às injustiças, ao desconforto e à opressão vivenciadas pelos trabalhadores humildes.

A trama de José Saramago também mistura personagens reais e fictícias. D. João V e Bartolomeu Lourenço de Gusmão, por exemplo, são figuras que existiram de fato (sim, o brasileiro tinha o apelido de padre voador e era obcecado por ganhar os céus - ele inventou um tipo de balão que voou, em pleno século XVIII, para surpresa dos súditos do rei português). Já Baltasar e Blimunda compõem o grupo de personagens nascidas exclusivamente na imaginação do autor. Essa combinação entre realidade histórica e ficção literária torna a trama ainda mais sedutora. O leitor precisa descobrir por conta própria onde começa e onde termina a invenção ficcional. A construção do convento em Mafra, por um acaso, é um episódio real.

Como no romance anterior de Saramago, este apresenta um forte tom de denúncia social. O texto do livro é extremamente crítico às injustiças e às desigualdades vivenciadas pelos portugueses mais humildes. Se em “Levantado no Chão” tratava dos perrengues dos agricultores do Alentejo (vítimas dos latifundiários), em “Memorial do Convento” assistimos ao padecimento dos trabalhadores da construção civil em Mafra (vítimas dos caprichos reais). De semelhança entre as publicações, temos o papel de vilania dos religiosos, sempre unidos ao poder terreno e contrários aos interesses da camada mais pobre da população.

Por falar nisso, Saramago não alivia nas fortes críticas à Igreja Católica, até mais acentuadas do que nos romances anteriores. Quase todas as autoridades religiosas são pintadas de maneira extremamente pejorativa. Eles roubam, enganam, estupram, fazem sexo, enriquecem... Não há nada de sacro em suas atividades e comportamentos. O único padre que é retratado de maneira positiva é Bartolomeu Lourenço, que não se dedica ao Catolicismo e sim a sua invencionice. Nota-se também a crítica ao Catolicismo nas várias reinterpretações bíblicas que o narrador e as personagens inserem no meio da trama. José Saramago é talvez o ateu que mais conhecesse da Bíblia em Portugal.

Livro Ensaio Sobre a Cegueira

Ao mesmo tempo em que assistimos às estripulias dos religiosos, vemos um cenário profundamente violento. Portugal do século XVIII, aos olhos do escritor, é palco de guerras sangrentas, de variados crimes urbanos, da ação ditatorial da Inquisição, de feminicídios, touradas, acidentes de trabalho e tentativas de estupro. A impressão que temos é que cada capítulo do livro nos reserva um conjunto abrangente e variado de violências e crimes. Não há lugar seguro para ninguém. A qualquer instante, uma fatalidade irá acontecer, para desgraça das pessoas.

Note a ironia fina de Saramago durante toda a narrativa. É impossível não se divertir com o jeito sutilmente desbocado (e inteligente) do narrador em relatar os acontecimentos inusitados de suas personagens. Nada parece escapar aos olhares críticos e bem-humorados de quem conta a história. Normalmente, as vítimas favoritas da língua felina do narrador são os religiosos e os poderosos, mas isso não quer dizer que o povão esteja totalmente imune aos julgamentos e aos comentários irônicos. No final das contas, ninguém escapa do humor ácido de “Memorial do Convento”.

Uma característica que pode incomodar muitos leitores é a quebra constante de ritmo da trama principal. José Saramago intercala a narrativa de D. João V e sua família e a narrativa do casal Baltasar-Blimunda e seus amigos com longos trechos descritivos e subtramas que não se ligam diretamente aos conflitos principais. Ou seja, quando o leitor quer saber o que o rei português fará ou o que os protagonistas do núcleo pobre da história farão, ele recebe longos relatos bíblicos, detalhes de festas e confraternizações religiosas, passagens históricas, cenas gerais da construção do convento de Mafra, depoimentos de personagens secundárias e muitas e muitas histórias paralelas. É verdade que o texto de Saramago é sedutor ao ponto de a leitura não descambar, mas ainda sim essa característica pode incomodar quem é mais ansioso e deseja ir logo para o assunto principal.

