Admito que antes de ler “O Efeito Urano” (Rocco), não conhecia nada da literatura de Fernanda Young. A imagem que tinha da escritora fluminense estava mais associada à figura polêmica da apresentadora do programa “Saia Justa”, do canal a cabo GNT, e ao trabalho dela como roteirista de programas de TV, como os seriados “Os Normais e “Minha Nada Mole Vida”. Com o lançamento, no ano passado, de “Pos-F” (LeYa), o décimo quarto livro (e a primeira não ficção) de Young, achei que já havia passado da hora de conhecer seu trabalho literário. Este post que faço no Blog Bonas Histórias hoje é uma mea-culpa pela minha ignorância e uma retratação pública pela minha demora em ler uma das vozes mais controversas da atual literatura nacional.
Minha escolha por “O Efeito Urano” se deu porque esta obra integrou uma interessante coleção chamada de “Cinco Dedos de Prosa”, publicada pela Editora Objetiva na primeira metade dos anos de 2000. A proposta da série literária era lançar cinco livros de cinco escritores diferentes. Cada um deles ficaria responsável por escrever uma narrativa que falasse de um dedo da mão humana (daí os “Cinco Dedos de Prosa”!). Assim, Carlos Heitor Cony produziu “O Indigitado” (Objetiva), história de um homem que nasceu sem o dedo indicador. Mário Prata, por sua vez, escreveu “Buscando o Seu Mindinho” (Objetiva), uma coletânea de contos sobre o dedo mínimo. Luís Fernando Veríssimo publicou “O Opositor” sobre o polegar. Manuel Carlos deveria escrever um romance sobre o dedo anular (algo que a editora está aguardando até hoje...). E coube a Fernanda Young, a única mulher do grupo, a tarefa de escrever uma trama sobre o dedo médio. O resultado é “O Efeito Urano”, o quinto romance da carreira da escritora fluminense. Foi Fernanda quem escolheu o dedo que abordaria em sua história. A ideia de falar do dedo médio veio por causa da conotação sexual que ele expressa em várias culturas.
O livro foi publicado inicialmente, em 2001, pela Objetiva. Nesta época, Fernanda Young tinha 31 anos. “O Efeito Urano” foi um grande sucesso comercial. Em menos de três dias, a primeira edição da obra se esgotou nas livrarias. Enfim, a autora vivia uma fase de best-seller, sendo reconhecida e valorizada não apenas como roteirista de TV, mas também como escritora. Apesar de seus livros receberem boas críticas, eles jamais tinham conseguido chegar perto da lista dos mais vendidos. Com “O Efeito Urano”, essa lógica se inverteu. O elogio da crítica e a aclamação de um público maior e mais diversificado passaram a caminhar juntos. Em 2010, ou seja, nove anos depois do lançamento deste título pela coleção “Cinco Dedos de Prosa”, a editora Rocco resolveu publicar uma nova edição do quinto romance de Young. Assim, “O Efeito Urano” voltou as prateleiras das livrarias nacionais.
A história de “O Efeito Urano” se passa em São Paulo. A trama é narrada ora em primeira pessoa (pela protagonista) ora em terceira pessoa (por um narrador misterioso que será revelado somente no final do livro). As duas narrações caminham entrelaçadas, descrevendo as mesmas situações, porém com pontos de vistas distintos (ou melhor, complementares). A obra aborda o drama de Cristiana, uma jornalista freelancer que está próxima de virar uma trintona. Casada com Guido, um psicanalista bem-sucedido, Cristiana tem uma vida confortável e feliz. Magra, bonita, elegante, divertida e inteligente, ela é uma esposa fiel que ama o marido.
A vida de Cristiana sofre uma grande guinada quando um curioso e malsucedido evento cósmico ocorre entre os planetas de Urano e Saturno (daí o nome do livro). Os acontecimentos no confim do sistema solar acabam influenciando diretamente o comportamento da moça. Dessa maneira, ela é levada a cometer loucuras que fogem da lógica que sua rotina pragmática seguia até então.
Neste período tumultuado do seu horóscopo, Cristiana conhece Helena, uma dondoca gorda, feia, sem estilo e um tanto chata. Separada de um rico industrial e sem filhos, Helena passa o dia sem nada o que fazer. Assim, aproveita para viajar para o exterior várias vezes ao ano, gastando um pouco a fortuna recebida do ex-marido. Ela também mergulha no alcoolismo e engata um relacionamento amoroso atrás do outro. Todos os parceiros sexuais de Helena, após o casamento, são integrantes do sexo feminino. Ela não esconde de ninguém o fato de ser lésbica e de gostar de variar constantemente de parceira.
