Darico Nobar: Boa noite, Brasil! O Talk Show Literário chega hoje ao seu último programa desta segunda temporada. Já estamos no ar há dois anos. É uma marca e tanto, hein?! E para celebrar esses números incríveis vamos receber a visita do protagonista de O Cortiço, a mais importante obra naturalista brasileira. Com vocês, João Romão!
João Romão: Peço desculpas. [O convidado senta-se ao sofá, enquanto ouve os aplausos do público. Ele fala com forte sotaque português e age cerimoniosamente].
Darico Nobar: Seja bem-vindo. Fique à vontade, João. O programa é todo seu.
João Romão: Eu não estava à espera! O programa inteirinho é mesmo meu, Darico?! Preciso, então, fazer um inventário imediatamente para descobrir como estão o faturamento e, principalmente, a lucratividade dele. Este estúdio e o prédio do canal também fazem parte dos ativos patrimoniais do empreendimento?
Darico Nobar: Não! Quando digo que o programa é seu, estou usando uma figura de linguagem. Quero que você se sinta em casa, só isso. É para você ficar à vontade.
João Romão: Ah! [O entrevistado demonstra certa decepção em sua fisionomia]. Mesmo assim, vou conversar amanhã de manhã com meus advogados. Algo dado não pode ser pego de volta sem o consentimento do novo proprietário, tás a ver?
Darico Nobar: Só você mesmo! [O apresentador ri, imaginando que seja uma brincadeira de João Romão. O convidado, por sua vez, permanece sério, não demonstrando ter falado de forma jocosa]. Por falar nisso, como andam os negócios?
João Romão: Uma maravilha! A cada dia a São Romão Holding Empresarial cresce mais e mais. Acho que nunca enchi tanto os bolsos de dinheiro como agora. A única coisa que me incomoda no Rio é esse calorzão. Calor dos infernos nesta cidade!
Darico Nobar: Está mesmo quente! O ar-condicionado do estúdio não consegue dar conta do recado... [O apresentador seca com o lenço uma gota de suor da sua testa]. Quando O Cortiço foi escrito, seus negócios eram centrados no ramo imobiliário e no comércio. E hoje, como eles estão?
João Romão: Continuam sendo feitos nessas duas áreas. A diferença está apenas no tamanho desses empreendimentos. A São Romão Incorporadora é a maior empresa da América Latina na venda de imóveis residenciais. E meu armazém se transformou na maior rede atacadista do país.
Darico Nobar: E é você quem permanece à frente desses negócios?
João Romão: Claro! O olho do dono é que engorda o gado. Ainda trabalho todos os dias, inclusive aos sábados, domingos e feriados. Chego pontualmente às seis horas da manhã na companhia e só saio de lá depois das onze da noite.
Darico Nobar: Sua esposa não reclama?
João Romão: Reclamar do quê?! Zulmira não é boba, não é mulher de rasgar dinheiro. Ela iria reclamar se eu não voltasse cada vez mais rico para casa.
Darico Nobar: Depois de tantos anos... O senhor não pensa em desacelerar um pouco? Quem sabe viajar e curtir um pouco a vida, a família...
João Romão: Esse conceito de desacelerar é típico dos brasileiros. Eles estão sempre desacelerando, por mais devagar que andem. Português legítimo só sabe acelerar. Faz parte da nossa cultura. E mais dinheiro nunca é demais!
Darico Nobar: Não digo parar totalmente de trabalhar... Um homem milionário como o senhor poderia se dar, de vez em quando, alguns luxos como descansar aos finais de semana, passear, se divertir, sair de férias, não?
João Romão: Prefiro deixar essas coisas aos brasileiros. Um capitalista como eu precisa trabalhar e ganhar dinheiro. Luxo e diversão não enchem o prato de ninguém.
Darico Nobar: Entendo a sua dedicação, João Romão, porém uma das principais críticas que fazem a seu respeito é sobre sua... Como posso dizer? ]O entrevistador fica sem graça, não encontrando a palavra certa].
João Romão: Que sou muquirana? É isso?!
Darico Nobar: Isso mesmo! Como você responde a quem o critica dessa forma?
João Romão: Se ganhar mais dinheiro do que se gasta é ser muquirana, então sou com orgulho. Dinheiro foi feito para ser bem administrado e, por que não, guardado. O errado é desperdiça-lo, atirando-o ao vento. Dizem aqui no Brasil que português é burro, mas é difícil ver português pobre ou passando por dificuldades financeiras. Para mim, burro é o brasileiro, que não gosta de trabalhar, é esbanjador e está sempre pedindo ajuda aos outros. E você sabe para quem o brasileiro vem pedir auxílio quando está sem dinheiro, né?
Darico Nobar: Para quem?
João Romão: Para o muquirana aqui. [Bate no próprio peito com força]. É claro que não ajudo ninguém. Se o sujeito não se ajuda, por que eu teria essa obrigação? Ontem mesmo, a Rita Baiana e o Jerônimo apareceram lá no meu escritório para pedir uma graninha emprestada. Disseram estar sem nada... Eu gritei: "Vão trabalhar, vagabundos!". Não sou instituição de caridade para ficar socorrendo pobres.
Darico Nobar: Eles ainda estão juntos?
João Romão: Que lhe vale Deus! A Rita troca de marido como quem troca de roupa... Eles se separaram há mais de um século. Eles me visitaram separadamente. Um apareceu de manhã e o outro à tarde. A romaria dos desafortunados não tem hora nesta cidade, ela dura às vezes o dia inteiro.
