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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Foto do escritorRicardo Bonacorci

Livros: Aldeia Nova – O neorrealismo de Manuel da Fonseca


Aldeia Nova Manuel da Fonseca

Neste finalzinho de ano, li um clássico do neorrealismo português. “Aldeia Nova” (Caminho) é a principal obra da carreira de Manuel da Fonseca, um dos grandes autores da língua portuguesa do século XX. Poeta, romancista, contista e cronista, Manuel da Fonseca marcou a literatura lusitana por apresentar a vida difícil dos moradores do Alentejo, sua terra natal. Com textos críticos e narrativas socialmente engajadas, o escritor nascido em Santiago do Cacém enalteceu os perrengues cotidianos dos alentejanos.

“Aldeia Nova” é uma coletânea de contos publicada originalmente em 1942. Nessa época, Manuel da Fonseca era ainda um autor desconhecido do grande público português. Com pouco mais de trinta anos, ele só havia lançado duas obras, ambas de poesias e com pequenas tiragens: “Rosa dos Ventos”, em 1940, e “Planície”, em 1941. “Aldeia Nova” representou uma guinada na carreira do escritor. Depois deste livro, Fonseca mergulhou na ficção e deixou a poesia em segundo plano. A partir daí foram produzidos dois romances (“Cerromaior”, em 1943, e “Seara de Vento, em 1953) e várias obras de contos (“O Fogo e as Cinzas”, em 1951, “O Retrato”, em 1953, “Um Anjo no Trapézio”, em 1968, e “Tempo de Solidão”, em 1973, são as principais). Algumas coletâneas de crônicas também foram publicadas. A mais importante delas é “Crónicas Algarvias”, de 1968.

A maioria dessas obras foi publicada pela Caminho, editora lisboeta. Por isso, aviso desde já os leitores brasileiros que é um tanto difícil achá-las. Ou você importa os livros de livrarias portuguesas ou recorre a bons sebos nacionais. Se você tiver sorte, também pode encontrar esses títulos em bibliotecas com um bom acervo de literatura portuguesa.

Manuel da Fonseca

As doze tramas de “Aldeia Nova” foram escritas entre o final da década de 1920 e os últimos anos de 1930. Muitos desses contos foram publicados inicialmente em revistas e jornais literários antes de integrarem um livro. A inspiração do escritor para escrever essas narrativas veio de fatos vividos por ele ou por pessoas próximas. Manuel da Fonseca explica isso no prefácio da obra: “Cinco destes contos criei-os a partir de acontecimentos vividos por pessoas de minha família. Alguns a que assisti, outros que ouvi contar. Da recordação que desses acontecimentos me ficou e que o tempo, com a experiência que eu ia adquirindo, veio insensivelmente retocando, sou às vezes levado a pensar que pouco mais fiz do que escreve-lo”.

A história sobre a publicação de “Aldeia Nova” é muito interessante e merece ser mencionada aqui. Um amigo de Manuel da Fonseca enviou os originais do livro para a Portugália, uma editora de Lisboa recém-inaugurada. Como é comum acontecer com escritores jovens e desconhecidos, as páginas da obra ficaram esquecidas em um canto do escritório da empresa sem que ninguém tivesse o trabalho de lê-las.

Por um acaso, a esposa de um dos editores acabou pegando o material para folhear enquanto esperava o marido sair de uma reunião. O título de um dos contos chamou a atenção da mulher: “O Primeiro Camarada que Ficou no Caminho”. “Camarada” era um termo comunista e, portanto, politicamente incorreto para a época. Portugal vivia naqueles anos sob a ditadura de extrema-direita de Óscar Carmona. Curiosa para ler um livro aparentemente subversivo, a esposa do editor levou o material para casa.

