Italo Calvino escreveu no primeiro capítulo/ensaio de seu livro “Por que Ler os Clássicos?” (Companhia das Letras) várias definições sobre o que torna uma obra canônica. Vistos individualmente, esses conceitos são sensacionais. Em conjunto, eles tornam-se espetaculares! Tendo a teoria do mestre italiano em mente, os leitores mais engajados e os críticos literários mais audaciosos podem sentenciar sem medo de errar: “Pornopopéia” (Objetiva), principal criação do escritor paulistano Reinaldo Moraes, é sim um clássico contemporâneo da literatura brasileira.
Apesar de o livro não ter passado ainda pela maturação do tempo, aspecto essencial para a transformação efetiva de uma obra de destaque em um clássico (algo, por si só, atemporal), é inegável o quanto esta publicação impactou a atual geração de escritores e apresentou algo extremamente novo aos leitores nacionais. A ousadia narrativa, a criatividade estética, a linguagem desbocada, o humor negro e a coragem temática de Moraes colocaram “Pornopopéia”, desde já, entre os principais livros brasileiros do século XXI.
Apesar de o período natalino não combinar em nada com a literatura de Reinaldo Moraes, resolvi reler “Pornopopéia” neste final de semana. Se a época do ano não é a mais propícia para esta leitura, por outro lado, esta obra completará em 2019 dez anos de vida. Trata-se de uma data que merece ser comemorada. Por isso, a iniciativa de comentar este livro hoje no Blog Bonas Histórias.
Publicado em 2009, “Pornopopéia” é o sétimo e penúltimo livro da carreira de Reinaldo Moraes. Já se falou tanto deste título que minha impressão é que ele foi lançado há mais de três décadas e não há meros nove anos. Antes de “Pornopopéia”, Reinaldo Moraes escreveu, na década de 1980, “Tanto Faz” (Brasiliense) e “Abacaxi” (L&PM), ambos sequência de uma mesma trama. Nessas duas obras é possível notar o lado polêmico, revolucionário e irreverente do autor. Não é à toa que esses livros, principalmente “Tanto Faz”, se tornaram tão cultuados por uma geração de leitores. De certa forma, Moraes abraçava os ideais da Geração Beat, adaptando seus valores para o presente e para a realidade brasileira.
Depois do sucesso inicial, Moraes ficou quase duas décadas sem publicar nada novo. Nesse período, o escritor paulistano optou por trabalhar como roteirista, cronista e tradutor. A volta à literatura no papel de ficcionista só aconteceu em 2003 com a publicação de “A Órbita dos Caracóis” (Companhia das Letras), um discreto romance infanto-juvenil. Depois vieram outros lançamentos que não despertaram grandes abalos sísmicos no mercado editorial: “Estrangeiros em Casa” (National Geographic), parceria de 2004 com o fotógrafo Roberto Linske, “Umidade” (Companhia das Letras), coletânea de contos de 2005, e “Barata” (Companhia das Letrinhas), infantil de 2006.
O retorno morno pode ter frustrado a maioria dos fãs de Moraes, que esperava sempre obras surpreendentes, polêmicas e inovadoras do escritor nascido em 1950. Contudo, Reinaldo mostrou seu lado genial com “Pornopopéia”. O sucesso do novo título em 2009 foi tão estrondoso que muita gente acabou se esquecendo de “Tanto Faz” e de “Abacaxi”, até então os pontos altos da carreira do autor. Mais recentemente, Moraes publicou, em 2014, “O Cheirinho do Amor – Crônicas Safadas” (Alfaguara), coletânea de contos eróticos.
“Pornopopéia” é narrado em primeira pessoa pelo seu protagonista: José Carlos Ribeiro. Zeca, como o rapaz de quarenta e poucos anos é chamado pelos amigos e conhecidos, é um cineasta paulistano decadente. Até então, ele só produziu um filme para o cinema, o estrambólico “Holisticofrenia”. Isso foi há mais de uma década e o longa-metragem passou despercebido pela crítica e pelo público em geral, ganhando apenas um pequeno prêmio na Colômbia. Mesmo assim, Zeca continua sonhando em filmar novos títulos. Ele não desanima e ainda quer se transformar em um cineasta famoso no cenário nacional.
