Para muitos, Nelson Rodrigues foi o maior dramaturgo brasileiro. Confesso que integro essa lista de apreciadores do trabalho do polêmico pernambucano que viveu desde os quatro anos de idade na cidade do Rio de Janeiro. Sua principal peça é “Vestido de Noiva”, de dezembro de 1943, um intrincado thriller psicológico protagonizado por duas irmãs que se odiavam. Considerado um marco do teatro realista nacional, “Vestido de Noiva” revolucionou seu gênero ao inserir várias inovações estéticas e narrativas.
Contudo, Nelson Rodrigues não ficou conhecido apenas pela sua produção cênica. Cronista, comentarista esportivo, contista, jornalista e romancista, ele se conectou, como poucos artistas na metade do século XX, ao dia a dia da massa da população fluminense e brasileira. Dialogando diretamente com temas comuns das ruas das grandes cidades, o escritor se tornou uma figura extremamente popular. Amado por uns e odiado por outros, Rodrigues era uma das personalidades de maior destaque no jornalismo entre as décadas de 1950 e 1970. Ele opinava sobre vários assuntos (política, futebol, sociedade, religião, moda, violência, família, comportamento, etc.) e suas palavras tinham influência nacional. Quando suas obras passaram a ser adaptadas para a televisão e para o cinema, essa conexão com as massas aumentou ainda mais.
Moralista inveterado, Nelson Rodrigues gostava de criticar a sociedade carioca, principalmente a classe média, o comportamento sexual dos seus conterrâneos e algumas instituições tradicionais, como o casamento e a família. Sua estratégia para mostrar o quão degradante era a moral das pessoas estava em apresentar, através da ficção, os tipos e os casos mais esdrúxulos. Seus textos, assim, ganhavam uma função catártica. Na concepção do artista e jornalista, ao ver/ler sobre uma situação considerada degradante moralmente, o indivíduo não teria mais a necessidade de realizar aquilo em sua vida normal. Ou seja, a imoralidade ficaria apenas no plano ficcional do leitor/espectador, sem ultrapassar a fronteira do real. Não sei se isso funcionava dessa maneira na prática. O que sei, efetivamente, é que o trabalho de Rodrigues adquiriu contornos muito eróticos, escatológicos e, por que não, preconceituosos.
Depois de já ter se tornado um dramaturgo e jornalista muito famoso, Nelson Rodrigues decidiu escrever um romance. É verdade que vários livros dele já tinham sido lançados. Todos, entretanto, eram adaptações de peças teatrais e de textos publicados em jornais. Nenhum tinha sido concebido originalmente como uma narrativa literária. Esse fato persistiu até o surgimento de “O Casamento” (Nova Fronteira), o primeiro e único romance de Nelson Rodrigues lançado diretamente em brochura. Esta foi minha leitura deste final de semana.
Publicada em setembro de 1966, esta obra foi encomendada por Carlos Lacerda. O jornalista e político fluminense queria um título de destaque para sua recém-lançada editora, a Nova Fronteira. Assim, nada melhor do que um inédito de Nelson Rodrigues para dar visibilidade à nova empresa e arrematar os primeiros leitores. “O Casamento” foi escrito em apenas dois meses. A história do livro já estava na cabeça de Rodrigues há alguns anos, assim como a vontade de produzir literatura.
Curiosamente, ao ler os originais do romance, Lacerda ficou chocado com seu conteúdo. A obra continha boa parte das características do estilo artístico de seu autor: muito sexo, patologias psicológicas, escatologias, intrigas familiares, bizarrices de todas as formas, preconceitos (machismo e homofobia, por exemplo), violência, desigualdade social, adultérios, chantagens, etc. Envergonhado com as indecências da história, Carlos Lacerda optou por não publicar o material. Para não ficar mal com o escritor, o proprietário da Nova Fronteira indicou “O Casamento” para um amigo editor. Foi pelo selo deste amigo tanto de Lacerda quanto de Rodrigues, a Guanabara, que o livro foi publicado pela primeira vez. Por essas reviravoltas do destino, hoje, em 2019, quem edita a nova versão deste romance de Nelson Rodrigues é a própria Nova Fronteira.
O resultado mais imediato dessa proposta editorial polêmica foi o rápido sucesso nas livrarias do país. Em poucos dias, “O Casamento” se tornou um best-seller, chegando ao topo dos mais vendidos no Brasil. Em duas semanas, a obra vendeu aproximadamente 8 mil exemplares, equiparando-se a outro sucesso da época, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (Companhia das Letras), de Jorge Amado. A estreia de Nelson Rodrigues na literatura se mostrava extremamente bem-sucedida.
A maré positiva do escritor durou pouco. Alguns dias depois do lançamento de “O Casamento”, morreu o irmão mais velho de Nelson Rodrigues, o jornalista esportivo Mário Filho. Mário Filho, aquele mesmo que emprestou seu nome ao Maracanã e que criou o termo Fla-Flu para as partidas entre Flamengo e Fluminense, tinha 58 anos e teve um ataque cardíaco mortal em 17 de setembro de 1966. Por causa da fatalidade, todos os eventos de lançamento do livro de Rodrigues foram cancelados.
