Vamos começar a discussão proposta para esta segunda temporada da coluna Teoria Literária. Para quem ainda não estiver ligado, aviso mais uma vez: vamos falar em 2019 sobre os Elementos da Narrativa.
Hoje, será detalhado seu primeiro componente, o Enredo. Os demais dez Elementos da Narrativa (BONACORCI, 2018) serão apresentados ao longo dos próximos meses aqui no Blog Bonas Histórias.
Segundo Cândida Vilares Gancho, o enredo de uma obra literária é composto pelo conjunto de fatos ocorridos ao longo da narrativa. Dependendo da preferência do analista literário, esse termo pode ser substituído por intriga ou trama, seus sinônimos mais comuns (2014, p. 11).
Para Massaud Moisés, o enredo pode ser compreendido como a união de gestos e de atos presentes em uma ficção (2014, p. 118). E para Marina Cabral da Silva, ele é a sucessão de fatos que acontecem em uma história, englobando todas as situações vividas pelas personagens retratadas (2017).
Percebe-se, de acordo com as definições muito parecidas desses autores, a preocupação de se considerar o enredo como a totalidade dos acontecimentos inseridos em uma produção literária. Segundo a teoria literária, a trama é quem confere sentido, valor e emoção à leitura de uma história.
É importante não confundir o enredo com o resumo ou a síntese de determinada obra, como ocorre com frequência na crítica literária. Lá, enredo é sinônimo de apresentação breve do livro para os futuros leitores. Dessa maneira, eles podem julgar se vale a pena ou não iniciar a leitura da publicação citada.
Para a teoria literária, a intriga também pode ser vista como a estrutura da narrativa, o esqueleto do romance. É ela quem dá sustentação e lógica à história, permitindo o desenrolar dos acontecimentos ficcionais. Exatamente por essa razão, compreender as particularidades do enredo é parte fundamental do trabalho do analista literário, sendo, portanto, um bom ponto de partida para qualquer estudo de investigação literária.
No caso da análise microscópica, o analista literário escolhe uma parte do enredo para estudar (se aprofundando nesta investigação), enquanto na análise macroscópica, o analista possui como escopo a totalidade ou grande parte do enredo (estudando-o de forma mais genérica).
Em suma, independentemente do tipo de análise realizado, o primeiro passo para quem analisa um livro ou um conjunto de livros de determinado autor é identificar o enredo da obra ou das obras estudadas (GANCHO, 2014: p. 11-17).
Existem três aspectos que devem ser verificados em relação a este tema: os componentes do enredo, as partes estruturais do enredo e a análise temática do enredo.
1) Componentes do enredo:
O enredo de um romance possui basicamente dois componentes: o conflito e as ações que permeiam este conflito.
1.1) Conflito:
O conflito, de acordo com Cândida Vilares Gancho, é a parte principal da história de um romance (2014, p. 13). Ele se dá pela tensão existente entre as vontades, os desejos e os interesses dos protagonistas e os obstáculos criados pelas forças opositoras (os antagonistas). Esse choque antagônico de motivações é chamado de conflito.
A intriga de Memorial de Maria Moura, clássico de Rachel de Queiroz publicado em 1992, se dá pela incompatibilidade de papéis que sua protagonista precisa assumir. Maria Moura, uma jovem órfã, precisa desde cedo encarar a brutalidade da sociedade machista do Sertão nordestino. Para sobreviver nesse ambiente hostil a uma mulher bonita e inteligente, ela faz cara de mau, empunha armas, esconde seu corpo em vestimentas masculinas e parte para o banditismo, liderando um grupo de criminosos. Para se manter à frente de seu bando, Maria Moura é obrigada a ser como eles, renegando sua feminilidade e exaltando sua masculinidade. Porém, seu sonho é ter um grande amor e viver ao lado dele como uma mulher comum. Infelizmente para ela, as duas coisas (sua vida atual e seus desejos mais íntimos) são incompatíveis. Ela precisará escolher um dos caminhos para seguir. Ou permanece sendo uma líder criminosa insensível e violenta ou mergulha em sua paixão, deixando aflorar sua feminilidade.
A existência do romance e da maioria das categorias narrativas se deve única e exclusivamente ao surgimento de um conflito que chame a atenção do leitor. Sem ele, não há trama/enredo de qualidade.