Contudo, para surpresa da leitora improvável, o texto de “Primeiro Camarada que Ficou no Caminho” não tinha um conteúdo ilegal. O conto narrava o drama de uma família que perdia uma criança vítima de uma doença grave. Coincidentemente, algo parecido tinha se passado com a esposa do editor alguns meses antes. Ela também viu seu filho pequeno morrer e ainda não tinha superado totalmente aquela dor. Impressionada positivamente com o relato do jovem escritor sobre algo tão triste, a mulher não sossegou enquanto seu marido não publicou o livro que a emocionou tanto. Assim, estava inaugurada a carreira de Manuel da Fonseca na ficção. É ou não é uma história incrível, hein? A partir daí, Portugal conhecia um dos seus grandes contistas.

Alentejo Aldeia Nova

Os doze contos de “Aldeia Nova” são: “Campaniça”, “O Primeiro Camarada que Ficou no Caminho”, “O Ódio das Vilas”, “Sete-estrelo”, “Névoa”, “A Torre da Má Hora”, “A Visita”, “Viagem”, “Mestre Finezas”, “Aldeia Nova”, “Maria Altinha” e “Nortada”. O livro possui 180 páginas.

O primeiro conto da obra, “Campaniça”, se passa em Valgato, uma pequena aldeia do Alentejo onde a terra é ruim. Por isso, os homens do lugar precisam viajar todos os dias para longe para trabalhar, regressando apenas à noite. Em Valgato vive Maria Campaniça, uma moça que sonha em morar em uma localidade mais dinâmica e feliz. Em “O Primeiro Camarada que Ficou no Caminho”, temos a primeira história de Rui do Parral. Ele é a personagem que aparecerá em várias tramas do livro. Aqui, Rui é um menino que se sente abandonado pela mãe. Desde que Carlos, seu irmão mais velho, ficou seriamente doente, a mãe o proibiu de entrar em casa. Assim, o menino passou a viver com os avôs. Sem entender aquele desprezo materno, o garoto sente saudades dos beijos da mãe e da companhia do irmão.

“O Ódio das Vilas” trata da chegada de António Vargas à cidade de Cerromaior. A população local fica revoltada ao vê-lo a galope com Maria Jacinta, sua nova esposa. Como um homem daquela posição social pode ter se casado com um moça dos Montes?, pensam todos. Indiferente à oposição dos conterrâneos, Vargas encara um a um dos moradores da cidade com coragem. Em “Sete-Estrelo”, o quarto conto da coletânea, temos novamente uma narrativa em primeira pessoa protagonizado por Rui. O menino agora lamenta a partida dos pais para a África. Mais uma vez, o narrador se sente abandonado nas casas dos avós. “Nevoa” apresenta Zé Limão, um maltês pobre e bêbado que perambula de maneira solitária pelas ruas em uma noite fria de Inverno.

Em “A Torre da Má Hora”, Campanelo é um sujeito que gosta de contar histórias de contos de fadas para a criançada em noites estreladas. Os pequenos ouvem suas tramas atentamente. Um episódio narrado faz um dos garotos do grupo, que vive com os avós e que perdera um irmão alguns anos antes, conhecer a valentia do avô quando este era jovem. “A Visita” mostra a agonia de Zéli em um jantar com os pais. A moça quer passear com as amigas na praça e, para isso, precisa aguardar o fim da refeição em casa. Contudo, uma visita surpresa atrapalha seus planos. Dona Francisca e seus três filhos aparecem sem avisar na casa do Doutor Valença e de Dona Naná, os pais de Zéli. “Viagem” narra o retorno de Rui de Parral à Cerromaior. Depois de cinco anos passados em Lisboa estudando, o rapaz, agora com dezoito anos, volta para desfrutar das férias de Verão na casa dos avós. Sem ser reconhecido em um primeiro momento pelos moradores da cidade, Rui está ávido por reencontrar Gracinda, uma antiga paixonite sua.

Aldeia Nova Manuel da Fonseca

O enredo de “Mestre Finezas” gira em torno de Ilídio Finezas, um velho e decadente barbeiro. O idoso sente saudades dos tempos em que era um exímio violinista e a principal estrela dos espetáculos cênicos encenados em sua aldeia. Em “Aldeia Nova”, o décimo conto do livro e que empresta seu nome para a coletânea, temos Zé Cardo. O criador de porcos de treze anos tem uma vida solitária e triste no Vale dos Agreiros. Sua melancolia aflora nas noites de sábado, quando fica ouvindo as cantigas de ganhões e malteses. Nessa hora, Zé Cardo sonha em se mudar para Aldeia Nova, um lugarejo onde todas as pessoas parecem ser felizes.