Mesmo enxergando as várias diferenças de personalidade entre elas, Cristiana faz amizade com Helena. Pouco tempo depois, a jornalista, surpreendentemente, acaba se apaixonando pela socialite. Assim, as duas mulheres começam um tórrido romance. Esta é a primeira experiência homossexual de Cristiana. Até então, ela nunca tinha sentido desejo nenhum por outra mulher, fato que a pega de surpresa. De tão apaixonada que fica por Helena, Cristiana se atira no romance de cabeça, esquecendo-se do seu trabalho, do marido e dos amigos. Não existe, a partir daí, mais nada no mundo para ela a não ser a majestosa amante. As duas caem nas noitadas juntas, compartilhando os intermináveis copos de bebidas alcoólicas e a cama.
Não será novidade para ninguém a constatação de que, à medida que as páginas do livro evoluem, o casamento de Cristiana e Guido irá balançar. O curioso é que Helena parece não gostar tanto assim da sua nova parceira, desprezando e ignorando a bela jornalista. Angustiada com as brigas com o marido, que ainda a ama e que ela também ama, e com o comportamento frio da amante, Cristiana se lança em uma amalucada crise de identidade. O que fazer? Com quem ficar? Como agir em uma situação tão contraditória? Qual o problema de amar uma mulher tão apaixonadamente?
“O Efeito Urano” é um ótimo livro. Ele possui 174 páginas e não tem a divisão tradicional de capítulos. A proposta de Fernanda Young é narrar os dramas de sua protagonista em um texto corrido, como se a obra fosse um desabafo longo e ininterrupto dessa personagem. A única quebra que o texto tem é a inserção de uma narração em terceira pessoa (que, mais tarde, descobriremos ser um texto em primeira pessoa de um narrador inusitado e onisciente). Esse recurso (narração dupla e entrecortada) é espetacular e torna o livro ainda mais interessante.
De certa maneira, o estilo de “O Efeito Urano” se assemelha ao dos romances “A Paixão Segundo G.H.” (Rocco), de Clarice Lispector, e “Os Cus de Judas” (Alfaguara), do português António Lobo Antunes. Ou seja, para apreciar este livro de Fernanda Young, é necessário o leitor estar minimamente habituado ao mergulho nos devaneios da protagonista-narradora, que conta destrambelhadamente seus dramas sem uma ordem temporal e linear (algo valorizado pela literatura Pós-Moderna). A construção da história é um processo que o leitor irá montar pouco a pouco e por conta própria, enquanto avança nas páginas aparentemente sem sentido da obra. Eu adorei tanto a proposta de Fernanda Young quanto de sua execução. Contudo, sei que essa escolha narrativa poderá desagradar os leitores mais tradicionais, ansiosos por encontrar, em “O Efeito Urano”, uma estrutura mais didática e quadrada.
O texto e a trama misturam a dureza do relato de Cristiana, uma mulher à beira da loucura, com o jeito escrachado de Young. A escritora não tem receio de colocar a mão nas feridas e falar o que pensa, independentemente do que os outros vão achar dela. De certa forma, a autora transfere essa sua característica (evidente nas entrevistas concedidas e nos programas que fazia no GNT) para sua protagonista-narradora. Assim, mergulhamos nas experiências sexuais de Cristiana, o que confere muito erotismo ao romance, e nas suas angustias mais íntimas, fato que torna a obra um thriller psicológico.
O livro também tem boas doses de humor (evidentemente, humor do tipo sarcástico, humor negro) e apresenta muita intertextualidade cultural e literária. Essas são marcas da ficção de Joung. Em meio à história trágica que a narradora relata aos leitores, vemos pitadas e sacadas bem-humoradas. A relação dos acontecimentos nos planetas distantes com a ruína da vida da personagem principal na Terra e a revelação do narrador misterioso são as provas mais concretas disso. Impossível não rir do que o texto deste romance nos apresenta. Além disso, como uma mulher culta e antenada, Cristiana está o tempo todo fazendo referências a elementos da cultura pop, que permeiam o seu dia a dia. Em uma passagem curiosa, por exemplo, ela chega a citar de forma negativa a própria escritora que a concebeu. Hilário! Fernanda Young, para a protagonista de “O Efeito Urano”, é uma escritora feia. Incrível essa brincadeira narrativo-intertextual.
O melhor do livro está na sua parte final. Isso não quer dizer que as partes anteriores não sejam boas. Elas são. O que quero salientar aqui é que o desenlace é espetacular. As revelações deixadas para o desfecho são realmente surpreendentes. Em uma tacada genial, Fernanda Young insere um novo personagem na trama (o tal narrador secreto), que acaba interferindo diretamente nos acontecimentos. A história que já era boa ficou maravilhosa com esse complemento.
Não sei se o conjunto de obras literárias de Fernanda Young é tão bom quanto “O Efeito Urano”. Descobrir isso é a minha lição de casa para os próximos meses. Porém, pela amostra que tive com este romance, tudo indica que temos aqui uma escritora de mão cheia, capaz de oferecer uma ficção corajosa, inteligente e recheadas de surpresas para os leitores que procuram novidades.
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