O conflito pode ser de ordem moral, religiosa, econômica, sentimental, política, social e psicológica. O livro Memorial de Maria Moura pode ser entendido como uma obra com um conflito social (Maria Moura contra a sociedade machista do Sertão). Em Memorial do Convento, romance de José Saramago lançado em 1982, o conflito é essencialmente de natureza religiosa (Bartolomeu Lourenço de Gusmão, Baltasar Mateus, Blimunda de Jesus e o rei D. João V estão sempre se opondo aos desígnios da Igreja Católica). Em Auto da Barca do Inferno, texto teatral produzido por Gil Vicente no século XVI, o conflito adquire contornos moralizantes (quem merece ir ao Céu e quem será punido com a ida ao Inferno?).
Em Amor de Perdição, principal obra do português Camilo Castelo Branco, temos protagonistas, Teresa Clementina de Albuquerque e Simão Botelho, com inquietações sentimentais. O casal de namorados deve ficar junto em nome do amor ou deve acatar as ordens de suas famílias e viver separado? Um bom exemplo de conflito psicológico é o romance Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes. O protagonista-narrador sofre por não se situar nem em Portugal nem em Angola, dois lugares extremamente perturbadores para ele. Em Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, uma parte do seu enredo, aquela formada pela disputa entre o exportador carioca Mundinho Falcão e o coronel baiano Ramiro Bastos, é um conflito de ordem econômica e política.
Segundo Robert McKee (2015) e Arthur Quiller-Couch (2006), existem duas outras formas de classificar um conflito. A primeira delas é a partir de quem se opõe ao protagonista. Assim, o conflito pode ser do tipo personagem versus personagem (indivíduos que disputam algo), personagem versus sociedade (a personagem principal se lança contra uma comunidade, uma instituição, um grupo social ou uma nação), personagem versus ele mesmo (protagonista enfrenta dilemas internos que o atrapalham na realização dos seus objetivos), personagem versus natureza (quando eventos naturais - furacões, terremotos, enchentes, epidemias, animais selvagens, ambientes hostis ou invasões alienígenas - atrapalham o indivíduo), personagem versus inevitável (quando o opositor é uma força divina ou algo relacionado ao destino) e personagem versus máquina (a ciência, sua tecnologia e seus equipamentos são os principais adversários do herói ficcional).
Os conflitos também podem ser caracterizados pelo nível de intensidade das forças opositoras em relação à disposição do protagonista. Assim, eles são classificados como dramático (a força opositora é equivalente em poder à força do protagonista, equilibrando a disputa, que termina quando uma delas se sobrepõe de maneira definitiva à outra), trágico (quando a força opositora é irreversível, independentemente do que a personagem principal faça para tentar mudar tal situação) e épico (há um elevado desnível em prol da força opositora, geralmente de poder divino ou natural; por isso, para vencer, o protagonista deve fazer um esforço sobre-humano).
É importante não confundir o tipo de conflito segundo o seu nível de intensidade (Drama, Trágico e Épico) com os gêneros literários (Dramático, Lírico e Épico), que apresentam as mesmas nomenclaturas ou nomes muito parecidos.
Um exemplo de conflito dramático é o Romance do Pavão Misterioso. Nesse cordel nordestino, Evangelista (o protagonista) é um rapaz turco que se apaixona por Creuza, uma linda condessa grega. O problema é que o pai da moça aprisionou a filha no alto de uma torre em Atenas, sendo quase impossível alguém contatá-la. Evangelista só consegue superar seu adversário (pai de Creuza) quando adquire um artefato que o faz voar. Assim, ele rapta sua amada e foge com ela para a Turquia.
Outros exemplos de conflitos dramáticos são: Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, e O Ateneu, de Raul Pompéia. No primeiro livro, Isaura é uma escrava de um homem cruel. Ela tenta adquirir a todo custo sua alforria. E na segunda obra, o menino Sérgio tenta sobreviver dentro de um colégio interno às maldades impetradas por colegas, professores e pelo diretor da instituição.
O conflito trágico pode ser visto em O Primo Basílio, romance clássico de Eça de Queirós. Luísa Mendonça de Brito Carvalho, a protagonista, jamais conseguiria superar o medo de ter sua traição descoberta pelo marido, o bom e pacato engenheiro Jorge Carvalho. Depois de se livrar de Juliana, a empregada que ameaçava contar a infidelidade da patroa com Basílio, Luísa ainda sim padeceu dia a dia de pânico de ser descoberta, tendo sua saúde física e mental consumidas.