Outro problema que “O Casamento” enfrentou foi o da censura governamental. Em outubro daquele ano, cerca de um mês da publicação do livro, a obra foi proibida de ser vendida nas livrarias do país. O ministro da Justiça do governo Castello Branco considerou o romance subversivo e indecoroso, classificando-o como um atentado à organização da família brasileira. Como o AI-5 (Ato Institucional de Número 5) ainda não tinha sido promulgado no país, a obra literária voltou a ser comercializada em abril de 1967, após decisão do Tribunal Federal de Recursos favorável ao escritor.
Diante de tantos obstáculos e complicações, não é surpresa nenhuma que Nelson Rodrigues não tenha escrito mais nenhum romance ao longo de sua carreira. Na certa, ele deve ter chegado à conclusão que escrever peças teatrais e textos jornalísticos eram tarefas menos complicadas, pelo menos em termos burocráticos. Apesar de ser o único exemplar romanesco de Rodrigues, “O Casamento” é visto atualmente como um importante título da nossa literatura, classificado por muitos críticos como um clássico nacional.
“O Casamento” foi adaptado para o cinema por Arnaldo Jabor oito anos após sua publicação em livro. O filme homônimo chegou às salas de cinema em 1974 e conquistou dois Kikitos no Festival de Cinema de Gramado: o de melhor atriz coadjuvante (para Camila Amado no papel de Noêmia) e o Prêmio Especial do Júri (como melhor produção).
O enredo do romance “O Casamento” se passa no Rio de Janeiro no ano de 1966. Sabino Uchoa Maranhão, um bem-sucedido empresário carioca, está às vésperas de casar sua quarta filha, Glorinha. A moça é a caçula de Sabino e Eudóxia e sempre foi a filha favorita do milionário. Por isso, o pai não poupou esforços nem dinheiro para preparar o melhor casamento possível para a filhinha querida.
Um dia antes do casório, porém, Doutor Camarinha, o ginecologista de Glorinha e amigo da família Maranhão há muitos anos, aparece no escritório de Sabino. Ele está ali para revelar algo bombástico. Na hora, o pai de Glorinha imagina o pior: a filha não seria mais virgem e, ainda por cima, estaria grávida. De quem seria o filho, do noivo ou de outro homem? Os pensamentos de Sabino viajam loucamente. Para surpresa do empresário, a notícia não estava diretamente relacionada à sexualidade da noiva e sim ao do noivo. O Doutor Camarinha diz ter pegado Teófilo, o futuro marido de Glorinha, beijando a boca de José Honório, seu enfermeiro, em uma sala de seu consultório. Indignado com o comportamento dos rapazes, o médico se sentiu na obrigação de relatar o episódio para seu amigo.
Começa, assim, o drama de Sabino Uchoa Maranhão. O que ele deve fazer: avisar a filha sobre a homossexualidade de Teófilo e cancelar o casamento, provocando um grande escândalo na cidade, ou não avisar Glorinha e deixar o casamento ser efetuado, algo que pode ameaçar a felicidade futura de sua caçulinha? Indeciso, Sabino vai procurar Monsenhor, o padre responsável por realizar a cerimônia religiosa no dia seguinte. Monsenhor também é um velho conhecido da família Maranhão. Diante do padre, Sabino não consegue revelar o que o angustia.
Para piorar a situação, as horas precedentes ao casamento de Glorinha e Teófilo são marcadas por novas confusões. As outras três filhas de Sabino vão se lançar contra o pai, inconformadas com o tratamento privilegiado oferecido à irmã caçula. Glorinha vai revelar eventos constrangedores do seu passado, cometidos ao lado de Antônio Carlos, o filho falecido de Doutor Camarinha. E Sabino, angustiado com a indefinição do que fazer, vai convidar Noêmia, sua secretária, para uma tarde de sexo. Dessa maneira, o dia de todas as personagens do romance fica de pernas para o ar, em uma grande maluquice trágico-cômica. Ou seja, a história é digna dos melhores dramas produzidos por Nelson Rodrigues.
“O Casamento” tem pouco mais de 270 páginas e está dividido em 28 capítulos. Gostei tanto de sua história que comecei a leitura no sábado à tarde e a concluí no início da madrugada de domingo. Acabei lendo, portanto, o romance quase que de cabo a rabo em um único dia.