“Maria Altinha” é a história de uma moça, a tal Maria Altinha, que precisa viajar como muitas mulheres do Sul para as planícies do Norte. Lá, elas trabalham nos arrozais durante o Verão. O dinheiro ganho na empreitada servirá para sustentar as famílias delas durante o Inverno todo. Os encantos de Maria não passam despercebidos aos olhos de Valdanim, um homem bruto das planícies. E “Nortada”, o último conto do livro, trata do desembarque de um passageiro misterioso na estação de trem de Aldeia do Montinho em uma noite fria. O local está deserto e o viajante contrata um velho para levá-lo durante a madrugada até Cerromaior. O trajeto de mula será ao mesmo tempo perigoso e revelador.

Os contos do livro “Aldeia Nova” são de uma melancolia profunda. A solidão e a tristeza de suas personagens dão o tom dessas histórias. A sensação é que a região retratada do Alentejo ficou parada no tempo e aprisiona as almas de seus moradores. Os únicos sortudos são aqueles indivíduos que conseguiram migrar para outras regiões de Portugal ou imigraram para alguma das colônias estrangeiras do país.

As tensões políticas e sociais dessa época também são evidentes nos textos de Manuel da Fonseca. O clima sombrio das narrativas (geralmente ambientadas à noite e com muito frio) e as péssimas relações pessoais das personagens escancaram a sensação de terror que imperava em Portugal e, principalmente, no Alentejo na primeira metade do século XX. A vida, nesse caso, é uma sequência infinita de perdas e uma eterna amargura para os alentejanos. Impossível fugir dos dramas comuns que essa região aparentemente inóspita proporciona aos seus moradores mais desfavorecidos.

Manuel da Fonseca

A tristeza coletiva é provocada não apenas pela pobreza monetária do lugar, mas principalmente pela aridez das relações pessoais. Quando o autor diz que o Alentejo tem uma “terra ruim”, ele está sendo ao mesmo tempo literal e metafórico. A “terra” neste caso não é apenas o solo trabalhado pelos ceifeiros (agricultores) e pelos porcadiços (criadores de porcos). É também o ambiente cultural dos pequenos povoados e das aldeias deste pedaço do sul do país. Os alentejanos são um povo sofrido e condenado ao trabalho árduo e aparentemente pouco produtivo. Para nós brasileiros, o Alentejo de Manuel da Fonseca é parecido com o Nordeste brasileiro de Graciliano Ramos – impossível não recordarmos de “Vidas Secas”.

Apesar de independentes, os contos de “Aldeia Nova” estão intrinsicamente relacionados. Acompanhamos a vida de Rui de Parral da meninice até a maturidade. Outras personagens também são mencionadas em contos distintos, conferindo grande unidade à obra.

Sinceramente, não sei se Rui é uma personagem autobiográfica de Manuel da Fonseca. O que sei é que a família Parral tem uma intrínseca relação com o clã Fonseca e que há várias semelhanças entre a trajetória de vida do escritor e de seu mais famoso protagonista.

“Aldeia Nova” é um livro espetacular. Além de conhecermos uma das melhores coletâneas de contos já escritas na língua portuguesa, também somos apresentados ao trabalho de um dos maiores escritores do neorrealismo português. A literatura engajada e crítica de Manuel da Fonseca é incrível. Apesar da dificuldade de encontrar essa obra aqui no Brasil, vale a pena o trabalho para caçá-la por aí. Gostei muito desta leitura e estou seriamente inclinado a ler também “O Fogo e As Cinzas”, outro livro de contos do filho mais pródigo de Santiago do Cacém. Quem sabe não faço uma crítica dessa publicação, em 2019, no Blog Bonas Histórias, hein?

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