Outros dois casos de conflitos trágicos são Ciranda de Pedra, romance escrito em 1954 por Lygia Fagundes Telles, e Grande Sertão: Veredas, obra máxima de João Guimarães Rosa. Em Ciranda de Pedra, Virgínia jamais superaria o trauma de sua infância e o rancor de ter sido desprezada pela família. E em Grande Sertão: Veredas, era impossível Riobaldo ser chefe de um bando de jagunços e, ao mesmo tempo, estar apaixonado pelo colega e amigo Reinaldo.
Por sua vez, O Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, obra de Ariano Suassuna publicada em 1971, possui um conflito épico. Dom Pedro Dinis Ferreira Quaderna, o protagonista dessa trama, imagina-se o herdeiro natural de um tradicional trono de um reino nordestino. O problema é que o Brasil é uma República e não mais uma Monarquia. Além disso, ninguém em sã consciência validaria a história de um reino instalado no Nordeste do país. Assim, será quase impossível para o herói de Suassuna conseguir realizar seu sonho. As forças opositoras que impossibilitam Dinis Ferreira Quaderna (políticos, população pobre, militares, imprensa, empresários, etc.) de realizar suas intenções são muito mais poderosas do que as da personagem principal do romance.
Repare que O Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta é um romance, pertencente ao gênero narrativo (não é uma epopeia segundo os gêneros literários), mas tem seu conflito classificado como épico (de acordo com o nível de intensidade do seu conflito).
Outras obras literárias também possuem conflitos épicos, mesmo não sendo epopeias. O Senhor dos Anéis, saga fantástica do inglês R. R. Tolkien, Não Verás País Nenhum, romance de Ignácio de Loyola Brandão, O Memorial do Convento, livro de José Saramago, e Fogo Morto, obra de José Lins do Rego, têm elevados desníveis de forças em prol dos antagonistas. Os heróis dessas tramas precisam fazer um esforço sobre-humano para derrotar o poder divino ou quase divino dos seus adversários.
1.2) Ações que permeiam o conflito:
As ações são os acontecimentos que tangenciam o conflito, dando sustentação a ele. Elas possuem várias funções em uma trama: apresentam as personagens, explicam os motivos para o antagonismo existente no enredo, permitem a evolução da história do início ao fim, conferem suspense e dramaticidade à narrativa e transmitem credibilidade ao relato feito.
Um conflito sem ação é algo estático, sem emoção e propenso à inércia. Por mais importante que seja um conflito para o enredo, é preciso justificá-lo através de um conjunto de ações que o legitime e o faça se desdobrar em novos acontecimentos. Para uma trama caminhar ou se materializar nas páginas do livro, o autor trabalha essencialmente com as ações.
Existem dois tipos de ações segundo a variação do tempo narrativo: a cena e o sumário. A cena é um texto que se concentra em um tempo narrativo pequeno. Ou seja, o escritor conta em detalhes os acontecimentos passados em um momento específico da trama. Geralmente, a cena é descrita passo a passo como está acontecendo ou como aconteceu. Ela é destinada aos momentos mais importantes do enredo. A cena tem profundidade, é narrada sem pressa (como se fosse filmada "em câmera lenta"), possui muitos pormenores e confere vivacidade à história.
O sumário, por sua vez, é um texto que descreve acontecimentos em um tempo narrativo longo. O autor opta por narrar superficialmente os acontecimentos menos importantes, não se atentando para nenhum ponto específico desta parte da história. O texto adquire, assim, rapidez. Muitas coisas acontecem em poucas frases e parágrafos. O sumário serve para contextualizar, para explicar, para lembrar o leitor ou para apresentar algo ou alguém. Ele tem extensão, é narrado com celeridade (como se fosse filmado "em câmera rápida"), possui poucos detalhes e confere racionalidade à história.
