Na metade da década de 1980, Fernando Sabino já era um dos principais escritores brasileiros de sua geração. Considerado um dos maiores cronistas da história do país, o autor mineiro ainda ostentava em seu portfólio literário dois romances, “O Encontro Marcado” (Record) e “O Grande Mentecapto” (Record), e uma obra infantojuvenil, “O Menino no Espelho” (Record), entre os best-sellers nacionais. Mesmo com o sucesso, Sabino se ressentia de nunca ter publicado uma trama policial, gênero que sempre apreciou como leitor.
A oportunidade para produzir uma narrativa desse tipo surgiu quando um delegado que era muito amigo do escritor relatou um caso real ocorrido há muito tempo em um departamento de polícia do Rio de Janeiro. Segundo o tira, certa vez, um casal apareceu, no mesmo dia e em horários diferentes, na delegacia para se acusar mutuamente. A esposa alegava que o marido estava tentando envenená-la, algo que já havia feito com a ex-mulher. Ele, por sua vez, dizia que a parceira queria se suicidar. Ao se envenenar, ela iria automaticamente incriminá-lo só para ter o gosto de vê-lo preso. O pobre do delegado não sabia em quem acreditar. Ao ouvir o relato, Fernando Sabino escreveu uma novela com o mesmo enredo. Além de usar muitos dos fatos verídicos narrados pelo amigo policial, o escritor acrescentou à história elementos fictícios para tornar o drama mais intenso. O resultado é “Martini Seco” (Ática), uma pequena narrativa policial de excelente qualidade. Este é o quinto livro que o Bonas Histórias analisa no Desafio Literário deste mês (e a primeira novela de Fernando Sabino).
Publicado inicialmente, em 1985, na coletânea de contos “A Faca de Dois Gumes” (Record), “Martini Seco” foi republicado, em 1987, desta vez como livro independente. Episódio similar ocorreu com outra novela famosa de Sabino: “O Homem Nu”. Lançada na coletânea de contos homônima de 1960, a história do rapaz que é perseguido pela sociedade e pela polícia por estar sem roupa no meio da rua foi editado em livro próprio em 1994 com o nome de “A Nudez da Verdade” (Ática).
“Martini Seco” integra o trio de thrillers policiais desenvolvido por Fernando Sabino em 1985. A trilogia é composta também por “A Faca de Dois Gumes” e “O Outro Gume da Faca”. As três histórias foram lançadas em uma obra conjunta, porém mais tarde ganharam versões independentes. Dessas novelas policiais de Sabino, “Martini Seco” é quem obteve o maior sucesso entre o público e a crítica.
A novela começa com uma pequena introdução: “Na noite de 17 de novembro de 1962, ocorreu numa delegacia de polícia do Rio de Janeiro uma tragédia em misteriosas circunstâncias, jamais esclarecidas. O que se segue é uma reconstituição, o tanto quanto possível fiel, dos fatos que conduziram a esse terrível desfecho. Como poderá ter sobrevivido um testemunho do que se passou, é o novo mistério que ficará para sempre insolúvel. Tudo começou cinco anos antes, precisamente na mesma data, ou seja, no dia 17 de novembro de 1957”.
Na delegacia carioca, o Comissário Serpa recebe a queixa de uma mulher, Maria Miraglia. A dona de casa disse ter descoberto um crime cometido pelo marido há cinco anos. Amadeu Miraglia, o esposo de Maria, teria envenenado sua antiga noiva em um bar. Assim que bebeu um Martini Seco (daí o nome da novela), a moça caiu morta no chão. Apesar de todos os indícios apontarem para Amadeu, ele foi inocentado pela Justiça por falta de provas. Maria descobriu o passado nebuloso do marido ao achar reportagens antigas do caso na residência do casal. A partir daí a esposa alega estar sendo perseguida pelo companheiro. Amadeu estaria tentando matá-la envenenada, assim como ele já tinha feito com a ex.
Depois de ouvir a mulher, o Comissário Serpa encaminha a Sra. Miraglia para o escrivão, para a queixa crime ser registrada. Assim que Maria deixa a delegacia, Amadeu aparece por lá, surpreendendo a todos. O marido disse que a esposa está o ameaçando. Depois de ter descoberto a tragédia ocorrida com sua ex, a mulher estaria ameaçando se suicidar. Ao se envenenar, todos achariam que o culpado seria Amadeu. Assim, ela conseguiria colocá-lo atrás das grades, mesmo que para isso precisasse morrer.
Começa, assim, o jogo de acusações mútuas. Quem estaria querendo matar quem? O Comissário Serpa não sabe em quem acreditar. Para ele, a solução do que se passa no presente está em descobrir o que ocorreu no passado. Teria sido Amadeu Miraglia o verdadeiro assassino da sua noiva no bar há cinco anos? Para descobrir isso, o comissário de polícia reabre informalmente o caso.
“Martini Seco” é um livro extremamente curto. Ele não chega a ter 90 páginas. Mesmo assim, a obra está dividida em três partes. Essa estrutura é parecida com a divisão em atos (cada parte seria um ato, com uma tragédia própria). É possível ler esta publicação em uma tacada só. Foi o que fiz na última segunda-feira à noite. Em menos de uma hora e meia já havia concluído esta leitura.