Porém, a vida prática (e caótica) de José Carlos o joga para longe da sua ambição profissional. O cineasta passa o dia (e as noites) em sua pequena produtora localizada no centro de São Paulo. Ao invés de fazer cinema, a paixão do proprietário, a produtora se dedica a gravar filmes publicitários, algo que seu dono abomina. Há alguns anos, a empresa também produziu filmes pornográficos de baixa qualidade.
Enquanto escreve as crônicas de sua vida, Zeca passa por uma grave crise financeira, o que agrava ainda mais sua rotina anárquica. Se não fosse a ajuda recorrente do cunhado rico, que mantém as contas da produtora em dia, o cineasta já teria falido há muito tempo. A esperança do rapaz é um novo trabalho que ele conseguiu: produzir um roteiro de filme institucional sobre embutidos de frango. Para receber a grana do novo job, basta o cineasta sentar na frente do computador e escrever o roteiro. Simples, né? Não para Zeca, o rei da procrastinação. Nada é fácil para alguém viciado em sexo, cocaína e álcool.
Ao invés de trabalhar, o protagonista-narrador de “Pornopopéia” opta por escrever suas mais recentes aventuras sexuais. Em uma jornada pelo mundo da prostituição, das drogas e da violência banal de São Paulo, o leitor é levado por Zeca a uma espiral de confusões intermináveis. É espetacular a coragem do autor em falar de tantos assuntos polêmicos de uma vez só.
“Pornopopéia” tem quase 500 páginas e é dividido em duas partes. A primeira parte se passa em São Paulo, onde as confusões precipitam, e a segunda acontece quando o protagonista foge para Porangatuba, pequena cidade no litoral paulista. Este livro faz parte, portanto, daquele grupo de romances parrudos. A inspiração de Reinaldo Moraes, como o autor deixa claro mais de uma vez na própria narrativa, é a obra “O Complexo de Portnoy” (Companhia das Letras), principal romance do norte-americano Philip Roth, produzido no final da década de 1960. A abordagem direta (e polêmica) da vida sexual dos protagonistas é muito semelhante. Entretanto, Moraes insere outros elementos à “Pornopopéia”.
O primeiro aspecto que chama a atenção no livro de Moraes é a oralidade do seu texto. Sinceramente, nunca tinha visto um livro em que a sensação de estar ouvindo o narrador fosse mais forte do que estar lendo-o. Isso acontece do início ao fim do romance. Para realizar essa proeza, o escritor revolucionou a linguagem da narrativa. Veja, por exemplo, o primeiro parágrafo de “Pornopopéia”:
“Vai, senta o rabo sujo nessa porra de cadeira giratória emperrada e trabalha, trabalha, fiadaputa. Taí o computinha zumbindo na sua frente. Vai, mano, põe na tua cabeça ferrada duma vez por todas: roteiro de vídeo institucional. Não é cinema, não é epopeia, não é arte. É – repita comigo - vídeo institucional. Pra ganhar o pão, babaca. E o pó. E a breja. E a brenfa. É cinema-sabujice empresarial mesmo, e tá acabado. Cê tá careca de fazer essas merdas. Então, faz, e não enche o saco. Porra, tudo roda até pornô de quinta pro Silas, aquele escroto do caralho, vai ter agora “bloqueio criativo” por causa dum institucionalzinho de merda? Faça-me o favor".
Incrível como logo de cara já entramos na cabeça do narrador. A impressão é que estamos lá mesmo, acompanhando seus pensamentos, divagações e dramas. A linguagem é a mesma utilizada por alguém sentado ao seu lado em qualquer mesa de bar de São Paulo. Tenho muitos amigos que falam exatamente assim. Há também excessos de palavrões e a criação interminável de neologismos, aspectos típicos da linguagem oral e recursos até então poucos explorados na linguagem escrita considerada séria.