Em A Senhorita Simpson, a principal novela de Sérgio Sant'anna, o narrador utiliza-se de uma cena para relatar o dia em que fez sexo com sua professora de inglês em plena sala de aula (algo que ele, obviamente, considerava importante na narrativa). A cena toda está descrita ao longo de quatro páginas (uma extensão considerável para uma novela). Nessa parte, o narrador-personagem detalha seus sentimentos, seus pensamentos, suas sensações e os diálogos que teve com as demais pessoas. Veja:
Às vezes um momento particularmente intenso, numa história, não se refere à ação, mas ao vazio. E ali estava eu dentro de uma sala de aula deserta, sortilégio que fazia bater meu coração e me transportava a outro espaço e tempo, imersos em poeira de giz. Senti-me numa das cadeiras, acendi um cigarro, ignorando a proibição e olhei para o quadro-negro vazio, onde se podia inscrever tudo, desde obscenidades infanto-juvenis até inocentes idiossincrasias de Mister Jones. Mas o que eu inscrevi, naquele quadro, foi uma outra sala de aula, numa tarde modorrenta de Botafogo, com o sol batendo de viés sobre a blusa suada da menina ao meu lado, marcando as pontas de dois pequenos botões nos quais eu senti um desejo súbito de tocar, desconhecendo de onde vinha ordem tão imperiosa que no entanto eu não podia obedecer. E alguma coisa latejava em meu corpo, naquele momento e agora, quando tudo era revivido (...).
Do outro lado, pelo corredor, também esbaforida, vinha Miss Simpson.
- Victory, victory - ela anunciou, atirando-se em meus braços.
Há uma dúvida que me assalta e me angustia até hoje, principalmente quando leio certo tipo de coisas nos jornais. Poderia aquilo ser considerado um estupro, de minha parte? Às vezes tento recapitular objetivamente, buscando dirimir a questão.
Uma coisa é certa: fora Miss Simpson quem se atirara em meus braços e dera o primeiro beijo, talvez de pura exultação. Depois ela se afastou, é verdade, mas apenas o suficiente para explicar o que se passara no gabinete de Mr. Higgins. (...).
O certo é que retomei Miss Simpson em meus braços, agora com uma certa fúria passional que a foi empurrando até a parede onde se encontrava o interruptor de luz, que o próprio peso dos corpos pressionou, antes de deslizarmos para o chão.
Ouvi alguns queixumes, como "Behave yourself, Mr. Silva", "Are you crazy, Mr. Silva?", "What do you think you are doing, Mr. Silva?", que depois cederam lugar a estertores e grunhidos onomatopéicos que bem poderiam tratar-se das obscenidades em inglês a que se referiam o Paiva e às quais correspondi, dramaticamente: "Don't be afraid, Miss Simpson; I'm just making love to you. I love making love to you, Miss Simpson". And so on.
Curiosamente, logo que tudo terminou, não consegui sentir nada além de um tremendo vazio, só preenchido pelo inferno sonoro habitual que chegava das ruas de Copacabana, plenas de reflexos luminosos que estampavam tonalidades fantasmagóricas na pele de Miss Simpson.
Tive a sensibilidade de não acender a luz enquanto nos recompúnhamos e, dentro do táxi, segurei a mão de Miss Simpson, que chorava baixinho em meu ombro. De vergonha? De tristeza? De comoção? Ou quem sabe tudo junto?
Deixei-a em segurança na porta do seu prédio e voltei no mesmo táxi para casa. Como estava meio bêbado, logo adormeci. (SANT'ANNA, 2008, p.147- 150).
Na mesma novela, Sérgio Sant'anna utiliza-se do sumário para narrar os dias que se sucederam ao ato sexual do aluno com a professora. Esse trecho vem logo na página seguinte. Em um único parágrafo, o narrador explica ao leitor o que aconteceu depois, mais precisamente nos dois dias posteriores. Repare que aqui o texto ganha velocidade e um menor detalhamento das ações da história.
Embora tivesse ido trabalhar normalmente, para evitar suspeitas, obviamente não fui à aula, pois precisava de um tempo para que as coisas se acalmassem dentro da minha cabeça e fora dela. Este tempo não durou muito, porque no dia seguinte recebi um telefonema que me deixou sobressaltadíssimo (SANT'ANNA, 2008, p.151).
As ações também podem ser classificadas de outras quatro maneiras: (1) segundo o local onde elas se passam, (2) dependendo de como elas se desencadeiam na trama, (3) de acordo com sua velocidade de evolução e (4) a partir de sua importância para o enredo.