Livro Ensaio Sobre a Cegueira

Pela primeira vez, temos um romance de José Saramago com fortes componentes fantasiosos (algo que seria corriqueiro nos demais livros do autor). Os poderes mediúnicos de Blimunda de Jesus e de sua mãe, Sebastiana Maria de Jesus, são ingredientes fundamentais da narrativa. São os poderes da mulher de Baltazar que farão a Passarola de Bartolomeu Lourenço voar. A máquina do padre brasileiro ganha os ares não pelas características físicas e anatômicas da invenção e sim pelo componente fantasioso da trama.

Contudo, há uma sensível diferença entre a aplicação da fantasia nesta obra com o que será feito daqui para frente por Saramago. Nos romances seguintes do autor português, a fantasia serve para questionar criticamente assuntos da realidade objetiva e histórica de Portugal, da Europa e do Cristianismo. Já em “Memorial do Convento” não há essa finalidade escancarada. Exatamente por isso, costumamos dizer que a fase da “Crítica à Realidade” só começa com a publicação de “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (Companhia das Letras), o livro seguinte do autor.

E o que podemos falar do narrador de “Memorial do Convento”, hein? Além de ser em terceira pessoa e possuir dons da onipresença e da onisciência, ele não se aguenta e se adianta à história. Isso é muito curioso. O narrador fala o que irá acontecer no futuro com algumas personagens, colocando, como diriam os mais antigos, o carro na frente dos bois. Fulano vai morrer daqui a três meses, tá? Beltrano, não se impressione leitor, por favor, se acontecer tal coisa com ele daqui a pouco. Como é típico dos relatos informais de qualquer história já passada (mas não na literatura), essas antecipações dão mais verossimilhança à narrativa. Eu pelo menos adorei.

O que mais deixou o público internacional admirado, em “Memorial do Convento”, foi o estilo ousado do texto de José Saramago. Lembremos que quase ninguém fora de Portugal havia lido “Levantado do Chão”, obra que inaugurou o jeitão da narrativa do autor. Assim, a união dos discursos das personagens à narração (sem qualquer separação formal entre eles), a ausência de sinais de exclamação e interrogação, as frases longas e o excesso de descrições transformaram completamente a experiência de leitura. Ler um livro de Saramago é algo incomparável. O único elemento de seu estilo que o escritor português não havia ainda adotado de forma mais ampla em “Memorial do Convento” era a troca de muitos pontos finais por vírgulas (algo escancarado nos livros seguintes). Por isso, não estranhe o “excesso” de pontos finais neste romance.

José Saramago

De forma geral, “Memorial do Convento” é um bom livro. O seu primeiro capítulo é simplesmente genial. E seu final é carregado de tristeza e de loucura (um dos desfechos mais melancólicos da literatura do português). Dentre os títulos do portfólio de Saramago, entretanto, este romance não está entre os meus favoritos. Talvez ele só ganhe de “Levantado do Chão”, o romance mais chato de Saramago, e de “Jangada de Pedra” (Companhia das Letras), o mais fraquinho conceitualmente. Eu colocaria “Memorial do Convento” ao lado de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, mas atrás, muito atrás de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (Companhia das Letras), “Ensaio sobre a Cegueira” (Companhia das Letras), “Caim” (Companhia das Letras) e “O Conto da Ilha Desconhecida” (Companhia das Letras), esses sim os meus favoritos.

Concluída a análise do primeiro livro do Desafio Literário deste mês, já preciso planejar a próxima leitura. O segundo romance de Saramago que será comentado no Bonas Histórias é “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (Companhia das Letras), o quinto romance do português. Vou lê-lo neste final de semana e na próxima terça-feira, dia 9, posto minhas impressões para vocês. Não percam as próximas etapas do Desafio Literário de José Saramago.

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