Quando falamos em George Orwell, automaticamente nos lembramos de “1984” (Companhia das Letras). Nesse romance distópico, o autor inglês apresenta para o mundo a figura tirânica e mítica do Big Brother (o Grande Irmão), líder onipresente e onisciente de um partido totalitário. A associação entre Orwell e “1984” é realmente pertinente. O livro é uma crítica muitíssimo bem-feita aos regimes ditatoriais e configura-se, ainda hoje, em uma das obras-primas da literatura do século XX. O valor da publicação pode ser medido no quanto seus conceitos acabaram incorporados à cultura popular. Se você nunca ouviu falar de “1984” ou do Big Brother, algo de muito errado está acontecendo com você e com sua vida.
Entretanto, para mim, a magnum opus de George Orwell é uma outra publicação, as vezes esquecida ou mesmo colocada, injustamente, em segundo plano (quando comparada a “1984”). Trata-se de “A Revolução dos Bichos” (Companhia das Letras), novela em tom de fábula que questiona de maneira ácida a experiência de formação dos Estados Socialistas. Ao invés de promoverem a igualdade social, eles acabaram, no final das contas, criando uma nova classe de privilegiados em meio à pobreza coletiva. Se “1984” é excelente, “A Revolução dos Bichos” é espetacular! Reli pela quarta vez esta obra no último domingo e, mais uma vez, fiquei muitíssimo impressionado com sua qualidade. Minha empolgação foi tanta que não resisti: corri para o Blog Bonas Histórias para postar uma análise deste livro para você.
Em um texto leve, rápido, divertido, e, acima de tudo, extremamente inteligente, Orwell critica, em “A Revolução dos Bichos”: a ganância/ambição desmedida do ser humano; a inviabilidade de governos comunistas (como o da União Soviética, por exemplo) de promover a igualdade social; o uso da religião como manobra para acalmar/reconfortar as pessoas mais ingênuas; a criação de Estados totalitários e bélicos a partir de propostas pacifistas e democráticas; a manipulação ideológica e doutrinária da massa populacional; a invenção de inimigos imaginários para afastar o foco de atenção que seria direcionado aos problemas reais; a leitura enviesada do passado histórico; e o surgimento de uma elite de privilegiados no seio da sociedade pretensamente igualitária. E George Orwell faz tudo isso em uma fábula que se passa em uma pequena fazenda de uma região rural da Inglaterra. É ou não é um livro incrível?!
Publicado em agosto de 1945, quatro anos antes de “1984” e no exato instante do armistício da Segunda Guerra Mundial, “A Revolução dos Bichos” é ainda hoje uma obra atual. Além de ter sido um grande sucesso de público, a novela é exaltada pela crítica literária desde o seu lançamento. Este livro de Orwell foi eleito pela Revista Times, em 2005, como uma das cem melhores ficções de língua inglesa publicadas a partir de 1923 (o ano de fundação da revista nos Estados Unidos). Em 2008, foi a vez da Modern Library, famosa editora norte-americana, colocar “A Revolução dos Bichos” na trigésima primeira posição do ranking das melhores narrativas literárias do século XX. Nada mal, hein?
“A Revolução dos Bichos” se passa na Granja do Solar, fazenda de propriedade do Sr. Jones, um decadente ruralista inglês. Certa noite, depois que o Sr. Jones foi se deitar bêbado em seu quarto, os animais da fazenda se reúnem no celeiro. Todos comparecem ao encontro secreto para ouvir o discurso do Major, um velho porco que em seu passado glorioso havia sido um campeão em concursos de beleza. Agora um respeitado ancião, o Major narra um sonho aparentemente utópico que teve recentemente.
Ele diz que, em um futuro não muito distante, os animais daquela fazenda irão se unir para acabar com a tirania dos seres humanos. Após expulsarem os homens da Granja do Solar, os animais serão os responsáveis por administrar sozinhos aquele lugar. Assim, poderão levar uma vida melhor e mais justa, onde todos serão iguais e viverão sem a violência repressora dos humanos. Para completar, o Major ensina aos colegas uma canção chamada de Bichos da Inglaterra. Nela, ele sintetiza os valores do Animalismo, sua filosofia de vida. Os animais cantam emocionados várias vezes a música, que fala de união, de companheirismo, de pacifismo e de igualdade entre os bichos.
Três dias após a reunião noturna no celeiro, o Major morre. Mesmo assim, seus ideais permanecem no imaginário coletivo dos animais da Granja do Solar. Alguns meses mais tarde, a revolução que ele tanto ansiava acontece de fato. Quando o Sr. Jones se esquece de dar comida para os animais da fazenda (o dono da propriedade rural estava outra vez bêbado), os bichos se rebelam com violência. Na visão da bicharada, aquela atitude egoísta do Sr. Jones tinha sido a gota d´água do descaso em que eles eram tratados.
Unidos, os animais expulsam o proprietário, a esposa dele e todos os funcionários do local, assumindo, desta maneira, o comando da granja. Liderados pelos porcos, os animais mais inteligentes da fazenda, o grupo faz um pacto, em uma espécie de refundação do lugar. A Granja do Solar passa a se chamar Granja dos Bichos. Bichos da Inglaterra torna-se oficialmente o hino dos habitantes da localidade. E uma constituição, chamada de Sete Mandamentos, é decretada. Nela, os animais devem viver em paz, em igualdade e em harmonia entre si, tendo como único inimigo os homens.