Pela perspectiva do local onde ocorrem, as ações são chamadas de internas ou externas. O enredo engloba tantos as ações internas, que se passam na consciência ou no subconsciente das personagens, quanto as ações externas, que se passam efetivamente no ambiente físico, no mundo concreto da ficção. Tudo o que acontece na imaginação, na mente ou nos sonhos das personagens faz parte do primeiro grupo. Já a viagem de alguma personagem pela cidade ou por cidades, o deslocamento de um objeto em cena e a luta física entre o protagonista e o antagonista pertencem ao segundo grupo (MOISÉS, 2014, p. 118).
Nos trechos acima citados de A Senhorita Simpson, quando o narrador se lembra de fatos de sua infância ("Mas o que eu inscrevi, naquele quadro, foi uma outra sala de aula, numa tarde modorrenta de Botafogo, com o sol batendo de viés sobre a blusa suada da menina ao meu lado..."), temos uma ação interna. Depois, quando o narrador volta aos acontecimentos passados com Miss Simpson, temos uma ação externa.
O segundo tipo de classificação das ações é feito a partir do desencadeamento dos fatos. O enredo pode ser constituído por ações lineares ou por ações não lineares. A linearidade ocorre quando o tempo, o espaço e as personagens da trama são apresentados de maneira lógica. Assim, o leitor consegue compreender rapidamente a cronologia dos fatos narrados, entendendo o começo, o meio e o fim da história lida. Por outro lado, as ações não lineares não seguem uma sequência cronológica. O enredo, nesse caso, se desenvolve com uma série de descontinuidades narrativas. São comuns os saltos, as antecipações, as retrospectivas, os cortes e as rupturas na trama. As ações não lineares não respeitam uma sequência temporal e/ou espacial (SILVA, 2017).
As ações também podem ser classificadas segundo a velocidade dos acontecimentos. Enredos intensos são marcados, normalmente, pela rapidez com que as cenas ocorrem na obra literária. A maior velocidade de ação permite a inclusão de grande volume de fatos e de uma maior quantidade de personagens, além de o espaçamento temporal da narrativa ficar mais dilatado (abrangendo um período de tempo mais longo). Por outro lado, enredos densos são caracterizados tipicamente pela lentidão dos acontecimentos. As cenas demoram mais para se suceder. Essa menor velocidade permite a condensação dos ingredientes narrativos. Se os enredos densos se apresentam com um menor volume de acontecimentos e uma quantidade limitada de personagens, suas ações, porém, são mais profundas e distribuídas em um espaço temporal menor (MOISÉS, 2014, p. 123-130).
E, por fim, temos a classificação das ações segundo a importância delas para a trama. As ações relacionadas diretamente ao conflito, que influenciam sensivelmente o enredo, são chamadas de principais. As ações que não estão vinculadas diretamente aos pontos centrais do conflito, e, portanto, ao enredo, são chamadas de secundárias. Todos os romances, assim como todas as narrativas, possuem ações principais e secundárias em sua composição.
2) Estrutura do enredo:
Em termos estruturais, todo enredo é dividido em quatro partes, conforme indicado por Cândida Vilares Gancho (2014, p 13-14). São essas as divisões tradicionais da narrativa: (1) a exposição, (2) a complicação, (3) o clímax e (4) o desfecho.
A exposição, também chamada de introdução ou de apresentação, é geralmente o começo da história. É nesse momento em que o narrador irá revelar os fatos iniciais da trama, apresentará as personagens do livro e contextualizará a narrativa de acordo com o tempo e o espaço. O objetivo desta parte é situar o leitor na história.
A complicação, conhecida em algumas ocasiões como desenvolvimento, sucede a exposição ao apresentar o conflito do romance. Como acabamos de ver no tópico anterior, o conflito é o choque entre a vontade do protagonista de alcançar algo e o obstáculo que o impede de atingir esse objetivo/sonho. A complicação, portanto, detalha como e por que o conflito se desenvolve. Tradicionalmente, essa é a parte mais volumosa do romance, sendo necessárias mais páginas para seu relato.
A terceira parte do enredo é o clímax. Esse é o momento de maior tensão da história. A trama chega ao seu ponto culminante, exigindo obrigatoriamente uma definição. Trata-se do embate final entre as forças opositoras que formam o conflito. Assim, algo irá acontecer para o bem ou para o mal do protagonista. O clímax é a parte principal de um romance, servindo de referência às outras partes do enredo, que se organizam em função dela.