A primeira questão que precisa ser comentada sobre esta obra é o estilo direto do texto de Fernando Sabino. O autor não perde tempo com nada que não seja essencial para sua história. Esqueça a descrição detalhada de cenários e de personagens, as divagações existencialistas ou filosóficas do narrador e a composição ornamental do enredo, características estas de “O Encontro Marcado”, “O Grande Mentecapto” e “O Menino no Espelho”, por exemplo. A narrativa de “Martini Seco” é construída principalmente em cima dos diálogos dos seus protagonistas. Sabino é mestre na produção de ótimos discursos. Assim, a história adquire um tom meio seco, parecido ao dos romances policiais noir, e uma velocidade alucinante. As ações ocorrem muito rapidamente, uma atrás da outra, sem parar. O leitor fica até sem fôlego, encantado com tantos acontecimentos em poucas páginas. Na maior parte do tempo, é impossível interromper essa leitura.
O mistério percorre a trama da primeira à última página. Esse é um dos pontos altos desta obra. Nem o Comissário Serpa, nem o narrador (em terceira pessoa do tipo observador neutro), nem os leitores sabem quem é o verdadeiro vilão da história. Para mim, ora o marido era o culpado, ora ele era a grande vítima de um complô bem arquitetado. O tempo inteiro oscilei em acreditar e em desacreditar na versão contada por Amadeu Miraglia, uma das grandes personagens criadas por Fernando Sabino. Esse é o principal mérito de um autor policial: deixar sempre seu leitor em dúvida. Nesse aspecto, essa construção narrativa é magistral. Até a última linha de “Martini Seco”, não sabemos efetivamente para quem torcer e o que irá acontecer.
Outra questão muito interessante é o humor do texto de Sabino. Em meio à grande tensão dramática da história, o autor mineiro consegue levar seu leitor à risada fácil. E ele faz isso de várias maneiras. Em alguns momentos, é o ambiente caótico da delegacia quem dá mote ao humor. Em outros, é o jeito desbocado como os policiais encaram seus serviços. Às vezes, é o próprio comportamento amalucado do marido e da mulher que gera a situação engraçada. E até mesmo a estrutura da narrativa permite ao leitor achar graça nessa trama. Isso se dá, por exemplo, quando Fernando Sabino repete as mesmas palavras e as mesmas frases em partes diferentes da novela. Esse efeito confere um ambiente de absurdo e de maluquice completa à história. Impossível não rir disso.
Ao mesmo tempo em que assistimos a um ótimo drama conjugal e a um excelente mistério policial, também podemos notar o tom crítico do texto de Sabino. No Brasil do autor, a polícia se utiliza da violência física (leia-se tortura) como um dos recursos de investigação. A Justiça tarda e falha, não merecendo o nome que tem. Os comerciantes são sacanas com seus consumidores, aproveitando-se de pequenas malandragens para faturar mais (por exemplo, servir o mesmo copo de drink para clientes diferentes). A impressão que se tem é que ninguém respeita as regras e as leis neste país. Ainda bem que este é um Brasil da ficção de Fernando Sabino e não o da nossa realidade.
Um primeiro problema da novela “Martini Seco” é a falta de originalidade do seu enredo. Lembro de várias histórias de outros autores com uma trama muitíssimo parecida. “Maquinações”, quinto conto de Patricia Highsmith do livro “Álibi Perfeito” (Biblioteca Visão), tem uma disputa matrimonial muito similar a esta de Sabino. O mesmo ocorre com “A Magnólia Perdida”, conto de Luiz Lopes Coelho. Apesar de possuir uma construção narrativa parecida com alguns contos precedentes, “Martini Seco” possui seu valor. A trama é muito bem escrita e consegue envolver o leitor.
Outra questão que não gostei foi do seu desfecho. Para mim, o desenlace da trama é decepcionante. Não fiquei incomodado com o final aberto da novela. Muito pelo contrário: até acho que a história adquire maior graça quando não sabemos exatamente quem é o vilão e quem é a vítima na casa dos Miraglia. Assim, cabe ao leitor julgar Amadeu e Maria, assim como o comportamento do Comissário Serpa durante a investigação. O problema está no encerramento pastelão e trágico-cômico da narrativa. Sabe quando o Stephen King termina um romance de mais de mil páginas porque botou fogo em tudo e matou todas as personagens? Pois bem, temos algo parecido aqui. Admito que até acredito que esse desfecho tenha ocorrido na história verdadeira contada pelo amigo policial de Fernando Sabino. Porém, colocá-la dessa maneira na ficção acabou deixando a novela com uma pitada de inverossimilhança (com um ar de absurdo pueril).
Com exceção do desfecho polêmico, adorei esta novela de Sabino. “Martini Seco” tem tudo o que uma boa narrativa policial precisa ter: suspense, emoção, surpresas, drama, ação, tensão, personagens contraditórias e humor. E isso tudo em uma trama extremamente inteligente e contagiante. Mesmo não tendo se dedicado muito a esse gênero ao longo de sua carreira, Fernando Sabino se mostrou um excelente escritor policial em “Martini Seco”. Confesso que estou com vontade de ler “A Faca de Dois Gumes” e “O Outro Gume da Faca”, as outras duas partes desta trilogia.
Contudo, não será agora que irei conhecer esses títulos. Minha próxima leitura do Desafio Literário de novembro é “A Nudez da Verdade” (Ática), a novela mais famosa de Sabino. O post com o comentário dessa obra estará disponível no Bonas Histórias no próximo domingo, dia 25. Não perca a análise do sexto e último livro de Fernando Sabino que o Desafio Literário traz para você.
Gostou da seleção de autores e de obras do Desafio Literário? Que tal o Blog Bonas Histórias? Seja o(a) primeiro(a) a deixar um comentário aqui. Para saber mais sobre as Análises Literárias do blog, clique em Desafio Literário. E não deixe de curtir a página do Bonas Histórias no Facebook.