Rapidamente, a Granja dos Bichos se torna uma fazenda próspera e feliz. Sem ninguém para explorá-los, os animais podem trabalhar livres e ter uma alimentação mais farta. Além disso, ganham horas de lazer, algo inimaginável na época dos homens, podem se aposentar quando ficarem velhos, outra coisa impensável antes, e, acredite, começam a apreender a ler e a escrever. Ou seja, o progresso chega a níveis jamais cogitados pelos revoltosos.
À medida que os meses vão passando, os porcos começam cada vez mais a assumir o controle administrativo (e político) da fazenda. Bola-de-Neve e Napoleão, os dois porcos mais influentes e ambiciosos da Granja dos Bichos, passam a brigar pelo controle do governo local. Depois de várias discussões acaloradas com Bola-de-Neve, Napoleão recruta uma matilha formada por filhotes bravos e dá um golpe de Estado, expulsando o colega desarmado. Uma vez no poder, Napoleão inicia uma administração que tem por base a perseguição aos oponentes internos, o ódio aos inimigos externos, o culto à sua personalidade, a criação de projetos megalomaníacos, a violência policial e, pouco a pouco, o término dos ideais igualitários que marcaram a Revolução dos Bichos.
Quando Napoleão vira o ditador da Granja dos Bichos, a qualidade de vida da maioria dos animais cai sensivelmente. A fome, o medo, as injustiças e as jornadas excessivas de trabalho passam a ser a tônica na rotina da fazenda. Enquanto isso, os porcos se tornam uma classe de privilegiados. Eles passam a morar na casa onde antes o Sr. Jones vivia e começam a estabelecer relações com os demais fazendeiros da região, algo impensável até então.
“Revolução dos Bichos” é um livro curtinho (algo típico das novelas). Ele tem pouco mais de 150 páginas (normalmente é publicado em versões pockets/edições de bolso). É possível ler a obra inteira em uma única tarde. Foi o que fiz neste domingo. Acho que não levei mais de três horas para concluí-la de cabo a rabo. Li tudo em um fôlego só sem qualquer dificuldade.
O aspecto mais relevante desta publicação, que gostaria de salientar neste post, é a qualidade do seu duplo texto. Por qualquer perspectiva que você leia a obra, você ficará impressionado positivamente.
“A Revolução dos Bichos” pode ser lido exclusivamente pelo ponto de vista de sua história literal – a trama que aparece em primeiro plano (disputa entre animais e homens e, depois, oposição entre porcos e demais bichos). Ela é muito interessante do ponto de vista narrativo. Seu conflito, suas personagens, suas reviravoltas e todos os demais elementos ficcionais são impecáveis. George Orwell foi um escritor espetacular, com uma noção impecável do trabalho ficcional.
Contudo, o conteúdo do livro ganha em dimensão quando analisamos seu subtexto (a segunda camada textual do material). O que está por trás da história literal é o que torna “A Revolução dos Bichos” uma obra-prima da literatura universal. De maneira primorosa, a novela é uma crônica da formação e do desenvolvimento do mais famoso Estado Socialista. Nessa outra perspectiva, a Granja do Solar seria a Rússia czarista e a Granja dos Bichos seria a União Soviética. O que “A Revolução dos Bichos” narra em suas páginas, apesar de conter alguns elementos da Revolução Francesa, nada mais é do que uma sátira à Revolução Russa. Estão ali todas as fases da transformação do Império Russo em União Soviética: Revolução de Fevereiro (motivada pela fome e que resultou na expulsão do czar e de sua família do país), Revolução Bolchevique (tomada de poder pelos socialistas e implementação do Partido Comunista) e Guerra Civil (comunistas versus opositores internos e externos).
É quando fazemos essa associação entre ficção e realidade histórica é que entendemos a grandiosidade do texto de George Orwell. A disputa travada entre Bola-de-Neve e Napoleão não seria nada mais do que a disputa entre Leon Trótski e Josef Stalin pelo poder do governo comunista soviético. Sob esse prisma, Major seria Lenin. Com isso, na visão do escritor inglês, os porcos seriam os comunistas, enquanto os homens seriam os capitalistas. No fim das contas, o povo (representado pelos demais animais da granja) acaba sendo explorado indistintamente como mão-de-obra barata e descartável pelos dois grupos (porcos e seres humanos são iguais em seus comportamentos e crenças). É espetacular essa conclusão que o escritor propõe, assim como é incrível o desfecho da novela.
Além do inegável caráter político da trama (contido no subtexto do livro), precisamos reparar também na maneira impecável como foram construídas as demais figuras que compõem esta história. Temos o corvo como o religioso tradicional que promete uma vida melhor no céu após a morte (seria ele a Igreja Católica ou o Papa?), os cavalos como os trabalhadores braçais (ingênuos e de bom coração que acabam explorados por todo mundo), os pombos fazendo o papel dos meios de comunicação, os cachorros representando a força policial e os exércitos e o porco Garganta como a figura pública responsável por seduzir a massa populacional para os ideais da elite governante (além de reescrever a história sempre que necessário). Quando o leitor faz essa relação, o texto, que já era muito bom, se torna excelente.
“A Revolução dos Bichos” é o tipo de livro que se torna melhor toda vez que você o relê. Nesta minha quarta releitura, confesso que o achei melhor do que as vezes anteriores.
Dessa maneira, terminamos com chave-de-ouro as análises dos livros independentes deste início de ano. A partir de abril, o Bonas Histórias apresentará a quinta temporada do Desafio Literário. Assim, todo mês um escritor renomado terá suas obras estudadas aqui no blog. As análises do Desafio vão de abril a novembro. Em dezembro, retomamos às críticas das obras selecionadas de forma pontual. Bom Desafio Literário de 2019 para todos nós.
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