O desfecho, também chamado de desenlace ou conclusão, ocorre após a apresentação, por parte do autor, de uma solução final para o conflito (clímax). Essa é a parte derradeira da narrativa. No desfecho, o narrador explica ao leitor como a história termina. São os fatos finais, aqueles que antecedem ao fechamento definitivo do livro. Esse encerramento pode ser feliz, trágico, cômico, surpreendente, inusitado, etc. O desfecho pode ser do tipo aberto (ou seja, subjetivo, exigindo uma interpretação por parte do leitor) ou fechado (objetivo, não exigindo qualquer interpretação de quem lê a obra).
Usando como exemplo A Varanda do Frangipani, romance de Mia Couto, podemos dividir essa história em quatro partes. A exposição se dá quando o fantasma do carpinteiro Ermelindo Mucanga informa o leitor que seu "descanso eterno" está prestes a ser interrompido. O motivo dessa preocupação do finado protagonista está relacionado ao fato do governo independente de Moçambique desejar torná-lo um herói nacional. Essa condecoração póstuma iria acabar com o sossego da personagem. Para "morrer definitivamente", a alma do carpinteiro segue o conselho de seu amigo pangolim (um tipo de tamanduá que teria a propriedade de frequentar ao mesmo tempo o mundo dos vivos e dos mortos) que diz para ele "morrer novamente". Para isso, Ermelindo Mucanga deveria visitar o corpo de um homem que estivesse prestes a falecer. Assim, ele poderia "descansar em paz" quando o corpo visitado morresse. O corpo escolhido é de um investigador de polícia chamado Izidine Naíta. O policial em questão visitava o asilo São Nicolau, onde o corpo de Mucanga estava enterrado, para investigar o assassinato do diretor da instituição.
A complicação surge quando Ermelindo Mucanga passa a partilhar o corpo do policial. Sendo ser humano outra vez, o antigo carpinteiro volta a sentir os prazeres de viver e começa a torcer para que seu "hospedeiro" permaneça vivo por mais tempo. Aqui temos efetivamente o conflito do romance. Ermelindo, que se envolve com as personagens do asilo e fica intrigado com o mistério da morte do diretor do lugar, se divide entre torcer pela morte de Izidine Naíta (assim, voltaria ao seu sono eterno) e torcer para que o policial não morra (assim pode usufruir indiretamente dos prazeres que a vida lhe proporciona).
O clímax do romance acontece quando o policial descobre que os assassinos do diretor não são os moradores (pacientes e funcionários) do asilo São Nicolau e sim os contrabandistas de armas que usavam o lugar para esconder armamentos. Nesse momento, Mucanga começa a lutar para que o policial Naíta não seja assassinado.
E o desfecho da trama se dá quando Mucanga consegue evitar a morte do policial, cumprindo sua nova missão. A partir daí ele passa a ter sua consciência tranquila (fez o certo naquele momento).
A mesma dinâmica pode ser vista em Navalha na Carne, obra do dramaturgo Plínio Marcos publicada em livro em 1968. A exposição se dá ao final de um dia de trabalho de Neide Sueli, quando ela, uma prostituta, volta para sua casa, um quarto alugado em um local decadente. Lá, ela encontra Vado, seu cafetão. Surpreendentemente, ele não foi embora. Ele está mal-humorado e violento.
A complicação ocorre quando o casal começa uma discussão sobre onde estaria o dinheiro dos programas do dia anterior de Neide Sueli. A suspeita, então, recai sobre Veludo, o homossexual que trabalha no local. Ele é chamado para se defender da acusação de roubo. Assim, a discussão prossegue, agora tendo três partes envolvidas (Neide, Vado e Veludo).
O clímax acontece quando se descobre o motivo do sumiço do dinheiro. Nesse momento, Neusa Sueli, cansada das ofensas e do desprezo de seu cafetão, pega uma navalha e ameaça a vida de Vado, caso ele não praticasse sexo com ela naquele instante.
E o desfecho ocorre quando Vado, usando seu charme e sua lábia, consegue desarmar Neusa Sueli, abandonando-a sozinha no quarto. O desfecho pode ser considerado aberto, pois não sabemos se o abandono é pontual ou definitivo.