Darico Nobar: Pera aí! Você está falando mal dos brasileiros, mas o Jerônimo é português também se não me falha a memória.
João Romão: Costumo dizer que o Jerônimo foi português, mas agora é brasileiro. Ter vindo ao Brasil e conhecido a cariocada foi a desgraça dele. Respirar os ares tropicais arruinou a vida do cavouqueiro. Ele se transformou completamente aqui. É uma pena. Hoje em dia é um malandro sem eira nem beira...
Darico Nobar: A Bertoleza era brasileira e foi a personagem mais trabalhadora de Aluísio Azevedo. Como você explica isso?
João Romão: Para começo de conversa, Bertoleza era uma escrava. Ela trabalhava por obrigação e não para enriquecer. Uma vez acostumada ao trabalho pesado, a pessoa tende a repetir esse hábito a vida toda. Como Bertoleza existem muitos por aí: pobres coitados que só trabalham, trabalham e nunca vão possuir nada além da roupa do corpo. Outra coisa: ela tinha sangue africano. Por isso trabalhava muito. Brasileiro nunca foi chegado ao trabalho. Nunca!
Darico Nobar: Você acha o brasileiro preguiçoso?
João Romão: Preguiçoso, amigo das extravagâncias e rei dos abusos. Brasileiro não pode ver uma roda de samba e um rabo de saia que sai correndo sem pensar no amanhã. É luxurioso e cimento também. O pior é ser pouco econômico e inimigo da ordem. Não é à toa que seus conterrâneos, Darico, não conseguem nunca enriquecer.
Darico Nobar: E quais as qualidades do meu povo? Imagino que tenhamos algum ponto positivo para ser enaltecido, não é?
João Romão: Sim, deve ter. Eu que ainda não descobri um nesses anos todos de Brasil. Essa mania de tomar banho todo dia me enoja. Ninguém economiza água nesse país. Esse jeito festeiro e animado também é contraprudente aos negócios. Odeio a passionalidade dos habitantes dos trópicos. Os homens e as mulheres dessa região do planeta se parecem mais com animais no cio do que com seres pensantes e evoluídos.
Darico Nobar: Que visão mais deprimente dos brasileiros!
João Romão: Não é a minha visão dos brasileiros que é deprimente e sim os próprios brasileiros que são... O que tem nesta caneca, Darico? É água?
Darico Nobar: Sim. É água mineral. Pode beber. Servimos água aos convidados.
João Romão: Mas é de graça ou vocês vão me cobrar ao final do programa?
Darico Nobar: É de graça. [O apresentador ria novamente da possível piada do convidado].
João Romão: Se é assim... [Bebe com avidez]. Posso repetir? Tem mais aí?
Darico Nobar: Produção! [O grito é para que sirvam mais água ao entrevistado. Um funcionário deixa uma garrafa de água mineral para a dupla sentada ao centro do palco]. Obrigado. Outra crítica que faziam sobre seus negócios é que eles exploravam o povo pobre e roubavam a clientela. É verdade?
João Romão: Acho curiosa essa questão. Aqui no Brasil quem ganha dinheiro é visto como explorador e bandido. [Fala e, ao mesmo tempo, coloca mais água em sua caneca]. Ganhar dinheiro não é crime, sabia? Crime é não gostar de trabalhar e viver da mendicância. Aposto que quem me acusa de desonestidade e de atos ilícitos nunca economizou um centavo nem acorda de madrugada todos os dias para trabalhar.
Darico Nobar: O que você fez com Bertoleza foi correto?!
João Romão: Sim. Ela era uma negra e foi usada para o trabalho. Que mal havia nisso?! Aqueles eram tempos de escravidão, Darico. E quando lembrei que ela não era minha a devolvi ao seu verdadeiro dono. Sou um homem honesto acima de tudo!
Darico Nobar: Dizem que as balanças do seu armazém indicavam pesos errados para as compras dos clientes.
João Romão: Aí é incompetência das balanças, não tenho culpa. Elas foram todas fabricadas aqui no Brasil, portanto, não devem mesmo ser muito certas...
Darico Nobar: Pessoal, esta foi a entrevista de hoje. Muito obrigado pela audiência de quem está em casa e pela presença de todos na plateia. Em janeiro, retornamos com mais uma série de entrevistas na nova temporada do Talk Show Literário. Bom Natal e um ótimo Ano Novo para todos vocês! [O público se levanta dos assentos e aplaude o apresentador, que acena com as mãos. Neste momento, o quinteto musical toca a canção de encerramento do programa].
João Romão: Você disse que a água era de graça, certo? Posso levar o que sobrou?
Darico Nobar: Sim, pode... [O apresentador já não demonstra o mesmo bom humor de outrora].
João Romão: Então, terei que levar a caneca junto. É impossível carregar a água sem um recipiente, né? [O convidado retira-se do palco com a caneca na mão].
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O Talk Show Literário é o programa de televisão fictício que entrevista as mais famosas personagens da literatura. Assim como ocorreu na primeira temporada, neste segundo ano da atração, os convidados de Darico Nobar, personagem criada por Ricardo Bonacorci, são os protagonistas dos clássicos brasileiros. Para acompanhar as demais entrevistas, clique em Talk Show Literário. Este é um quadro exclusivo do Blog Bonas Histórias.
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