O primeiro aspecto que chama a atenção desta narrativa é o teor moralista do seu texto. As personagens são normalmente caricatas, o que torna a história engraçada. O bom humor está no paradoxo entre os valores sociais conservadores dos cariocas em público e o comportamento liberal das pessoas no âmbito privado. Se o homossexualismo, a infidelidade conjugal, o sexo antes do casamento, o ódio a integrantes da família e a violência, por exemplo, são encarados como imoralidades no discurso, na prática eles estão disseminados em quase todas as residências. E quando alguém não fez algo assim, na certa tem vontade de fazer. Por isso, temos estupros, chantagens, ménage à trois, orgias, incestos e sexo por interesse em doses cavalares. Ao ler Nelson Rodrigues esteja preparado para mergulhar no amplo universo do erotismo e da pornografia. Se a narrativa possui muitas críticas moralizantes, ela também expõe, indiretamente, as paranoias de uma sociedade extremamente preconceituosa. O machismo, a homofobia, a xenofobia e o preconceito social são os mais evidentes.
Outro elemento muito forte no texto de “O Casamento” é a dicotomia entre a linguagem popular e a extravagante. Ora temos palavras coloquiais (por exemplo, “pau d´água” para designar um bêbado), ora temos termos mais elaborados (por exemplo, “pederasta” para se referir a um homossexual). Essa mistura, uma marca de Nelson Rodrigues, traz graça e leveza à narrativa, apesar do teor dramático presente nos relatos. Nunca o texto do autor parece pedante ou configura-se uma linguagem neutra. Tudo tem um sentido e um significado de ser. Mesmo falando sobre as infinitas indecências dos seus conterrâneos, curiosamente, o autor quase nunca escreve palavrões. Gostei também da construção dos diálogos. Eles são vivos e carregam na oralidade, o que os deixa muito reais. Não à toa, o escritor tenha vindo do teatro.
Por falar em humor, a graça feita por Nelson Rodrigues é normalmente do tipo humor negro. Ele valoriza os momentos mais sórdidos/macabros de suas personagens. O leitor fica envergonhado por rir de situações tão delicadas. O riso é uma mistura de nervosismo e de incompreensão (Como alguém pôde pensar em algo tão bizarro?). Por exemplo, um rapaz gay cresceu revoltado com os espancamentos frequentes recebidos, desde a infância, do pai homofóbico. Depois que o pai sofreu um acidente e ficou paralítico em uma cadeira de rodas, o moço decide se vingar. Assim, chama um negão para transar com ele em sua casa. A dupla faz isso na frente do pai paralisado. Há também o caso da mocinha que perde a virgindade em uma orgia. Durante o ato sexual, o parceiro da jovem fica discutindo com os outros integrantes da casa se já é hora de ir embora ou se ele pode ficar mais um pouquinho. São tantas as maluquices do enredo que é preciso o leitor comprar a ideia do escritor. Se ele não fizer isso, o romance corre o risco de parecer inverossímil e profundamente chato.
Por fim, temos em “O Casamento” uma magistral mistura entre passado e presente. A narrativa é inteiramente construída pela união entre acontecimentos atuais e antigos. Os dois caminham lado a lado o tempo inteiro. Em meio a uma cena do presente, o narrador do tipo onisciente mergulha na mente das personagens e consegue, através dos pensamentos e das lembranças delas, voltar às situações de anos atrás. Esse recurso propicia mais ação e dramaticidade à história. Se esse recurso não chega a ser uma novidade da literatura, ao menos Nelson Rodrigues utiliza essa aglutinação temporal de maneira sublime, como poucos escritores na ficção.
Adorei este livro. Achei sua história inteligente, divertida e muito bem amarrada. O estilo de escrita de Nelson Rodrigues contribui para a riqueza da narrativa e para a potencialização do drama. A exposição de um pensamento profundamente conservador e preconceituoso também é, de certa forma, salutar. Apesar de não concordar com a visão machista, homofóbica, racista e elitista das personagens do livro (o Doutor Camarinha é talvez o melhor retrato disso), acho interessante termos o registro dessas crenças pouco politicamente corretas em nossa literatura. Afinal de contas, um dos papéis da literatura é de espelhar os pensamentos e as ideologias de uma época. E nesse sentido, os anos de 1960 foram um dos momentos de maior intransigência político-social da história do nosso país. Não à toa, essa foi a década do Golpe de 1964. E imaginar que há quem sinta saudades desse tempo e queira reviver a vida daqueles anos...
Para quem vibra com o retorno do conservadorismo na sociedade brasileira nos últimos anos, ler Nelson Rodrigues poderá ajudar a compreender os efeitos nefastos dessa tendência e dos preconceitos por ela trazidos. Nesse caso, “O Casamento” pode ser visto como uma obra cada vez mais atual, o retrato de um Brasil retrógrado, pseudo moralista e muito reprimido sexualmente. Se a ministra Damares Alves, da Mulher, Família e Direitos Humanos, ler este livro, na certa irá querer proibi-lo no dia seguinte.
Gostou deste post e do conteúdo do Blog Bonas Histórias? Se você é fã de literatura, deixe seu comentário aqui. Para acessar as demais críticas, clique em Livros. E aproveite para curtir a página do Bonas Histórias no Facebook.