Para se compreender um enredo em sua totalidade, é preciso delimitar sua estrutura. Conhecer onde começa e onde termina cada uma das quatro partes da trama (exposição, complicação, clímax e desfecho) ajuda o analista literário a entender o romance ou a narrativa estudada.
3) Análise temática do enredo:
O enredo precisa também ser analisado em relação ao seu conteúdo. Os três elementos desta análise são o tema, o assunto e a mensagem (GANCHO, 2014, p. 52). A identificação das características do estilo literário de um autor passa obrigatoriamente pela investigação do conteúdo de suas obras. Normalmente, cada grande autor trabalha um conjunto específico de ideias.
O tema é a abstração conceitual do enredo. Trata-se da ideia principal que uma obra literária aborda em suas páginas. Normalmente, ele é resumido em uma única palavra, em um termo ou em uma expressão.
Por exemplo, Dom Casmurro, romance de Machado de Assis, é um livro que tem como tema o ciúme masculino. Madame Bovary, de Gustave Flaubert, tem como temática principal a traição conjugal feminina. Senhora, de José de Alencar, tem como tema a vingança feminina. Toda obra literária possui um tema e ele precisa ser identificado pelo analista literário.
O segundo elemento é o assunto. O assunto é o detalhamento maior do tema. Enquanto o tema é mais genérico, o assunto é mais específico. Pode-se também ver o assunto como uma espécie de síntese do enredo. Na maioria das vezes, obras literárias com um mesmo tema apresentam assuntos totalmente distintos.
O assunto de Dom Casmurro é a suspeita de um homem bem-sucedido e com um casamento aparentemente feliz de ter sido traído pela esposa, ao longo dos anos, com seu melhor amigo. O assunto de Madame Bovary é o tédio da vida burguesa para a mulher casada, que a leva a procurar aventuras, emoções e prazeres em relações extraconjugais. E o assunto de Senhora é a proposta humilhante de casamento de uma jovem herdeira de uma fortuna para o homem que a desprezou no passado por ela ser pobre.
E, por fim, temos a mensagem. A mensagem é a síntese moral de uma obra literária, a sua conclusão conceitual. Após a leitura de um romance, qual a mensagem (conclusão) que ele passa para o leitor?
Em Dom Casmurro, a mensagem é que o ciúme doentio é até mais corrosivo para o matrimônio do que o próprio adultério, levando a destruição da relação conjugal. Em Madame Bovary, a liberdade e a felicidade femininas, em meio ao casamento e à vida burguesa, jamais serão conquistadas, nem mesmo com a prática em série do adultério por parte da mulher. E em Senhora, o amor genuíno entre um homem e uma mulher é sempre mais forte do que os interesses financeiros que eles possam ter.
Em suma, o trabalho analítico sobre as Narrativas Literárias deve começar pelo seu primeiro elemento, o enredo. Para se compreender profundamente um enredo, é obrigatório se conhecer três de seus aspectos: os componentes do enredo, as partes estruturais do enredo e a análise temática do enredo. Só assim conseguimos avançar no estudo literário de uma obra e/ou de um autor.
Entendido o que é e como funciona o enredo, no mês que vem a coluna Teoria Literária irá apresentar o segundo elemento da narrativa: as Personagens. Continue acompanhando o estudo sobre os elementos da narrativa no Bonas Histórias. Até março, pessoal!
Bibliografia:
BONACORCI, Ricardo. Análise Literária dos Romances de Rubem Fonseca - Investigando a Nova Literatura Brasileira. Projeto de Iniciação Científica. Varginha: Centro Universitário do Sul de Minas (UNIS-MG), 2019.
GANCHO, Cândida Vilares. Como Analisar Narrativas. 9a ed., Série Princípios, São Paulo: Ática, 2014.
MCKEE, Robert. Story - Substância, Estrutura, Estilo e os Princípios da Escrita de Roteiro. 1a ed. Curitiba: Arte & Letra, 2015
MOISÉS, Massaud. A Análise Literária. 19a ed. São Paulo: Cultrix, 2014.
QUILLER-COUCH, Arthur. On the Art of Writing. 10a ed. Nova York: Dover, 2006.
SANT'ANNA, Sérgio. A Senhorita Simpson. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
SILVA, Marina Cabral da. Enredo linear e não linear; Brasil Escola. Disponível em <http://brasilescola.uol.com.br/redacao/enredo-linear-naolinear.htm>. Acesso em 05 de setembro de 2017.
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