Não é apenas a linguagem inovadora de Reinaldo que faz “Pornopopéia” uma obra de grande envergadura da nossa literatura. A construção de um protagonista com tantos problemas de natureza social, econômica, profissional, ética e de saúde tornam Zeca uma personagem memorável. O cineasta passa boa parte do romance sob os efeitos das bebidas alcoólicas e de cocaína. Ele também é viciado em sexo. Ele vai para cama com inúmeras mulheres. Há de tudo: menores de idade, idosas, prostitutas, esposas dos melhores amigos, amantes regulares, parceiras ocasionais... Isso porque Zeca é casado e tem um filho (Pedrinho). Apesar de alegar que ama o menino, o cineasta não se encontra com o garoto em nenhum momento da trama. Em relação ao casamento, o narrador não se interessa em retornar para casa nem em avisar a esposa (Lia) por onde anda. Zeca só vai pensar na mulher quando descobre que ela tem um amante. Aí, age como o machão traído.
Boa parte das cenas do romance (afinal, o título “Pornopopéia” não é por acaso) é dedicado à descrição das práticas sexuais de José Carlos (e na busca por cocaína). As confusões que o protagonista acaba metido são tantas que ele acaba indo para cama até com homens, algo que ele abomina. Em um instante de carência no meio da noite, Zeca acaba trocando carícias com um travesti e, no meio de uma suruba, em outro momento da narrativa, é enrabado por um colega quando sua retaguarda estava desguarnecida. Em um ato de desespero ainda mais extremo, Zeca chega a fazer sexo com um molusco já morto. Sim, estamos falando de necrofilia e zoofilia. Quando falta mulher (e homem), o único jeito é aliviar a lascividade com o que há por perto, nem que seja uma lula que está sendo preparada para uma refeição.
Durante esta leitura, recordei de “A Grande Arte” (Agir), romance de Rubem Fonseca que apresenta cenas de sexo de todos os tipos: consensual, não consensual (estupro), pago (prostituição), com interesses sociais, sádico, sadomasoquista, homossexual, orgia, extraconjugal, pedofilia, incesto, casual, etc. Se para os personagens de Rubem Fonseca a prática sexual era instrumento de dominação e de violência, para o narrador de Reinaldo Moraes o sexo é exclusivamente uma forma de prazer hedonista.
O humor, como já deve ter ficado claro nos parágrafos até aqui dessa análise crítica da obra, é do tipo ácido. O autor escancara a vida do seu protagonista sem qualquer pudor, apresentando aspectos escatológicos de sua rotina e os elementos de seu caráter pouquíssimo nobre. Temas polêmicos ainda hoje (aborto, doenças sexualmente transmissíveis, religião, infidelidade, vício em drogas pesadas, roubo, tráfico de entorpecentes, por exemplo) são abordados com a naturalidade de uma confidência entre amigos. Adorei o humor politicamente incorreto do romance. “Pornopopéia” mergulha em assuntos contemporâneos com coragem e enfoca diretamente um tipo de homem que está mergulhado no vazio existencial da vida pós-moderna.
Apesar de ser um anti-herói na concepção clássica, Zeca é um sujeito aparentemente corriqueiro nas grandes cidades brasileiras nos dias de hoje: arrogante, egoísta, hedonista, sonhador, antiético e duro (sem dinheiro). Ou seja, é o típico malandro nacional, figura folclórica que há anos permanece no imaginário coletivo dos brasileiros. Para se ter uma ideia de seu caráter, Zeca chega a roubar o dinheiro do salário de sua empregada, a trabalhadora e simpática Terezinha, para pagar prostitutas e comprar cocaína. O leitor passa a sentir compaixão pelos dramas do cineasta, mesmo sabendo o quanto é errado torcer por uma personagem assim. Dessa maneira, José Carlos Ribeiro se assemelha a muitos anti-heróis clássicos da nossa literatura: Macunaíma, de Mário de Andrade, Brás Cubas, de Machado de Assis, e Leonardo, de Manuel Antônio de Almeida.
Adorei ter relido este romance de Reinaldo Moraes, sem dúvida nenhuma um dos escritores mais ousados e originais da cultura brasileira contemporânea. Ao concluir o livro neste final de semana, lembrei-me das palavras de Italo Calvino: “Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira”. “Pornopopéia” é ou não é, desde já, um cânone precoce da nossa literatura, hein? Ao menos para mim, a resposta é positiva.
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